Psicoterapia Analítica Funcional: Um passo para trás da presente contingência

A coluna parte das inquietações provocadas pelo novo livro da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), que geraram impressões e suposições, algumas serão abordadas aqui. O contato com a obra foi através do grupo de estudo realizado pela Cooperativa Arigó de Psicólogos, iniciativa criada no interior do Estado do Rio de Janeiro.

A FAP é uma terapia comportamental e foi classificada como pertencente à “terceira onda”. A abordagem foi criada pela Mavis Tsai e pelo Robert Kohlenberg em 1987. Há apenas três livros da FAP traduzidos, sendo o terceiro (e último da abordagem) lançado em 2022 no Brasil.

Vale destacar que os autores começam o livro informando que estão fornecendo sinais e que estimulam os leitores a desenvolverem a própria FAP. Além disso, os mesmos também orientam para não tratar o que está escrito como verdade absoluta, ou seja, passível de modificações. A “permissão” pode ser estendida para a realização de discordância acerca da obra. O presente texto atua exatamente nesta área.

A abordagem é muito interessante, parte do princípio de que os seres humanos são seres sociais e que se constituem na conexão com o outro. O princípio é relacional e a FAP leva isso para sua prática, pensando no paciente/cliente e no terapeuta. A relação terapêutica é a base de tudo, visa construir um vínculo genuíno com o outro e nesse contato moldar a mudança, tanto do terapeuta quanto do paciente.

A FAP se posicionou como pertencente a psicologia comportamental e que parte desse guarda-chuva maior que é a Análise do Comportamento (AC), desenvolveu seu fundamento, desmistificando e construindo a clínica. Ademais, dedicou um pedaço do primeiro livro para abordar sobre e colocou o Behaviorismo no subtítulo do segundo livro. Contudo, no último livro, houve uma mudança considerável do que foi construído.

A abordagem deixou de se colocar em relação direta com esse campo maior e passou a se referir diretamente a CBS (“contextual behavioral science”, nome dado às terapias de terceira onda). Embora ainda cite (menos) os pilares iniciais, a CBS ocupou o posto de pilar para ela, local que era destinado para o Behaviorismo, isso é um esvaziamento substancial no campo.

Vale pontuar que desde o início, a FAP se colocou disposta ao diálogo com outros saberes, como a conversa com o construído pelo Rogers (sendo primordial para FAP) e outro exemplo é o construído pelo Freud. A diferença é que o diálogo partia de um lugar -o campo comportamental- e na conexão dos pontos em comuns se construiu pontes, não uma mistura de tudo com suas contradições, sem uma base sólida. O primeiro livro da FAP lamenta o distanciamento e incompreensão em relação ao Behaviorismo. O curioso é que esse parece ser o rumo que a própria abordagem está trilhando.

Uma suposição sobre esse movimento é de que a FAP visaria se aproximar do público leigo. Contudo, não é uma aproximação como se fazia através do diálogo, ela ocorre através do apagamento da estrutura. O título da obra marca a posição de “descomplicada”, mas não parece uma simplificação do que já era construído -o que já seria complicado- e sim uma construção de algo diferente com o mesmo nome.

A perda ocorre por remover o lastro do que estava sendo construído, as relações conceituais. Por consequência, gera uma dificuldade no rastreio teórico do que sustenta hoje a abordagem. Além disso, abre caminho para ecletismo teórico, ponto que já é apontado no campo clínico comportamental. A aproximação a outras abordagens (que são incompatíveis entre si por conta das filosofias que as embasam) significa que está abandonando a própria filosofia base.

Soma-se a possibilidade do próprio esvaziamento teórico na CBS, já que pode se perder no referenciamento mútuo entre as abordagens. Uma circularidade do saber, sem pé nem cabeça. Contudo, para elaboração deste presente texto, só ocorreu o acesso aos textos e desenvolvimento da FAP, os pares da CBS podem estar fora dessa espiral em queda e com isso ser algo restrito da abordagem em questão. Apesar disso, a abordagem em questão é a maior preocupação e foco no momento.

