Terapia de Aceitação e Compromisso em 2024: Presente, Passado e Futuros possíveis (Parte 02)

O artigo a seguir é a continuação do texto cuja primeira parte foi publicada em 12 de junho de 2024. Clique aqui para ler a parte 01.

Como comentado anteriormente, a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e, mais amplamente, a Ciência Comportamental Contextual (CBS) constituem hoje um vasto e diverso campo de interesse, investigação e atuação sobre a experiência humana. O fato de termos diferentes pessoas refletindo sobre a ACT não é apenas algo “positivo”, mas algo vital para o seu desenvolvimento futuro. Com isso em vista, podemos ousar fazer um breve “exercício de futurologia” com base em recomendações de pesquisa e tendências atuais que apontam caminhos para o desenvolvimento da CBS (para um maior aprofundamento, leia o relatório da força-tarefa de estratégias e táticas de pesquisa da ACBS, Hayes et al., 2021).

Vislumbrando o Futuro – Fortalecendo a ponte entre ACT e RFT

Historicamente e em diferentes contextos, a relação entre a ACT e a Teoria das Molduras Relacionais (RFT) parece oscilar em seu nível de aproximação e distanciamento. Alguns exemplos podem ilustrar essa oscilação: o capítulo “Ambição científica, a relação entre a RFT e os termos de nível intermediário na ACT,” escrito por Barnes-Holmes e colaboradores (2015), sinaliza explicitamente uma preocupação sobre o desenvolvimento da ACT e o uso indiscriminado de termos não relacionados aos conceitos básicos funcionalmente descritos (ie. processos de Flexibilidade Psicológica caracterizados a partir do Hexaflex). Para esses autores, o desenvolvimento de uma teoria unificada no campo da Ciência Comportamental Contextual se beneficiaria de uma maior ênfase no “fluxo de conhecimento” que parte da pesquisa básica para a aplicada.

Uma perspectiva distinta pode ser encontrada na produção de outros autores, como Russ Harris (2019), que utiliza uma metáfora para posicionar o conhecimento sobre RFT como algo potencialmente útil, mas não imprescindível para a formação de terapeutas na ACT: “A boa notícia é que você pode ser um terapeuta eficaz em ACT sem saber nada sobre a RFT. Se o ACT é como dirigir seu carro, a RFT é como saber como o motor funciona: você pode ser um excelente motorista sem saber absolutamente nada sobre a mecânica.” (p. 26).

A despeito das diferentes visões sobre esse tema, é notável o interesse de muitos pesquisadores em prover análises teóricas e experimentais mais precisas e profundas sobre as intervenções da ACT fundamentadas na RFT e nos processos básicos da Análise do Comportamento (ie. Assaz et al., 2023; Luciano et al., 2021; da Silva Ferreira et al., 2021; McEnteggart, 2018). Também é notável o potencial de refinamento técnico que emerge a partir desses esforços, como, por exemplo, a conceitualização das noções de Fusão e Desfusão Cognitiva à luz da RFT (Ruiz et al., 2023), que fornece subsídios para um maior impacto clínico, na medida que caracteriza esses dois conceitos de nível intermediário como análogos a repertórios específicos de Responder Relacional aos conteúdos verbais privados (em coordenação e hierarquia, respectivamente). Com isso, é plausível esperar um número cada vez maior de publicações que enfatizem a relação entre ACT e RFT, sobretudo almejando uma maior precisão e profundidade na forma como as intervenções da ACT são oferecidas e treinadas.

