Algumas reflexões sobre o “Outro com Contexto”

Antes de iniciar o texto, convido você a fazer um exercício de imaginação (sinta-se à vontade para pular esta parte, se preferir):

– Pense em uma pessoa com quem você se dá bem, alguém com quem tenha uma relação fraterna e positiva, mas sem vínculos amorosos. Considere, por um instante, algumas das experiências que essa pessoa possivelmente viveu ao longo de sua vida. É provável que, em diferentes contextos, ela tenha sentido medo, tristeza, raiva, alegria, amor e uma variedade de emoções tão vasta que seria difícil listar todas aqui. Também é quase certo que ela já cometeu erros, teve atitudes corajosas, se arrependeu de algo que fez, teve dúvidas, expectativas e uma infinidade de ações e atitudes sobre as quais poderíamos passar horas refletindo. No final das contas, poderíamos concluir que tudo o que pensamos sobre a vida dessa pessoa, de alguma forma, a caracteriza como um ser humano. A doçura e o amargor de uma pessoa vivendo uma vida tipicamente possível dentro da condição humana. Agora, observe: que efeitos, sensações ou pensamentos surgem em você ao pensar sobre essa pessoa dessa forma?

Se desejar, e se sentir à vontade, experimente refazer o exercício, mas desta vez considerando uma pessoa com quem você tenha uma relação neutra, depois uma pessoa com quem você tenha uma relação um pouco difícil e, por fim, colocando você mesmo(a) como a pessoa alvo dessas considerações. Faça isso sempre de forma aberta e atenta aos efeitos que essa proposta tem em você enquanto imagina e podendo parar a qualquer momento.

Esse exercício é parte de uma prática tradicionalmente presente em programas de Mindfulness e Compaixão, conhecida como “Bondade Amorosa (Loving-Kindness)” (Demarzo & Campayo, 2015; Hofmann et al., 2011). Além de observar os aspectos humanos compartilhados, a prática convida a uma postura ativamente cuidadosa e compassiva em relação a todas as pessoas através de “bons votos”, na medida do que for possível.

“Eu” e o “Outro”

“Self como Contexto” é um termo cunhado dentro da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) que se refere à capacidade de entrarmos em contato com nossas próprias experiências, características e comportamentos sem nos limitarmos de forma rígida a eles. Nessa perspectiva, o “Eu” é visto como uma ação fluida e contínua de observar e descrever a própria experiência, frequentemente caracterizada como um verbo: “selfing“. Em contrapartida, o “Self como Conteúdo” é um processo associado à Inflexibilidade Psicológica, onde o “Eu” está rigidamente amalgamado a rótulos e descrições, limitando a variabilidade comportamental em determinados contextos. Em termos de Teoria das Molduras Relacionais (RFT), o Self como Contexto parece estar associado à possibilidade de emoldurar o comportamento e suas funções hierarquicamente ao “Eu” dêitico, enquanto o Self como Conteúdo está mais vinculado a relações mais simples de coordenação (McHugh et al., 2019; Villatte et al., 2015; Törneke et al., 2015; Hayes et al., 2011). Caso deseje mais detalhes sobre RFT, molduras de coordenação e molduras hierárquicas clique aqui para ler o meu outro texto.

Se ao longo da minha história de aprendizagem, na interação com diferentes contextos sociais, eu derivei de forma vasta e coerente a relação de coordenação entre “Eu” e “boa pessoa” (expressa, por exemplo, como: “eu sou/devo ser/preciso ser/tenho que ser uma boa pessoa”), essa rede relacional pode passar a atuar sobre o meu comportamento como uma regra. Isso significa que ações e atitudes coerentes com “ser uma boa pessoa” tenderão a ser apetitivamente selecionadas, tornando-se mais frequentes no meu modo de agir. Por outro lado, ações incompatíveis com esse rótulo poderão adquirir uma função aversiva, por serem incoerentes a essa “visão que tenho sobre eu mesmo”.

Observe que processos semelhantes podem ocorrer com qualquer tipo de rótulo verbalmente atribuído (por exemplo, “eu sou uma chorona”, “eu tenho Depressão”, “eu sou mais inteligente do que a média”, “eu sou a pior pessoa do mundo”). Em quase todos os casos, o vínculo inflexível a essas descrições pode ter grandes efeitos sobre a variabilidade comportamental de uma pessoa, mesmo quando estamos falando sobre rótulos “socialmente desejáveis”. Afinal, quem foi que definiu o que é ser uma “boa pessoa”? O Self como Contexto é proposto, então, como uma forma mais flexível de se relacionar com essas diferentes descrições do “Eu” às quais somos expostos ao longo de toda a vida. Essa perspectiva fomenta um senso de “Eu grande”, onde muitas facetas distintas possam coexistir de maneira coerente, sem que o “Eu” se resuma a nenhuma delas.

