Parte 2 — Vamos fazer um bolo?: quando as evidências viram um problema

Se você leu a parte 1 desse texto, você já deve saber que para se estabelecer a eficácia e utilidade clínica, de um tratamento, precisamos ter uma definição precisa do mesmo, normalmente, na forma de manuais protocolares (Chambless & Ollendick, 2001; Horner & Kratochwill, 2012), que se assemelham muito a receitas de bolo (Koerner, 2018). Isso leva a uma série de problemas: (1) dificuldades, e por vezes incapacidade, de adaptar tratamentos empiricamente sustentados para a realidade dos nossos pacientes; (2) um número obsceno de diferentes terapias, que devem ser estudadas pelos terapeutas; (3) uma contraprodutividade ao se realizar pesquisas de eficácia, devido ao alto número de características individuais e comorbidades a serem contempladas nesses estudos e, por fim, (4) dificuldades em extrapolar os resultados produzidos em pesquisas para as populações que atendemos. Anteriormente, eu disse que a Terapia Baseada em Processos (PBT; Hayes & Hofmann, 2018) poderia apresentar possíveis soluções para esses problemas. Nessa segunda parte, então, vamos falar um pouco do surgimento da PBT e depois entender melhor como ela se propõe a resolver esses problemas. Isso tudo, claro, acompanhado por um belo pedaço de bolo.

Terapia Baseada em Processos

Um bom ponto de partida  é falarmos do surgimento da Terapia Baseada em Processos. Ela surge de uma crítica ao modelo de psicopatologia sindrômica presente em manuais diagnósticos, como por exemplo, o DSM (American Psychiatric Association, 2013) e a CID (Organização Mundial da Saúde, 2018). Nesse modelo de psicopatologia, sintomas são agrupados em categorias que delimitam um transtorno. Você já deve estar familiarizado(a) com isso. Quando dizemos, por exemplo, que uma pessoa está com certos sintomas como: taquicardia, sudorese, tremores etc. pois apresenta algum Transtorno de Ansiedade, estamos atribuindo um conjunto de sintomas à uma categoria diagnóstica (um transtorno) que seria a causa latente desses sintomas. Esse modelo, por mais que seja o mais utilizado no campo da saúde mental atualmente, apresenta vários problemas, conforme apontam Hayes e Hofmann (2020), os proponentes da PBT. O primeiro desses problemas, é que há um alto número de comorbidades, ou seja, pacientes podem ter mais de um transtorno diagnosticado ao mesmo tempo, já que muitos sintomas são compartilhados entre as categorias diagnósticas. Por outro lado, há pacientes que sequer se enquadram em algum transtorno. Somado a isso, o modelo sindrômico foca apenas na apresentação de sintomas, reunindo esses em categorias que nada tem a dizer sobre as características individuais de cada pessoa e os aspectos funcionais e contextuais que as levam a adoecer. A prática baseada em evidências em psicologia (PBEP) foi fortemente influenciada pelo modelo sindrômico, levando a geração de um paradigma onde desenvolvemos tratamentos específicos para demandas específicas, normalmente de cunho sindrômico, levando, por último, a todos os problemas que já discutimos sobre a produção e implementação de evidências.

Tá bom, mas como a PBT propõe resolver esses problemas? Você deve se lembrar que, na parte 1, eu disse que: usar as melhores evidências disponíveis é uma questão de fazer perguntas que possam nos levar a certas respostas específicas. Deve se lembrar, também, que a pergunta basilar do nosso modelo de produção e implementação de evidências é a pergunta proposta por Paul (1969, p.44). Que basicamente questiona sobre qual tratamento funciona para determinada demanda. Por outro lado, Hayes e Hofmann propõe uma mudança nessa pergunta, para eles, deveríamos nos perguntar: “Quais processos biopsicossociais centrais devem ser direcionados a esse cliente, dado esse objetivo, nessa situação, e como eles podem ser alterados de maneira mais eficiente e eficaz?” (Hofmann & Hayes, 2019a, p. 47). Isso significa que ao invés de pensarmos quais transtornos estão levando a certo conjunto de sintomas — ou quais conjuntos de sintomas podem delimitar um transtorno — deveríamos começar a investigar como se dão as relações de diferentes eventos, comportamentos e características individuais que influenciam pessoas ao bem-estar ou mal-estar. Por consequência, deixaríamos de pensar em tratamentos específicos para transtornos e começaríamos a pensar em procedimentos que pudessem mudar essas relações (Hayes & Hofmann, 2020; Hofmann et al., 2021). Em resumo, os autores da PBT estão propondo um retorno à gloriosa análise funcional (Hofmann & Hayes, 2019b). Para entendermos melhor o que isso quer dizer, vamos voltar ao “Experimento Mental do Bolo Veludo Vermelho”, que tal?

