Escrito por Camila Lourenço, Isla Cezzani e Julia Moreira
Em um dos nossos textos anteriores, “De onde vem o sofrimento das mulheres?”, discutimos sobre a importância de um olhar contextual no atendimento a mulheres. Trouxemos à tona considerações sobre como as variáveis de gênero, demarcadas a partir de uma cultura patriarcal e misógina, marcam o sofrimento de todas as mulheres, ainda que de diferentes formas e em diferentes níveis. Sendo assim, neste texto buscamos reforçar que sem levar em conta o contexto social no sofrimento das mulheres, corremos o risco como terapeutas de revitimizar nossas clientes, reproduzindo violências e contribuindo para produzir ainda mais sofrimento.
Como argumentam Nicolodi e Zanello (2023), no processo psicoterapêutico, a terapeuta necessita ter conhecimento sobre as variáveis culturais que estão presentes na vida da cliente, assim como precisa estar atenta às variáveis presentes na relação terapeuta-cliente, para assim não reproduzir estereótipos, preconceitos e gerar ainda mais sofrimento para a cliente. Ao pensar especificamente no atendimento a mulheres, para Couto (2023), “parte importante da terapia feminista requer letramento pela terapeuta a respeito de questões sociais, visto que se deve reconhecer o papel das múltiplas opressões em sociedade vividas por mulheres, especialmente aquelas pertencentes a outras minorias – de raça, classe, sexualidade, etc. Terapeutas feministas precisam conhecer e se informar sobre outras realidades partindo do reconhecimento da sua própria” (p.260).
Mas, antes de qualquer pontuação, vamos alinhar ao que nos referimos quando mencionamos o termo terapia feminista: não se trata de uma abordagem psicoterapêutica, mas de uma postura clínica guiada por reflexões feministas comprometidas com a emancipação das mulheres. Trata-se da construção de um ambiente em que a relação terapeuta-cliente se coloca sensível à identificação das opressões sociais que permeiam o sofrimento das mulheres (Couto, 2023).
Sendo assim, buscamos reunir neste breve texto um apanhado de orientações breves, focado no atendimento a mulheres a partir de duas especificidades: raça e sexualidade. Não queremos reduzir ou esgotar a discussão sobre as interseccionalidades, mas sim abrir as portas através destas duas variáveis específicas, para mostrarmos que uma terapia feminista só é possível se capaz de considerar as individualidades e atravessamentos sobre o que é ser mulher.
O atendimento a mulheres negras
A psicologia clínica como conhecemos no Brasil possui uma dívida histórica com as mulheres negras. Estamos falando de uma produção de conhecimento que bebe de fontes científicas dos Estados Unidos e da Europa, deixando de lado perspectivas adequadas à realidade de pessoas na África e América Latina – ou qualquer outra nacionalidade que escape ao eixo predador da América do Norte e da Europa Ocidental.
Quando nos referimos a socialização das mulheres no contexto patriarcal, é comum nomearmos características como “frágeis”, “vulneráveis”, “doces” e “amáveis”. Mas a verdade é que nem todas as mulheres são enxergadas dessa forma pela cultura. As mulheres negras, por exemplo, são rotineiramente nomeadas e socializadas como “furiosas”, “casca grossa”, “irritadas” e “agressivas”. Foi através desses adjetivos que a cultura racista encontrou uma forma de justificar a violência contra mulheres negras. Não à toa, quando se trata de violência doméstica, policiais levam os relatos de mulheres negras menos a sério quando comparado ao relato de mulheres brancas (Neff, 2022).
Somado a esses dados, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva descreve como o racismo afeta mulheres negras grávidas: além de terem maiores chances de realizar o pré- natal de forma inadequada, são as mulheres negras que estão sozinhas na hora do parto. Trata-se de uma existência atravessada por uma dupla exposição à violência: o racismo e o machismo. Isso ainda sem contar o contexto classe econômica, pontuando mais uma vulnerabilidade em suas vidas.