A obra possui diferentes passagens em que recorre a CBS como fonte. Nota-se que se a FAP é uma integrante da CBS, ela também está se auto referindo para se sustentar e explicar, um paradoxo de loop infinito. Antes se referia a uma base sólida construída pela AC, agora se refere ao grupo em que pertence.

Há indícios que corroboram esses pontos. Um exemplo é o peso que dão a “valor”, um construto que a FAP pegou emprestado de outra abordagem. Valor seria um dos aspectos internos que mobilizam o sujeito, sem interferência externa, ou seja, uma construção mentalista de que uma ideia gera comportamento. Observa-se nesse exemplo que a própria FAP tinha formulado a concepção de self, com bases na AC, que ela abandonou para talvez realizar esse ecletismo teórico.

Um outro exemplo interessante é a utilização de termo de nível intermediário para explicar sua fundamentação e ação. Há trabalho consistente apontando tal movimento, além de indicar como isso empobrece a área e reduz os princípios behavioristas. A obra está repleta de situações em que recorrem a esses termos e novos conceitos para dar conta de temas que a base da AC domina e explica muito bem.

Vale pontuar que se distanciar de um saber é comum e necessário, pois a ciência se atualiza constantemente, com base nas novas evidências que são alcançadas. A AC é um campo da ciência, que se constrói dentro dos padrões da mesma. O afastamento a ela retira o respaldo científico, o que foi construído até aqui pelo campo. A abordagem se desloca para fora dessa trilha de evidências rumo a um local desconhecido.

Contudo, o exemplo mais claro dessa suposta zona que a FAP criou e está se afundando é em relação ao seu maior fundamento. A abordagem parte do princípio que somos seres sociais, isso implica em: se dedicar aos estudos sociais, aos comportamentos verbais, o convívio em grupo etc. Heloisa Teixeira ilustra bem sobre a importância da relação mútua entre indivíduo e sociedade em um trecho da sua posse na Academia Brasileira de Letras: “A língua não existe fora da sociedade e o tecido social não existe sem ela.”

O último livro da FAP apresenta a afirmação de que uma criança em uma tribo coletora-caçadora no centro-sul da África em 1940 teria uma vida semelhante a uma criança em 40 d.C. no mesmo local, pois o número de indivíduos com que interagiu seria similar. Frase que desconsidera totalmente tudo o que se sabe e estuda no campo social, uma afirmação reducionista e sem objetividade.

Ademais, indica uma falta de conhecimento básico sobre as relações humanas e do campo comportamental, como por exemplo sobre os três níveis de seleção de Skinner. O argumento parece advir do senso comum, sem sustentação científica. Além de carregar um teor preconceituoso: por causa da localidade e do modo da organização do trabalho, os autores indicam que uma população se mantém de forma semelhante por quase dois mil anos, em que não há alteração cultural, social, ambiental, relacional, etc.

Ressalta-se que toda a FAP parte do princípio social, mas hoje ela possui afirmações desse tipo. A passagem é marcante e pode ser um indício desse desprendimento da fundamentação teórica e do que a abordagem construiu nos primeiros livros. Parece que a abordagem vem se estruturando em contradições e ecletismo, se tornando mais uma no meio das práticas do tipo.

Nota-se um distanciamento tão grande a ponto de existir artigo que tenta traduzir o que a FAP está dizendo para termos comportamentais. Se a abordagem estivesse com a fundamentação epistemológica e coerência, não seria necessário tal ato, muito menos teria sentido.

Por fim, as impressões, reflexões foram elaboradas durante a realização do grupo de estudo da FAP, em que houve leituras conjuntas, buscas de materiais e debates. As inquietações foram se formando no decorrer desses encontros e mobilizaram a tentar entender o fenômeno. Além disso, criou a questão de qual FAP deveria seguir.

Há a necessidade de mais trabalhos sobre essa zona nebulosa, isso aqui é só uma breve aflição que transcorreu durante toda a obra. Novos estudos permitem melhor entendimento do fenômeno e geram possibilidades de novos caminhos a serem construídos diante disso.

