De onde vem o sofrimento das mulheres?

Escrito por Camila Lourenço, Elizara Matos, Isla Cezzani e Julia Moreira

Nascemos e crescemos dentro de uma cultura e a partir dela aprendemos, com o  desenvolvimento da linguagem, a enxergar a nós mesmas. Estabelecemos relações com nosso mundo interno (pensamentos, emoções, memórias), tomamos notas de inúmeras regras e expectativas sociais, e definimos, conceitualmente, quem nós somos – ou quem deveríamos ser. Homem, mulher, branca, preta, indígena, lésbica, gay. Nesse sentido, muito embora partimos do acordo que o sofrimento é inerente à experiência humana, é sensato perceber que o sofrimento não acontece da mesma forma, intensidade e com o mesmo curso para todas as pessoas. Ou seja: nosso sofrimento é contextual e precisa levar em consideração perspectivas que refletem sobre relações econômicas e sociais. Sendo assim, vamos juntas considerar as relações entre contexto social e o sofrimento das mulheres. 


Mas afinal, o que é ser mulher? Não temos como falar sobre o sofrimento das mulheres, sem antes apresentarmos uma breve conceituação de gênero e as diferentes experiências de ser mulher. De acordo com Zanello (2018), a palavra “gênero” tem sido utilizada em pelo menos três sentidos diferentes: 

1. para apontar o binarismo masculino e feminino, tanto no sentido metafísico, como também de forma “naturalizante/biologizante”. A autora destaca que o binarismo é uma construção histórico-social, criada, readaptada e mantida por diversos mecanismos, dentre eles as tecnologias de gênero.
2.
para sublinhar a relação entre performances de gênero, valores e estereótipos, ditos femininos ou masculinos e certas especialidades corporais. Assim, a anatomia (pênis ou vagina) deveria aparecer ligada, no primeiro caso, à masculinidade e, no segundo, à feminilidade. Nesse campo discute-se as questões cis e trans.
3. para apontar a orientação sexual, a qual se baseia em um pressuposto de heterossexualidade compulsória. Uma das premissas aqui é a ideia do sexo procriativo e uma naturalização da sexualidade.

Percebe-se a complexidade e necessidade de mais discussões dessa temática. No momento, não vamos adentrar no assunto, mas sugerimos a leitura dos livros
1. Saúde mental, gênero e dispositivos; 
2. Prateleira do amor, ambos da autora Valeska Zanello.

“O caráter social da doença mental se expressa objetivamente na sua distribuição desigual entre homens e mulheres e entre diferentes classes sociais” (Zanello e Costa e Silva, p. 273). Diversos autores têm encontrado dados que demonstram que os Transtornos Mentais Comuns (TMC), como os transtornos de ansiedade e depressão, acometem mais frequentemente as mulheres. Seguem alguns estudos que ilustram tal afirmativa:

Zanello & Costa e Silva (2012) analisaram os sintomas e diagnósticos encontrados em (72) prontuários de pacientes homens e (165) prontuários de pacientes mulheres de dois grandes hospitais psiquiátricos do Distrito Federal. A frequência dos sintomas foi contabilizada da mesma maneira que os diagnósticos, e observou-se que 27,5% dos diagnósticos masculinos e 59,6% dos femininos podem ser considerados transtornos mentais comuns. Além disso, o perfil biométrico levantado aponta para a prevalência de mulheres, negras, pobres e domésticas como usuárias destes serviços.


Em um estudo epistemológico incluindo 2.057 mulheres com 15 anos ou mais de idade, selecionadas através de amostragem aleatória por conglomerado, buscou avaliar a associação entre sobrecarga doméstica e a ocorrência de transtornos mentais comuns em mulheres da zona urbana do município de Feira de Santana – BA. (Pinho & Araújo, 2012). Como resultado, foi identificado que mulheres com alta sobrecarga doméstica apresentaram prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) mais elevada do que as mulheres com baixa sobrecarga. Sustentando a hipótese de que a baixa gratificação e a falta de visibilidade na realização do trabalho doméstico constituem quadro determinante para o adoecimento psíquico de mulheres.

Em uma pesquisa realizada por meio de entrevistas e com o objetivo de analisar variáveis de gênero na construção e manutenção do sofrimento psicológico em homens e mulheres (Zanello, Fiuza & Costa, 2015), apontou-se a prevalência de variáveis culturalmente relacionadas ao gênero feminino no sofrimento experienciado pelas mulheres, sendo as mais frequentes a maternidade (100%) e casamento (85,7%). Também tiveram destaque outras variáveis como violência, pressão estética e sentimento de ter seu sofrimento invisibilizado, seja por outras pessoas ou pela própria mulher. Já para os homens, apontou-se a prevalência de variáveis relacionadas à masculinidade, como trabalho (100%) e vida sexual (87,5%). De acordo com os autores, “(…) o discurso dos homens e das mulheres revelou o quanto as questões geradoras de sofrimento psíquico tem sua base nos estereótipos de gênero” (p. 245). 

Por sermos mulheres e vivermos em uma sociedade patriarcal, estamos mais vulneráveis a sofrer por questões que se relacionam com variáveis culturais e regras estabelecidas pelo contexto social, como pressão para seguir padrões de beleza e ser mais aceita e desejada, pressão para casar e ter filhos, ter um padrão comportamental mais passivo, sendo “delicada” e “gentil”, pressão para assumir papéis de cuidado, seja doméstico, de familiares ou de filhos, entre outros. 