Nesse sentido, a construção de uma prática racializada dentro da psicologia se torna urgente e essencial. Esse movimento significa um processo de reparação e de responsabilidade a partir das relações que se desenvolvem no espaço terapêutico. Kuratani e colaboradores (2022) estabeleceram uma relação entre a ética amorosa de bell hooks¹, e a Terapia Analítico Funcional (FAP), reforçando que, através das relações interpessoais, construídas com base em valores como reciprocidade, amorosidade e honestidade, é possível construir um vínculo genuíno capaz de nutrir processos curativos. Essa vivência se dá através de uma dinâmica entre dar e receber amor, ou seja, criando um espaço em que sua subjetividade seja enxergada e suas necessidades atendidas.
Porém, para essa construção ser possível, é preciso que cada terapeuta se comprometa com o desenvolvimento de três habilidades, pontuadas por Mizael e Pereira, (2023): 1. Habilidade de discriminar o racismo e seus efeitos na queixa apontada pelas clientes; 2. Habilidade de reconhecer como as questões raciais estão, ou não, presentes na sua história de vida como terapeuta; 3. Habilidade de construir uma prática assertiva a partir dessas reflexões.
Esses três pontos partem da percepção do racismo na construção da análise do caso, relacionando o sofrimento descrito pelas clientes a um atravessando social, reconhecendo que suas queixas dizem muito mais sobre uma cultura opressora do que sobre uma falha individual; passam pela construção de uma autoavaliação do terapeuta e seu histórico de privilégios (ou ausência deles), e como a sua história individual pode influenciar a percepção de uma relação de poder no espaço terapêutico; até findar no apanhado da intervenção, construindo uma postura terapêutica sensível e assertiva, que será utilizada em situações que tragam à tona as violências raciais vividas.
Porém, a clínica se estende na vida e não podemos esquecer que uma psicologia assertiva no atendimento à população negra só é possível de ser construída através de indivíduos que se implicam com uma postura antirracista no mundo, para além das quatro portas de um consultório. Para começar, precisamos nos comprometer com a construção de uma comunidade nas ciências comportamentais contextuais implicada com ações de reparo e visibilidade para população negra na psicologia. Em outras palavras: abrir espaços comprometidos em ser palco para que profissionais negras possam comunicar seu trabalho, expandir seu campo de atuação e sua produção de conhecimento como norteadores para construção na atuação clínica – não somente na produção sobre uma terapia racial, mas sobretudo nas demais áreas de conhecimento.
Estas são nossas breves considerações no atendimento a mulheres negras. Para aprofundamento, sugerimos mergulhar nas literaturas descritas nas referências.
¹ o nome bell hooks, assim escrito, todo em minúsculas, é um pseudônimo usado por Gloria Jean Watkins. A autora escolheu utilizar seu nome desta forma como um posicionamento político cuja mensagem traz um direcionamento intencional para a sua obra e não para a pessoa por trás dela. Essa foi a forma que Hooks encontrou de reforçar o quanto o seu trabalho é para ser pensado e utilizado a serviço do coletivo.
Atendimento a mulheres lésbicas e bissexuais
Nossa cultura está organizada em um conjunto de regras, normas e leis, que definem os comportamentos que devem ou não ser emitidos e punidos. Ao longo da história da sociedade ocidental, a homossexualidade foi constantemente desvalorizada e reprimida pelos grupos dominantes, influenciados principalmente por dois discursos principais: o religioso e o científico. “Mesmo que a ‘ciência’ tenha retirado a homossexualidade (e mantido a transexualidade) na lista das doenças, no senso comum as pessoas ainda acreditam que ser normal e sadio é ser hétero” (Swain, 2010).
Ainda que tenhamos um consenso sobre o estresse vivido pela comunidade LGBTQIAPN+, é necessário ressaltar que cada pessoa, dentro da sua individualidade e contexto de vida, será marcada pelas opressões de forma distintas. Ou seja: homens negros viverão sua sexualidade de forma distinta de homens brancos. Tal qual homens brancos ricos podem viver de uma forma distinta de homens de periferia. Nesse sentido, homens e mulheres, também terão vulnerabilidades específicas. Deste modo, focaremos no marcador sexualidade para pensar a vivência de mulheres lésbicas e bissexuais.