Um aspecto importante na compreensão do desenvolvimento do Self à luz da RFT é que ele se constitui à medida que, ainda enquanto crianças, aprendemos a nos discriminar como “instâncias separadas do restante” em termos interpessoais (eu/outra pessoa), espaciais (aqui/em outro lugar) e temporais (agora/em outro momento). Dessa forma, um senso verbal de “Eu” se desenvolve concomitantemente a um senso verbal de “Outro” (McHugh et al., 2019; Törneke et al., 2015). Podemos então considerar que nossas impressões sobre outras pessoas podem incorrer nos mesmos padrões que associamos ao Self. Ou seja, podemos conceber o “Outro como Conteúdo” e o “Outro como Contexto”. Da mesma forma, é provável que essas diferentes concepções impactem na maneira como nos comportamos em relação aos outros, algo que talvez você possa ter vivenciado anteriormente durante o exercício de imaginação (Villatte et al., 2015).

Fã ou hater?

Nossa interação com o mundo, amplamente mediada pelos meios digitais, contribui para fenômenos sociais que podem nos ajudar a refletir sobre os processos que moldam nossa visão do “Outro”. Um exemplo disso é a maneira como muitas figuras públicas e influenciadores digitais atraem verdadeiras legiões de fãs e de haters, criando a impressão de que não há espaço para nuances na visão que se pode ter sobre essas pessoas. Esse cenário pode contribuir, por exemplo, para fenômenos como “cancelamento” e “linchamento virtual”, na medida que facilitam um julgamento absoluto frente a frações de comportamentos de uma pessoa. Curiosamente, essas mesmas figuras públicas frequentemente se beneficiam do engajamento gerado por essas legiões, seja ele motivado por amor ou ódio. Uma dinâmica semelhante parece ocorrer no contexto da polarização política, como apontaram de Rose e Rocha (2023).

É plausível pensar que a prevalência de relações parassociais (Hartmann, 2016), nas quais não há necessariamente uma horizontalidade na forma como a relação se estabelece, junto com a comunicação mediada pelas redes sociais, onde temos acesso apenas a pequenos fragmentos selecionados da vida de alguém, contribuem para uma percepção do “Outro como Conteúdo”, onde se torna fácil conceber uma pessoa como “perfeita, sem defeitos” ou alguém como “horrível, que não tem nada de positivo a oferecer” ainda que isso seja bastante inverossímil para descrever qualquer ser humano. Vale considerar, porém que essa forma de se relacionar com o “Outro” não está restrita aos meios digitais, ainda que esse pareça ser um terreno fértil para isso.

No que me impacta a visão que tenho sobre o outro?

Villatte e colaboradores (2015) exploram a noção de “Outro” dentro da Relação Terapêutica. Para esses autores, fomentar o “Outro como Contexto” é uma parte importante do aspecto interpessoal da terapia, pois, se os terapeutas se apegarem a rótulos rígidos sobre seus clientes, sua atuação pode ser enviesada de diferentes maneiras, como, por exemplo, promovendo estigmatização. De forma semelhante, clientes que mantêm descrições invariáveis sobre os profissionais que os acompanham podem estar mais suscetíveis à insensibilidade em relação às suas próprias experiências, apegando-se a ideias como “meu terapeuta sempre sabe o melhor a se fazer”.

Muitos outros contextos podem e devem ser considerados. Por exemplo, nas relações interpessoais e amorosas, o reconhecimento e a compreensão da história do outro, com suas nuances, parecem ser meios importantes para aceitação das diferenças, conexão social e reconciliação (Christensen & Jacobson, 2018; Holman et al., 2017). Em níveis histórico e social, o processo de desumanização abre margem para vários fenômenos lamentáveis da experiência humana, como guerras, xenofobia, misoginia e racismo (Cabecinhas, 2020; da Silva Almeida, 2014). No contexto da saúde individual, a forma como concebemos e construímos nossas relações com outras pessoas parece ter grandes impactos sobre nossa qualidade de vida, bem-estar e expectativa de vida (Holman et al., 2017).

Ao mesmo tempo, não podemos desconsiderar as sutilezas envolvidas no desenvolvimento de uma visão ampla e variável sobre o “Outro”. Em relacionamentos abusivos, por exemplo, uma postura aparentemente flexível pode perpetuar o abuso. A visão de que “estamos todos no mesmo barco” e “somos todos humanos” pode inadvertidamente servir para invalidar as experiências particulares vivenciadas por uma pessoa ou grupo social. Além disso, adotar uma visão contextual do “Outro” ao mesmo tempo que colocamos em segundo plano os nosso próprios valores e limites pode levar ao autosacrifício e/ou à subjugação aos valores e preferências de terceiros, entre outras questões.