Os dados citados acima trazem pistas diretas sobre a relação entre o sofrimento das mulheres e as regras estabelecidas por uma cultura patriarcal. Nesse sentido, contestamos explicações essencialistas que justificam nossas dores e dificuldades a partir de uma  lógica que reforça a ideia de uma “essência” que compõe as mulheres como frágeis, delicadas e vulneráveis – ou até mesmo, histéricas. Aqui nos ancoramos em uma perspectiva contextual, buscando descrever a relação entre situações e eventos e o nosso comportamento (Freitas et al, 2021).  Em outras palavras, relacionamos a pressão estética, as exigências e a sobrecarga direcionada culturalmente às mulheres, com as inseguranças, ansiedades e processos depressivos que as mulheres correm o risco de enfrentar. 

Segundo Pinheiro e Oshiro (2019), as variáveis de gênero não podem ser ignoradas no atendimento clínico de mulheres, pois as análises de caso precisam incluir o nível cultural e, portanto, tais variáveis que exercem controle no comportamento, seja no de nossas clientes ou de nosso comportamento como terapeutas. Ressalta-se a importância de abordar essa temática no processo terapêutico como forma de intervenção, também para validar o sofrimento das mulheres atendidas. 

Apesar de compartilharmos muitas experiências e dores pelo simples fato de sermos mulheres, outras tantas dores são específicas de determinados grupos, por conta de interseccionalidades como de raça e classe social. Por  exemplo, mulheres pretas são atravessadas pelo racismo, diferentemente de mulheres brancas; todas sofremos pressão estética, mas mulheres gordas passam por situações distintas de mulheres magras por estarem mais “distantes” do padrão estético atual. Assim como mulheres trans, com alguma deficiência, indígenas, amarelas, pobres, ricas, jovens, idosas, mães, etc. experimentam singularidades e consequentemente maior ou menor preterimento afetivo e vulnerabilidade social. 

Diante das reflexões apresentadas, torna-se evidente que o sofrimento das mulheres não pode ser compreendido de maneira isolada ou descontextualizada. Ele é profundamente enraizado nas estruturas sociais, culturais e econômicas que moldam nossas vidas e identidades. A análise dos TMC e outras formas de sofrimento psíquico revela como as pressões e expectativas impostas pelo patriarcado influenciam desproporcionalmente a saúde mental das mulheres. Essas pressões incluem padrões estéticos, exigências de comportamento, sobrecarga doméstica e a invisibilidade do trabalho não remunerado, que contribuem significativamente para o adoecimento psíquico.

As estatísticas e estudos citados confirmam a necessidade de uma abordagem sensível ao gênero na prática clínica e na formulação de políticas públicas. O reconhecimento de que as variáveis de gênero são determinantes cruciais no bem-estar mental das mulheres aponta para a importância de intervenções psicoterápicas e sociais que validem e abordam essas influências contextuais. É essencial combater explicações essencialistas que perpetuam a ideia de uma suposta fragilidade inerente às mulheres e, em vez disso, adotar uma perspectiva que reconheça a complexa intersecção entre gênero, raça, classe social e outras dimensões da identidade.

Portanto, para promover uma real melhoria na saúde mental das mulheres, é imperativo que psicólogas e outros profissionais da saúde mental considerem essas variáveis contextuais em suas práticas. Apenas assim poderemos desenvolver estratégias mais eficazes, inclusivas e equalitárias que respondam às necessidades diversas e específicas das mulheres, promovendo um ambiente terapêutico onde seu sofrimento seja não apenas compreendido, mas validado e abordado de maneira integrativa. Assim, avançamos no caminho para uma sociedade mais justa e equitativa, onde as vozes e experiências das mulheres sejam respeitadas e valorizadas em toda sua diversidade.

Referências

FREITAS, L. P. P. et al. Noções sobre os fundamentos teóricos da terapia de aceitação e compromisso. UniAcademia, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 10-20, 2021. Disponível em: [URL]. Acesso em: 10 maio 2024.

PINHEIRO, R. C. S.; OSHIRO, C. K. B. Variáveis de gênero que terapeutas devem estar atentas no atendimento a mulheres. In: PINHEIRO, R.; MIZAEL, T. (Orgs.). Debates sobre feminismo e Análise do Comportamento. Fortaleza: Imagine Publicações, 2019. p. 220-240.

PINHO, P. S.; ARAÚJO, T. M. Associação entre sobrecarga doméstica e transtornos mentais comuns em mulheres. Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 15, n. 3, p. 560-572, 2012.

ZANELLO, V. Prateleira do amor: sobre mulheres, homens e relações. Curitiba: Appris, 2022.

ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.

ZANELLO, V.; COSTA E SILVA, R. M. Saúde mental, gênero e violência estrutural. *Revista Bioética (Impr.), v. 20, n. 2, p. 267-279, 2012.

ZANELLO, V.; FIUZA, G.; COSTA, H. S. Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico. Fractal: Revista de Psicologia, v. 27, n. 3, p. 238-246, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483. Acesso em: 15 maio 2024.

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    Escrito por SIG Mulheres na ACBS

    Coluna do Grupo de Interesse Especial (SIG) em Mulheres na ACBS Br. Espaço para discussão de variáveis de gênero nas terapias comportamentais contextuais. Projeto organizado por Isla Cezzani, Franciele Justin, Gabrielly Lima, Camila Lourenço, Dhawyne Luiza, Elizara Vieira, Julia Moreira, Manuela Pereira, Taciana Ragazzi, Thaynara de Castro e Patricia Di Lorenzo

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