O que é o que é: aquilo que Analistas do Comportamento mais têm em comum e ainda assim naquilo em que muito divergem?
Acertou quem pensou na análise/avaliação/formulação funcional, ou de contingências. Já notou a polêmica, né? Sofremos com a inconsistência da terminologia à metodologia para conduzir essa análise (Toscano, Macchione e Leonardi, 2019) e é urgente a necessidade de comunicar teoria e prática, principalmente para o trabalho na clínica comportamental.
Para começar situando, existem duas maneiras típicas de conduzir uma análise funcional: experimental e comportamentalmente. Na experimentação pesquisadores fazem testes com delineamento e controle experimental a fim de verificar as variáveis envolvidas na função de uma resposta, enquanto na análise funcional comportamental, realizada habitualmente pelos clínicos, são levantadas hipóteses sobre as contingências em operação na vida e no relato do cliente que só se validam pelos resultados da intervenção. É a condução da análise comportamental que desdobro um pouco mais neste texto.
Estamos atendendo um cliente. Tanto ao analisar o conteúdo da sua fala (história de vida, experiências fora da sessão) como observando o seu comportamento em interação conosco, nos atentamos às contingências: identificamos as relações entre resposta e consequência que ocorrem sob controle de estímulos antecedentes, proximais (SDs) e distais (Operações Estabelecedoras). Fazemos isso pragmaticamente, selecionando as classes de respostas relacionadas às dificuldades que trouxeram o cliente para a psicoterapia. Ao aplicar as intervenções baseadas nas análises funcionais, distinguimos entre contingências de origem (quando ocorreram e foram selecionadas as primeiras respostas emitidas) e contingências de manutenção, que sustentam no repertório do cliente determinada classe de respostas. Vamos a um exemplo, elaborado originalmente por Zamignani e Banaco (2005), mas incrementado com um pouco de liberdade poética.
Imagine que João, um tímido rapaz cursando o primeiro ano de graduação, teve um ataque de pânico enquanto assistia à aula de uma disciplina bem difícil, ministrada por aquele típico professor carrasco. Na hora fatídica, João percebeu seu coração disparar, seu corpo suar freneticamente e, aterrorizado, sentiu o ar faltando. Afoito para fazer aquilo cessar, ou, pelo menos, para amenizar a intensidade das horríveis sensações disparadas no seu corpo, João passou a puxar o ar o mais rápido que pôde, respirando num ritmo violento, e então saiu em disparada rumo a um lugar mais arejado. Fora da sala de aula, João não só encontrou uma brisa leve para respirar como, quase imediatamente, foi encontrado por dois colegas preocupados com a saída rompante. Vendo João sofrer um ataque de pânico, os colegas pegaram um copo d’água bem gelada para ele e ficaram fazendo companhia, conversando em tom ameno sobre suas sensações até que elas se apaziguassem. Interrompida a crise, os colegas chamaram um táxi para levar João de volta para casa, não sem prometerem as anotações das matérias que ele estava perdendo. E então, no dia seguinte, de volta à sala de aula, em vez de mais calmo João estava muito ansioso, temendo ter novamente as sensações desesperadoras da última vez… Desabafou com os novos amigos sobre o que estava sentindo, que o aconselharam ir para casa “relaxar”, assegurando-o de que iria “ficar tudo bem” e de que continuariam repassando os resumos das aulas para ele.
Vou interromper a história aqui, porque esse pequeno recorte é suficiente para ilustrarmos como seria fazer uma análise funcional [comportamental] de João, que nos procurou queixando dos ataques de pânico e dos problemas que isso tem causado na sua vida, como perder as aulas da faculdade.