A flexibilidade dos autores em relação a aceitar ou não tudo o que dizem também pode ser o ponto de partida. Assim como há liberdade para não seguir completamente o que os autores afirmam, também temos em não seguir o movimento das obras recentes da FAP.

Diante de tudo isso, uma proposta possível nesse cenário é de retomar as bases da AC, ao respaldo científico, à coerência epistemológica. Além de manter a abertura para dialogar com as diferentes propostas, tal qual a FAP fazia no começo e era rico. Ademais, vale buscar outras pessoas ou grupos que enfrentam os mesmos dilemas e estão se afastando dessa nova abordagem, para aprender com eles e construir/retomar o saber com base sólida.

A crítica é algo inerente à ciência e o que permite a construção e consolidação de saberes, não se pode perder isso de vista. A presente coluna é composta por ponderações e angústias diante desse rumo da abordagem. As impressões não são axiomas, também estão passíveis de críticas e discordância, ainda mais por não seguir todo protocolo do fazer científico, o que não tira a sua relevância.

Vale ler o livro, ler as obras anteriores, ver os artigos, se apropriar do conhecimento e ocupar o espaço. Além de que o presente texto só trouxe pequenos exemplos ilustrativos; a obra é farta de padrões que não seria possível se desdobrar em um só texto, talvez daria vários livros sobre o tema.

O desafio é grande, pois não existem os mesmos recursos e conhecimento das pessoas que levam adiante a abordagem, mas vale a pena o esforço. A FAP é uma abordagem rica e interessante, que transforma vidas e gera ótimos resultados na clínica. Se os desdobramentos dos autores incomodam tanto é pela potencialidade dessa abordagem.

Um relato pessoal: eu sigo, atuo e pretendo continuar nela, mas não nos moldes atuais em que ela se encontra, vamos dar um passo para trás e seguir outro caminho.

Referências:

Holman, G., Kanter, J., Tsai, M., & Kohlenberg, R. (2022). Psicoterapia analítica funcional descomplicada: guia prático para relações terapêuticas. Novo Hamburgo: Sinopsys.

Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (2001). Psicoterapia analítica funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas Santo André, SP: ESETec.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follette W. C., & Callagan, G. M. (2009). Um guia para a psicoterapia analítica funcional: consciência, coragem, amor e behaviorismo Santo André: ESETec.

Vandenberghe, L. (2017). Três faces da Psicoterapia Analítica Funcional: Uma ponte entre análise do comportamento e terceira onda. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 19(3), 206-219.

Muñoz-Martínez, A. M., & Follette, W. C. (2019). Quando o amor não é suficiente: O caso de amor terapêutico como um termo de nível intermediário na Psicoterapia Analítica Funcional. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 21(4), 451-466.

Leonardi, J. L. (2015). O lugar da terapia analítico-comportamental no cenário internacional das terapias comportamentais: Um panorama histórico. Perspectivas em análise do comportamento, 6(2), 119-131.

Xavier, R. N. (2021). Consciência, coragem e amor: análise behaviorista de objetivos da psicoterapia analítica funcional. Psicologia em Estudo, 26.

O GLOBO. Heloisa Teixeira toma posse na ABL: ‘Essa é a primeira vez que acontece uma sucessão entre mulheres’. Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/noticia/2023/07/28/heloisa-teixeira-toma-posse-na-abl-essa-e-a-primeira-vez-que-acontece-uma-sucessao-entre-mulheres.ghtml. Acesso em: 16 nov. 2023.

Hübner, M. M. C., Moreira, M. B., Silvares, E. F. D. M., Assumpção Junior, F. B., & Priszkulnik, L. (2012). Temas clássicos da psicologia sob a ótica da análise do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.

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Escrito por pedrohenrique

Graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atuo como Psicólogo Clínico (CRP 05/74312) sob a perspectiva da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP). Possuo um perfil no Instagram @psiphgoulart. Faço parte da Cooperativa Arigó de Psicólogos (Instagram: @somosarigo).

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