Voltando para a cozinha…

Da última vez, estávamos com muitos problemas tentando fazer um bolo que fosse o mais delicioso possível para a nossa pessoa amada que é celíaca e vegana. Dessa vez,  também vamos tentar fazer um bolo muito delicioso e que se adéque as características individuais do nosso amor. Porém, à moda da PBT! O primeiro passo é perguntarmos para a pessoa amada como seria um bolo delicioso na perspectiva dela. E como resultado, ela nos diz que não gosta de bolos com muito açúcar, gosta que a massa seja fofinha e o recheio seja cremoso e levemente ácido. E, obviamente, que seja vegano e celíaco. Perceba que o que estamos fazendo aqui é reunir as características individuais da pessoa que está a nossa frente, sem levar em conta apenas rótulos diagnósticos. Anteriormente, ingenuamente pensamos que fazer apenas um bolo vegano e celíaco bastaria para agradar, mas agora, ficamos sabendo que há algo além. Existem gostos particulares que estão além dos rótulos. Na PBT iniciamos por reunir as características de nossos pacientes indo muito além de sintomas ou nomenclaturas diagnósticas, esse é o primeiro passo de uma análise funcional baseada em processos (Hofmann et al., 2021). E conforme fazemos nosso bolo, vamos aprendendo mais sobre ela.

Ok. Já sabemos do que ela gosta, bora fazer o bolo! Mas sem nenhuma receita em mãos, como vamos fazer isso? Na PBT não usamos protocolos específicos, fazer um bolo dessa forma também exige que não usemos. Bem, se olharmos para as várias receitas de bolo existentes veremos que todas elas partilham de elementos em comum. Quando fazemos um bolo, precisamos de algum tipo de farinha para dar estrutura à massa, essa farinha pode ser de trigo, arroz, milho ou até fubá, o que importa é o papel que ela exerce na formação de um bolo. Também precisamos de líquidos (e.g. água, leite ou creme de leite) para dar umidade à massa; gorduras (e.g. manteiga, óleo de soja ou óleo de coco) para conferir textura; algo que dê sabor (e.g. açúcar, mel, chocolate ou frutas) e fermentos (e.g. químico, bicarbonato de sódio ou claras de ovos em neve) para dar leveza à massa e fazê-la crescer. Se conhecermos a ciência básica da confeitaria e estudarmos como esses ingredientes interagem entre si para formar um bolo, conseguiremos fazer uma receita que sirva exclusivamente para a nossa pessoa amada. No caso dela, uma bela combinação seria um bolo feito com alguma farinha que não fosse de trigo, combinada a líquidos e gorduras de origem vegetal, saborizado com frutas ou chocolate, mas que não ficasse muito doce. O recheio poderia ser feito à base de limão e poderíamos usar qualquer ingrediente que, conhecidamente, nos proporcionasse cremosidade. Teríamos que estudar na literatura como combinar esses ingredientes para um resultado desejável, mas depois disso, teríamos um belo bolo! Dessa forma, a partir das particularidades de quem está à nossa frente, criamos uma receita que se encaixa perfeitamente ao seus gostos. Isso tudo, conhecendo a ciência básica por detrás dos ingredientes que estamos utilizando.