Se primeiro João sofreu uma crise de pânico, evento repleto de estimulação aversiva e operantes de fuga, o que o pareamento de estímulos (incluindo suas respostas públicas e privadas) ocasionou foi esquiva de estímulos condicionados no episódio. Agora a situação de sala de aula tornou-se aversiva, contendo SDs que João evitaria contato, com ou sem a eliciação dos respondentes do pânico sentido na primeira ocasião. Mas não só o ambiente físico (sala de aula) ou interno (corpo de João) adquiriram função antecedente; os colegas (ambiente social) estabeleceram função operante para suas respostas ao reforçar essa parte de seu repertório: os pedidos indiretos de ajuda, vocais (e.g., falar sobre o mal-estar) e não-vocais (e.g., sair de sala, mudar a postura corporal), que entraram para uma classe mais ampla, controlada pela atenção e cuidado das pessoas ao redor.
Se nós, agora terapeutas de João, levássemos em consideração inadvertidamente apenas as contingências de fuga-esquiva da sala de aula, conduzindo estritamente uma exposição gradual para dessensibilização sistemática, poderíamos nos frustrar com a efetividade do consolidado procedimento… Isso porque as consequências controladoras em voga tornaram-se, sobretudo, as sociais; além de permanecer na sala de aula e passar na disciplina, João precisa de um repertório alternativo ao que vem emitindo para cativar as pessoas, que até então se aproximaram dele e o fizeram se sentir especial por respostas bastante custosas para ele e, num curto período de tempo, de alto custo também para os amigos.
O que podemos, então, fazer a mais pelo João, além da condução de dessensibilização sistemática?
Abrir a análise das contingências sociais para ele ensinando o olhar funcional para ampliar autoconhecimento e, assim, aprimorar o autocontrole é um caminho muito seguido por analistas do comportamento. Por essa via de intervenção, ensinamos João a refinar seu comportamento verbal, i.e., a saber se descrever em contingências de reforçamento. Assim ele aprenderia a evitar comportamentos do tipo alertado pelo terapeuta, sabendo dizer o que fazer em vez daquilo que vem fazendo (“não posso ficar reclamando, quero ser querido por quem eu sou, não pelos meus sintomas”). O contra é que talvez também emergissem respostas verbais punitivas nos momentos em que caísse na cilada advertida pelo terapeuta (“eu não tenho jeito mesmo, já tô me vitimizando de novo!”). Como lidar com essas limitações?
Bifurcando a via de aprendizagem por instrução temos o caminho da aprendizagem pela modelagem. Ora, se são as contingências interpessoais em operação na vida de João que evocam seu repertório-problema, a contingência social terapeuta-cliente é um acesso ao vivo e a cores ao repertório de melhora: temos a chance de nos interessarmos por João, não somente por seus sintomas, e selecionar um novo repertório com que ele age em função de modificar o comportamento de outro indivíduo. Maly Delitti traduz um artigo de Follette, Naugle e Linnerooth (1999) sobre a avaliação funcional em que o último parágrafo cai como uma luva para essa consideração.
“Entretanto, uma conceitualização funcional do caso deve render uma estratégia da intervenção que ofereça substancialmente mais a um cliente do que meramente reduzir seus sintomas. Deve se conduzir uma análise completa do histórico dos clientes, do ambiente e do repertório comportamental; deve seguir que se procure otimizar sua funcionalidade em todos os domínios sem enfatizar estados de patologia ou de doença (Follette, 1997; Follette, Bach & Follette, 1993). O objetivo seria ensinar os clientes a manipular eficazmente seus ambientes para obter os níveis máximos de reforçamento e aumentar os reforçadores potenciais sem se contrapor aos direitos dos outros. Planejar uma intervenção funcionalmente baseada é procurar ensinar um cliente a estar disposto a experimentar a vida sem medo do medo. Uma intervenção ensinaria o cliente a estar sob o controle dos reforçadores auto-identificados que conduziriam às experiências ótimas de liberdade e de controle. O cliente emergiria com uma compreensão de como antecipar consequências e influenciar aqueles elementos de seu ambiente que conduzirão a comportamentos relacionados à saúde. Aprender a fazer uma conceitualização e uma intervenção funcionais do caso requer diligência, criatividade, e trabalho, mas os benefícios potenciais para o terapeuta e o cliente são igualmente bons e valem o esforço.”