Quando nos referimos à vivência da sexualidade das mulheres, não podemos deixar de lado as contribuições de Valeska Zanello sobre o dispositivo amoroso. Trata-se da compreensão do conjunto de regras e normas culturais que norteiam a subjetivação das mulheres em uma cultura patriarcal. Para Zanello (2022), mulheres são educadas para atraírem o olhar de um homem. A noção de sucesso e autoestima feminina está, portanto, atrelada ao ato de ser escolhida por estes sujeitos. Nesse sentido, não importa o seu desejo ou quem quer que seja que as escolha: o que importa é ser “selecionada” por um homem. ”O corpo das mulheres é intensamente sexualizado, porém como objeto e não como sujeito da ação” (Swain, 2010).
Dentre os efeitos colaterais dessa socialização está: a rivalidade feminina, uma vez que são incentivadas a competir entre si para ocupar sempre o lugar de destaque diante do olhar masculino; e a total opressão e invalidação de qualquer forma de amar que fuja de uma perspectiva heteronormativa, invisibilizando a lesbianidade e a bissexualidade.
A heterossexualidade compulsória consiste na exigência de que todos os sujeitos sejam heterossexuais, com o discurso da naturalização do padrão heterossexual, e patologização ou causalidade das vivências que rompam com o mesmo. O que limita a existências de outras sexualidades. Já a heteronormatividade é um conceito que traz a exigência e opressão política e social de que as pessoas organizem sua vida dentro do padrão heterossexual, ou seja, ajam de acordo com o que é esperado de um homem e de uma mulher (Colling & Nogueira, 2015).
Dito isso, o que é esperado de uma mulher em uma cultura heteronormativa? Como uma mulher deve se portar em sociedade de acordo com o “natural”? E como essas regras influenciam o sofrimento de mulheres lésbicas e bissexuais?
Desde o seu nascimento, é esperado que a mulher seja extremamente gentil, feminina, submissa, esposa, mãe e dona de casa, dentro de um casamento heterossexual monogâmico. Que corresponda aos desejos e “necessidades” do homem e da família. Esse discurso invisibiliza outras sexualidades e formas de ser mulher, além de naturalizar e manter a dominação e violência contra as mulheres.
A fim de auxiliar na não-reprodução de práticas e intervenções LGBTfóbicas, Mussi e Malerbi (2023), categorizam um conjunto de habilidades específicas esperadas por terapeutas no atendimento à população LBTQIAP+, sendo elas:
1. A Identificação de eventos aversivos presentes no ambiente das pessoas que pertencem à população LGBTQIAP+;
2. A análise do impacto desses eventos sobre essa população;
3. O emprego de intervenções específicas;
4. O autoconhecimento do terapeuta no que se refere a sua própria orientação sexual e identidade de gênero.
Sugerimos a leitura completa do capítulo para melhor aproveitamento. Mas em resumo, os autores concluem que o terapeuta precisa estar atento às variáveis heterocisnormativas que estão envolvidas nas respostas dos clientes, identificar os impactos dessas variáveis tanto na vida do cliente quanto do terapeuta e observar a influência de tais variáveis no processo psicoterapêutico, para que possa estabelecer um ambiente não-punitivo e reforçador para respostas de expressão do gênero e orientação sexual do cliente (Mussi & Malerbi, 2023).
Souza e colaboradores (2021) evidenciam em revisão da literatura que a violência de gênero constitui como um problema de saúde pública grave e persistente, e que as políticas públicas delineadas não contemplam especificidades das mulheres lésbicas e bissexuais. Ressaltam também a necessidade de definir políticas públicas para combater a violência contra minorias, fundamentadas nos princípios da bioética, a fim de promover um contexto de maior respeito e não discriminação devido à orientação sexual ou identidade de gênero.