 E essa é a grande sacada da PBT! Quando olhamos para as principais terapias empiricamente sustentadas, percebemos que existem elementos comuns entre esse tratamentos, como, por exemplo, técnicas de exposição e relaxamento que estão presentes em diferentes protocolos para diferentes transtornos de ansiedade (e.g. Barlow et al., 2017; Barlow & Craske, 2022; Hope et al., 2010). Da mesma forma que confeiteiros não ficam estudando diferentes variações de uma mesma receita de bolo, mas estudam como ingredientes podem ser usados na confeitaria de forma efetiva para se obter os resultados desejados, há esforços para que o treinamento de terapeutas em PBE deixe de ser o aprendizado de terapias específicas e se volte ao estudo da ciência básica e da filosofia que as embasam e dos “ingredientes” que as compõe (Keplac et al., 2012). Esses ingredientes, por sua vez, são chamados de núcleos de tratamento na PBT. São procedimentos e técnicas bem definidas que apresentam evidências de que conseguem modificar certas relações de eventos (processos) e levar aos resultados desejados de uma intervenção (Hofmann et al., 2021). Por último, esses núcleos de tratamento são organizados funcionalmente, ou seja, da mesma forma que agrupamos nossos ingredientes, no nosso experimento mental. Tinhamos à nossa disposição vários tipos de farinha e poderíamos usar qualquer uma delas, desde que a utilizada conseguisse nos auxiliar a obter os resultados desejados. De forma similar, na PBT podemos usar diferentes núcleos de tratamento para uma mesma dimensão que queremos trabalhar. Se queremos modificar aspectos cognitivos, poderíamos utilizar: reestruturação cognitiva, desfusão cognitiva, ou reenquadramento, por exemplo. Se quisermos trabalhar com os aspectos afetivos, podemos utilizar: exposição, relaxamento, aceitação etc. (Hofmann & Svitak, 2024) O que importa, no fim das contas, é que nossas intervenções estejam funcionalmente atreladas aos processos que desejamos modificar (Hofmann et al., 2021).

Essa abordagem faz com que não fiquemos mais à mercê de certos problemas. Primeiramente, não precisaríamos mais nos preocupar em encontrar manuais de terapias culturalmente adaptadas para nossos clientes, já que o tratamento seria feito sob medida para eles, a partir de núcleos de tratamento baseados em evidências. Respeitando demais o “terceiro pilar” da PBE (APA, 2006). Outro ponto vantajoso, é que não teríamos  que estudar um número extenuante de diferentes tratamentos. Precisaríamos, apenas, conhecer uma série de procedimentos e como esses funcionam para obter os resultados desejados. Aliás, segundo os proponentes da PBT, conforme desenvolvêssemos pesquisas sobre quais processos biopsicossociais estariam relacionados às mudanças clínicas, pacotes de tratamento (e.g. TCC, DBT, ACT…) se tornariam obsoletos. 

Para a pesquisa e além!

Por último, a PBT traz reformulações não só na maneira como utilizamos as evidências mas também em como as produzimos. Ao mudarmos nossa direção do desenvolvimento de intervenções, deixando de focar, majoritariamente, em estudos de resultados de certas terapias para estudos que investiguem quais processos biopsicossociais implicariam em seus resultados clínicos, acabaríamos por priorizar estudos como os delineamento de caso único (De Paulo & Pillati, 2024), levando em consideração as diferenças individuais entre as pessoas como um aspecto importante do que está sendo investigado e não apenas como um problema a ser contornado por métodos estatísticos (Molenaar, 2004). Por consequência, resolvendo nossos problemas em extrapolar os resultados produzidos em pesquisas para as populações que atendemos.

Dessa forma, a PBT vem trazer resoluções para problemas cruciais da PBEP. É importante salientar que essa empreitada não significa um abandono do modelo prescrito pela APA (2006) mas uma “mudança de foco” que possa resolver aos problemas apresentados nesse texto. Ademais, é inegavelmente interessante pensar que o futuro da prática baseada em evidências na psicologia estaria no que analistas do comportamento já vêm fazendo há um bom tempo aqui no Brasil: análise funcional de processos transdiagnósticos de uma forma funcional e contextual. (Cândido & Ferreira, 2022) E que talvez, nós, enquanto analistas do comportamento, possamos nos beneficiar grandemente de integrações com essa nova abordagem clínica em nosso futuro (Ricci & Wielenska, 2024). Mas isso é conversa para outro dia. Ou como um bom acadêmico diria: isso foge ao escopo do presente trabalho.

Referências

American Psychological Association (2006). Evidence-based practice in psychology: APA presidential task force on evidence-based practice. American Psychologist, 61, 271-285.

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders  (5th ed.). Arlington, VA: American Psychiatric Publishing.