Podemos estar diante de alguém que conhece toda a história de Star Wars, é habilidoso em squash, ressente profundamente o relacionamento com os pais, tem um medo avassalador da solidão e ama cachorros; se faz parte da vida de João, se ele se envolve ou está implicado naquilo, temos a oportunidade de reagir à sua experiência. Usamos gestos, expressões e olhares para nos comunicar, além da própria fala, e incentivar o autotato de nossos clientes. Comentamos assuntos e fazemos perguntas interessadas neles; permanecemos presentes com nossa disposição de compreendê-los e de ver sua história como única e intrigante, abertos para responder às potencialidades e vulnerabilidades como algo valioso que nossos clientes têm. E aqui cabe um adendo: no interpessoal, oferecemos reforçadores naturais, não arbitrários; dizer algo que se pareça com “mandou bem” pode soar forçado e, portanto, pouco reforçador. Se reforço é o que aumenta a frequência de uma resposta e queremos que João passe a responder com maior variabilidade na interação com o outro, a demonstração de interesse genuíno do terapeuta em João é que reforça seu eu (self; Moreira et al., 2017). A generalização para relações da vida cotidiana das respostas assertivas emitidas e reforçadas em terapia garantiria que João passasse a emitir tatos mais puros para cativar a atenção, o interesse das pessoas, e mandos diretos para atender seus desejos e suas necessidades. As crises de pânico se tornariam absolutamente substituíveis, portanto.
Por ser um processo contínuo e dinâmico, o analista do comportamento utiliza a análise funcional como um instrumento de avaliação e de intervenção, sem momento definido, mas simultânea e correlacionadamente. É uma forma de avaliação orientada para desenvolver um tratamento individualizado, sob medida, como o pensado para João. O processo todo poderia ser resumido assim: identificamos o comportamento-problema, com suas variáveis antecedentes e consequentes; elaboramos uma proposta de intervenção; executamos e monitoramos o progresso do que estamos realizando; e, então, avaliamos a eficácia da nossa intervenção. Nenhuma dessas etapas pode ser prescindida, porque a falta de uma sequer tornaria a avaliação comprometida com qualquer coisa que não o cliente de que estamos diante, tentando compreender e ajudar efetivamente. Nas palavras de Vandenberghe (2002, v. 4, p.42):
“Paradigmaticamente, a análise funcional é uma abordagem complexa e recursiva e significa uma quebra com o empirismo tradicional. A sua complexidade implica na aceitação de que toda análise será incompleta. Implica em sempre continuar experimentando, sem jamais aceitar uma “sacada” como sendo a explicação definitiva. Implica ainda em aceitar que o processo diagnóstico só termina quando a terapia está encerrada. Tal processo diagnóstico só visa a certos aspectos do relacionamento entre o indivíduo e o seu ambiente e não cede para a ilusão de entender o sujeito inteiramente.”
Follette, W. C.; Naugle, A. E; Linnerooth, P. J. (1999). Functional alternatives to traditional assessment and diagnosis. Em M. J. Dougher (ed.). Clinical Behavior Analysis, cap. 5, pp. 99-125. Trad. Mally Delitti.
Moreira, F. R., Silva, E. F. da, Lima, G. de O., Assaz, D. A., Oshiro, C. K. B., & Meyer, S. B. (2017). Comparação entre os conceitos de self na FAP, na ACT e na obra de Skinner. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva , 19(3), 220-237.
Toscano, M. P., Macchione, A. C., & Leonardi, J. L. (2019). O uso da análise funcional na literatura brasileira de terapia comportamental: uma revisão teórico-conceitual. Perspectivas Em Análise Do Comportamento, 10(1), 98-113.
Vandenberghe, Luc. (2002). A prática e as implicações da análise funcional. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 4(1), 35-45.
Zamignani, D. R.; Banaco, R. A. (2005). Um panorama analítico-comportamental sobre os transtornos de ansiedade. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva 7(1), 77-92.