Ignorar as variáveis culturais é fechar os olhos para inúmeras contingências que atravessam a vida da cliente e consequentemente a relação terapeuta-cliente. Como sugere Couto (2023), “como parte do letramento a respeito de vivências às quais a terapeuta não tem acesso direto, bem como a partir da perspectiva da abertura da terapia feminista às percepções da cliente, uma maneira relevante de entrar em contato genuíno com essas vivências é simples: perguntar em vez de assumir” (p. 260).
Pensando no que foi apresentado, gostaríamos de finalizar com algumas perguntas norteadoras para uma prática clínica que considera as variáveis culturais e de gênero:
- Quais ensinamentos foram passados pela minha família de origem, em relação à gênero, raça e sexualidade?
- Como a minha raça, orientação sexual e identidade de gênero podem afetar meu trabalho como terapeuta e as minhas relações interpessoais? E minhas crenças?
- Quais meus privilégios em relação a cliente que estou atendendo?
- O que eu faço, que quando eu faço, produz sofrimento?
Que não esqueçamos: o espaço que acontece entre terapeuta-cliente, é um espaço feito para a construção de autonomia e autenticidade. Trata-se de um espaço não punitivo, disruptivo em relação às normas opressoras vigentes e guiado por individualidades.
Referências:
COLLING, L.; NOGUEIRA, G. Relacionados mas diferentes: sobre os conceitos de homofobia, heterossexualidade compulsória e heteronormatividade. In: TRANSPOSIÇÕES – LUGARES E FRONTEIRAS EM SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO. Vitória: EDUFES, 2015. p. 171-184.
COUTO, A. Aplicando princípios feministas ao fazer terapêutico: lições da terapia feminista. In: OSHIRO, C. K. B.; VARTANIAN, J. F. (Orgs.). HABILIDADES TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA DA PSICOTERAPIA. São Paulo: Editora Manole Saúde, 2023. p. 249-265.
KURATANI, S. M. de A.; CERQUEIRA, L. M. S. de; PEREIRA, L. K. dos S.; SILVA, R. S. M. da; MENDES, A. C. A. A ética amorosa de bell hooks e a FAP: interlocuções entre feminismo negro e clínica comportamental. REVISTA PERSPECTIVAS, Ed. Especial: Estresse de Minorias, p. 321-341, 2022.
MIZAEL, T. M.; PEREIRA, L. K. S. Erros comuns no atendimento a clientes negras(o) e habilidades necessárias para desenvolver um atendimento adequado. In: OSHIRO, C. K. B.; VARTANIAN, J. F. (Orgs.). HABILIDADES TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA DA PSICOTERAPIA. São Paulo: Editora Manole Saúde, 2023. p. 249-265.
MUSSI, S. V.; MALERBI, F. E. K. Habilidades terapêuticas necessárias para o atendimento de pessoas LGBTQIAP+. In: OSHIRO, C. K. B.; VARTANIAN, J. F. (Orgs.). HABILIDADES TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA DA PSICOTERAPIA. São Paulo: Editora Manole Saúde, 2023. p. 266-280.
NEFF, Kristin. AUTOCOMPAIXÃO FEROZ. Tradução de Luciana Fregolente. 1. ed. São Paulo: Objetiva, 2022.
NICOLODI, L.; ZANELLO, V. Poder, patriarcado e dispositivos de gênero no manejo clínico analítico-comportamental. In: OSHIRO, C. K. B.; VARTANIAN, J. F. (Orgs.). HABILIDADES TERAPÊUTICAS NA PRÁTICA DA PSICOTERAPIA. São Paulo: Editora Manole Saúde, 2023. p. 249-265.
SOUZA, C. et al. Violência contra mulheres lésbicas/ bissexuais e vulnerabilidade em saúde: revisão da literatura. Psic., Saúde & Doenças, Lisboa , v. 22, n. 2, p. 437-453, set. 2021 . Disponível em <http://scielo.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-00862021000200437&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 23 ago. 2024. Epub 31-Ago-2021. https://doi.org/10.15309/21psd220210.
SWAIN, T. N. Desfazendo o “natural”: a heterossexualidade compulsória e o continuum lesbiano. Revista Bagoas – estudos gays: gênero e sexualidade, v.4, n05, 2010.