Carregando com leveza as certezas que temos sobre o outro

A Terapia Comportamental Dialética (DBT) é guiada por alguns pressupostos importantes (entendendo pressupostos como crenças que não podem ser provadas empiricamente, mas que aceitamos como base para agir). Gostaria de destacar alguns deles aqui: “Todas as pessoas estão fazendo o melhor que podem, ainda que muitas vezes isso não seja o suficiente”; “As pessoas querem melhorar. Uma característica comum a todas as pessoas é o desejo de melhorar suas vidas e serem felizes”; e “Entender e mudar as causas do comportamento funcionam melhor do que julgar e culpar. Julgar e culpar pode ser mais fácil, mas se queremos promover mudanças no mundo, precisamos alterar a cadeia de eventos que levam a comportamentos e acontecimentos indesejados” (Linehan, 2017). Considero essas premissas consonantes com o processo de pensar o “Outro como Contexto” e as tomo como base aqui para essas considerações finais.

Relacionar-se pode ser difícil e arriscado. Muitas vezes, já me vi decepcionado com as pessoas, e outras vezes, surpreendi-me positivamente com quem não esperava nada de bom. Aceitar que pessoas de quem não gosto podem ter bons argumentos e ações foi difícil, assim como perceber que certas relações, apesar de agradáveis, poderiam estar me fazendo mal. Ou mesmo perceber que magoei alguém sem intenção, que me passei ou que fui omisso. Momentos como esses costumam me deixar reflexivo: Isso é culpa minha? Fiz algo errado? É culpa das pessoas? Estou sendo vítima de algo? Ao olhar com mais atenção, muitas vezes percebo que não é tão simples. Às vezes, parece que estamos todos (da pessoa que eu mais admiro à pessoa que eu mais odeio) apenas tentando dar sentido às nossas ações e relações nesse mundo com as ferramentas que temos. E, talvez, estar aberto a essa experiência arriscada faça parte do processo de viver a vida plenamente.

Referências

Cabecinhas, R. (2020). Crise, migrações e desumanização. Sociedade e crise (s), 25-30.

Christensen, A., Doss, B. D., & Jacobson, N. S. (2018). Diferenças Reconciliáveis: reconstruindo seu relacionamento ao redescobrir o parceiro que você ama, sem se perder. Novo Hamburgo, RS: Sinopsys.

Demarzo, M. M. P., & Campayo, J. G. (2015). Manual prático-Mindfulness. Curiosidade e Aceitação, 1.

Hartmann, T. (2016). Parasocial interaction, parasocial relationships, and well-being. In The Routledge handbook of media use and well-being (pp. 131-144). Routledge.

Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2011). Acceptance and commitment therapy: The process and practice of mindful change. Guilford press.

Hofmann, S. G., Grossman, P., & Hinton, D. E. (2011). Loving-kindness and compassion meditation: Potential for psychological interventions. Clinical psychology review, 31(7), 1126-1132.

Holman, G., Kanter, J. W., Tsai, M., & Kohlenberg, R. (2017). Functional analytic psychotherapy made simple: A practical guide to therapeutic relationships. New Harbinger Publications.

Linehan, M. M. (2017). Treinamento de habilidades em DBT: manual de terapia comportamental dialética para o terapeuta. Artmed Editora.

McHugh, L., Stewart, I., & Almada, P. (2019). A contextual behavioral guide to the self: Theory and practice. New Harbinger Publications.

de Rose J. C. C., & Rocha C. A. A. (2023). Polarização política: reflexões a partir da análise do comportamento simbólico. In: Análise do Comportamento: Dimensões políticas. São Paulo: Instituto Par.

da Silva Almeida, M. (2014). Desumanização da população negra: genocídio como princípio tácito do capitalismo. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, (34).

Törneke, N., Luciano, C., Barnes‐Holmes, Y., & Bond, F. W. (2015). RFT for clinical practice: Three core strategies in understanding and treating human suffering. The Wiley handbook of contextual behavioral science, 254-272.

Villatte, M., Villatte, J. L., & Hayes, S. C. (2015). Mastering the clinical conversation: Language as intervention. Guilford Publications.

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João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e da Ciência Comportamental Contextual no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

Relação Terapeuta – Cliente na RO-DBT

A Difícil Arte de Dizer Não