Barlow, D. H. et al. (2018). Unified protocol for transdiagnostic treatment of emotional disorders: Therapist  guide (Second edition). Oxford University Press.

Barlow, D. H., & Craske, M. G. (2022). Mastery of Your Anxiety and Panic: Workbook (5º ed). Oxford University PressNew York. https://doi.org/10.1093/med-psych/9780197584095.001.0001

Cândido, G. V., & da Silva Ferreira, T. A.  (2022). Terapia Analítico-Comportamental: reflexões sobre a sistematização de uma prática. Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento, 30(1), 139-157.

Chambless, D. & Ollendick, T. (2001). Empirically supported psychological interventions: Controversies and evidence. Annual Review of Psychology, 52, 685-716.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (2018). Process-based CBT: The science and core clinical competencies of cognitive behavioral therapy. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (Eds.). (2020). Beyond the DSM: Toward a process-based alternative for diagnosis and mental health treatment. New Harbinger Publications.

Hofmann, S. G., & Hayes, S. C. (2019a). The future of intervention science: Process-based therapy.  Clinical Psychological Science, 7(1), 37-50.

Hofmann, S. G., & Hayes, S. C. (2019b). Functional Analysis Is Dead: Long Live Functional Analysis. Clinical Psychological Science, 7(1), 63-67. https://doi.org/10.1177/2167702618805513

Hofmann, S. G., Hayes, S. C., & Lorscheid, D. N. (2021). Learning process-based therapy: A skills training manual for targeting the core processes of psychological change in clinical practice. New Harbinger Publications.

Svitak, M., & Hofmann, S. G. (2024). A Process-Based Approach to CBT: Understanding and Changing the Dynamics of Psychological Problems (1º ed). Hogrefe Publishing. https://doi.org/10.1027/00628-000

Hope, D. A., Heimberg, R. G., & Turk, C. L. (2010). Managing Social Anxiety, Workbook: A Cognitive-Behavioral Therapy Approach. Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/med:psych/9780195336696.001.0001

Horner, R. H. & Kratochwill, T. R. (2012). Synthesizing single-case research to identify evidence- based practices: Some brief reflections. Journal of Behavioral Education, 21, 266-272. https://doi.org/10.1007/s10864-012-9152-2

Klepac, R. K., Ronan, G. F., Andrasik, F., Arnold, K. D., Belar, C. D., Berry, S. L., et al. (2012). Guidelines for cognitive behavioral training within doctoral psychology programs in the United States: Report of the Inter-Organizational Task Force on Cognitive and Behavioral Psychology Doctoral Education. Behavior Therapy, 43 (4), 687–697.

Koerner, K. (2018). The Science in Pratice. In Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. Process-based CBT: The science and core clinical competencies of cognitive behavioral therapy (pp. 58-75). New Harbinger Publications.

Molenaar, P. C. M. (2004). A Manifesto on Psychology as Idiographic Science: Bringing the Person Back Into Scientific Psychology, This Time Forever. Measurement: Interdisciplinary Research and Perspectives, 2(4), 201–218. https://doi.org/10.1207/s15366359mea0204_1

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Paul, G. L. (1969). Behavior modification research: design and tactics. In C. M. Franks (Ed.), Behavior therapy: Appraisal and status (pp. 29-62). McGraw-Hill.

De Paulo, L. C. S. & Pilatti, P. (2024). Delineamento de caso único na pesquisa em psicologia clínica: qual seu espaço na prática baseada em evidências e na terapia baseada em processos?. Revista Brasileira De Terapia Comportamental E Cognitiva, 26(1), e241786. https://doi.org/10.31505/rbtcc.v26i1.1786

Ricci, M. T. & Wielenska, R. C. (2024). Terapia baseada em processos e a terapia analítico- comportamental: convergências e divergências. Em Costa, N., Kirchner, L. F., & Foneca- Júnior, A. R. (Orgs.) Comportamento em Foco: Pesquisas teóricas, básicas e aplicadas em contextos diversos. (pp. 133-143). ABPMC.

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Escrito por Matheus T. Ricci

Psicólogo Clínico (CRP: 06/172930). Especialista em Terapia Comportamental e Cognitiva (IPq/USP). Formação em Ativação Comportamental para Depressão (IACC-Sul). Professor no curso de Formação em Terapia Baseada em Processos (Ello+)

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