Vislumbrando o Futuro – A Terapia Baseada em Processos

Seguindo uma via paralela à busca por um maior refinamento voltado para a aproximação entre a pesquisa básica e a aplicada na Análise do Comportamento (incluindo ACT e RFT), surge em 2017 uma proposta de expansão do diálogo entre diferentes escolas teóricas da psicologia empiricamente sustentadas, a partir de uma nova forma de conceitualizar a psicopatologia e organizar a atuação terapêutica: a Terapia Baseada em Processos (TBP). Idealizada inicialmente por Steven Hayes e Stefan Hofmann, a TBP é definida como um “meta-modelo” que orienta o desenvolvimento e a aplicação de intervenções clínicas em uma perspectiva idiográfica, em oposição a uma visão monotética hegemônica. Isso significa uma ênfase na interação particular de eventos que compõem o conjunto de acontecimentos, padrões e repertórios ao longo da história de vida de uma pessoa, ao invés de focar em categorias diagnósticas fechadas (Hayes & Hofmann, 2018; Hayes et al., 2019; Hofmann et al., 2021).

A TBP propõe que o desenvolvimento científico da Psicologia Clínica deve se descolar das pesquisas que enfatizam somente o uso de pacotes terapêuticos (ou seja, protocolos de abordagens nomeadas) para agrupamentos de sintomas específicos (como os transtornos descritos no DSM), em favor de pesquisas que explorem os processos subjacentes que levam ao adoecimento psicológico e/ou à melhora clínica (presentes em diferentes categorias diagnósticas e em diferentes propostas de intervenção), bem como os procedimentos úteis para mobilizar tais processos (Hayes, et al., 2019; Hayes & Hofmann, 2020). Além disso, os proponentes da TBP sugerem o uso de ferramentas próprias para esse fim, como as Análises Funcionais em Rede e o EEMM (Meta-modelo Evolucionário Estendido; Hofmann, et al., 2021).

Não por coincidência, a ACT é frequentemente apontada como um exemplo de Terapia Baseada em Processos. Isso fica evidente quando consideramos seu objetivo abrangente de mobilizar a Flexibilidade Psicológica através de diferentes processos de mudança clínica, como alternativas aos processos de Inflexibilidade Psicológica associados à psicopatologia (Ong, et al., 2024). Ainda que não haja consenso na comunidade de Terapias Comportamentais Contextuais sobre a real dimensão dos benefícios associados às inovações propostas pela TBP para a ACT, é inegável o quanto esse tema tem se mostrado presente em muitas publicações, eventos e espaços de interação da comunidade.

O artigo publicado por Ong e colaboradores (2024) tem sido matéria-prima para importantes discussões nesse campo, por exemplo, nas listas de e-mails da Associação para Ciência Comportamental Contextual (ACBS). Ao propor uma reformulação para o modelo de Flexibilidade Psicológica a partir do EEMM, o artigo sugere um direcionamento contextualizado para mais processos de mudança clínica (para além dos seis tradicionalmente descritos pelo Hexaflex), como, por exemplo, Processos Interpessoais, Reavaliação Cognitiva, Regulação Fisiológica e Desapego, algo que pode sinalizar novos caminhos de intervenção para da ACT.

Comentário final – ACT, feita por quem e para quem?

Um outro tópico recorrente nas discussões da comunidade interessada pela ACT é: “quem são as pessoas que lideram o desenvolvimento desse modelo de compreensão da experiência humana e quais são as pessoas que podem se beneficiar plenamente dele?”. Frequentemente, aponta-se que as pesquisas em Psicologia Clínica têm suas amostras centradas na população de países ocidentais, democráticos, com bom nível educacional, industrial e econômico (WEIRD) e como isso pode gerar uma distorção na compreensão de como as evidências de pesquisa podem informar a atuação de profissionais em diferentes contextos socioculturais (Sahdra, et al., 2024).

Além disso, destaca-se que muitos dos autores da área são homens, brancos, heterossexuais (e também de países WEIRD), algo que certamente não representa acuradamente as pessoas que atuam profissionalmente com a ACT (em sua maioria, mulheres). Igualmente, muitos dos pesquisadores que desenvolvem diferentes modelos terapêuticos não possuem necessariamente uma prática clínica regular, o que pode colocar em xeque o quanto algo desenvolvido no nível de pesquisa é de fato coerente para o uso cotidiano no contexto aplicado e o quanto seria capaz de suprir as necessidades dos clínicos.

Em suma, o desenvolvimento futuro da Terapia de Aceitação e Compromisso deve se apropriar das inovações derivadas de seu vasto campo de pesquisa, porém colocando em primeiro plano a compreensão do conhecimento científico como um produto da ação conjunta de um grupo de seres humanos, reconhecendo assim os inúmeros vieses que podem surgir dessa atividade. Ancorado no Contextualismo Funcional, o progresso da ACT deve ser pragmático e voltado para o mundo real: o modelo não precisa ser o mais bonito ou o mais rebuscado, desde que seja o mais útil no seu objetivo abrangente de promover alívio ao sofrimento humano e a conexão com experiências de vida significativas, para pessoas de verdade, de forma sensível à diversidade humana.

Referências

Assaz, D. A., Tyndall, I., Oshiro, C. K., & Roche, B. (2023). A process-based analysis of cognitive defusion in acceptance and commitment therapy. Behavior Therapy, 54(6), 1020-1035.

Barnes‐Holmes, Y., Hussey, I., McEnteggart, C., Barnes‐Holmes, D., & Foody, M. (2015). Scientific ambition: The relationship between relational frame theory and middle‐level terms in acceptance and commitment therapy. The Wiley handbook of contextual behavioral science, 365-382.

Harris, R. (2019). ACT made simple: An easy-to-read primer on acceptance and commitment therapy. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (Eds.). (2018). Process-based CBT: The science and core clinical competencies of cognitive behavioral therapy. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., & Hofmann, S. G. (Eds.). (2020). Beyond the DSM: Toward a process-based alternative for diagnosis and mental health treatment. New Harbinger Publications.

Hayes, S. C., Hofmann, S. G., Stanton, C. E., Carpenter, J. K., Sanford, B. T., Curtiss, J. E., & Ciarrochi, J. (2019). The role of the individual in the coming era of process-based therapy. Behaviour Research and Therapy, 117, 40-53.

Hayes, S. C., Merwin, R. M., McHugh, L., Sandoz, E. K., A-Tjak, J. G., Ruiz, F. J., … & McCracken, L. M. (2021). Report of the ACBS Task Force on the strategies and tactics of contextual behavioral science research. Journal of Contextual Behavioral Science, 20, 172-183.

Hofmann, S. G., Hayes, S. C., & Lorscheid, D. N. (2021). Learning process-based therapy: A skills training manual for targeting the core processes of psychological change in clinical practice. New Harbinger Publications.

Luciano, C., Törneke, N., & Ruiz, F. J. (2021). Clinical behavior analysis and RFT: Conceptualizing psychopathology and its treatment. Oxford handbook of acceptance and commitment therapy, 109-142.

McEnteggart, C. (2018). A brief tutorial on acceptance and commitment therapy as seen through the lens of derived stimulus relations. Perspectives on Behavior Science, 41(1), 215-227.

Ong, C. W., Ciarrochi, J., Hofmann, S. G., Karekla, M., & Hayes, S. C. (2024). Through the extended evolutionary meta-model, and what ACT found there: ACT as a process-based therapy. Journal of Contextual Behavioral Science, 32, 100734.

Ruiz, F. J., Gil-Luciano, B., & Segura-Vargas, M. A. (2023). Cognitive defusion. The Oxford handbook of acceptance and commitment therapy, 206.

Sahdra, B. K., King, G., Payne, J. S., Ruiz, F. J., Kolahdouzan, S. A., Ciarrochi, J., & Hayes, S. C. (2024). Why Research from Lower-and Middle-Income Countries Matters to Evidence-Based Intervention: A State of Science Review of ACT Research as an Example. Behavior Therapy.

da Silva Ferreira, T. A., Simões, A. S., Ferreira, A. R., & Dos Santos, B. O. S. (2020). What are values in clinical behavior analysis?. Perspectives on Behavior Science, 43, 177-188.

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João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e das Ciências Comportamentais Contextuais no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

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