Mindfulness: do neoliberalismo ao social

tradução do texto de Ronald Purser, originalmente publicado aqui

Quarenta anos atrás, comecei a estudar o budismo e a praticar várias formas de meditação. Com base em meus estudos e encontros, tenho um profundo apreço, gratidão e respeito pela tradição budista. A ascensão meteórica da “revolução da atenção plena (mindfulness) ”, no entanto, me pegou de surpresa. Fiquei perplexo com a forma como a atenção plena, que por vários milênios tem sido parte integrante do caminho espiritual budista, de repente se transformou em uma técnica de autoajuda domesticada e uma panacéia amplamente elogiada para garantir praticamente qualquer desejo da classe média – de sexo consciente a fazer uma grana apostando em ações.

Como será que a meditação budista – antes adotada por escritores Beat, artistas boêmios e hippies, e que era um movimento contracultural, antiestablishment e anti-materialista – se tornou uma indústria de US $ 1 bilhão calorosamente recebida pelos magnatas corporativos no Fórum Econômico Mundial ?

Ron Purser

Também sou professor de administração e ex-consultor de empresas. Quando as companhias começaram a introduzir programas de mindfulness como método para aumento de desempenho e produtividade, senti que era meu dever moral intervir. Em 2013, publiquei (com David Loy) um artigo de blog intitulado “Beyond McMindfulness” (no Huffington Post) questionando a eficácia, a ética e os interesses estreitos dos programas corporativos de mindfulness. Para nossa surpresa, ele se tornou viral e nos encontramos no meio de um acalorado debate sobre as virtudes e vícios dessa última moda corporativa.

Muitos de meus colegas budistas me disseram que estavam satisfeitos por eu ter tido a coragem de falar a verdade, questionando como as práticas de atenção plena estavam sendo cooptadas e adaptadas a interesses corporativos sorrateiros. Nosso artigo abriu a caixa de pandora que estava trancada, e mais e mais críticas à atenção plena apareceram na mídia, apelidadas de “mindfulness backlash.” (reações abruptas contra o mindfulness).

Ao cortarmos um pouco esse hype sobre mindfulness, mais questões começaram a ser levantadas. Para que serve a atenção plena? As intervenções baseadas em mindfulness são limitadas a um paliativo para o alívio do estresse individual e higiene mental? Ou podem se desenvolver de forma a questionar as causas estruturais da injustiça e do sofrimento no mundo ocidental moderno? Ou a atenção plena está sendo usada para acomodar o status quo? A prática da atenção plena é o ingrediente redutor que pode funcionar como uma técnica eticamente neutra, independente de seu contexto? O monge budista americano Bhikkhu Bodhi tem sido um crítico franco da apropriação e mercantilização do movimento mindfulness: “sem uma crítica social aguda, as práticas budistas poderiam facilmente ser usadas para justificar e manter o status quo, tornando-se um reforço do capitalismo de consumo. ” Parece que o capitalismo ganhou essa batalha. Mindfulness é agora uma indústria, vendendo um sem-número de técnicas, de aplicativos de meditação e livros de colorir.

Para aqueles que estão colocando grana no bolso com a indústria da atenção plena, o capitalismo em si não é inerentemente problemático. Mindfulness é comercializado e vendido como uma técnica de autoajuda que pode permitir que as pessoas funcionem de forma mais eficaz dentro da ordem neoliberal, em vez de questionar as causas estruturais do sofrimento social. Para os defensores do mindfulness, é o fracasso dos indivíduos em serem autoconscientes, lúcidos e resilientes, em uma economia precária e incerta, o grande problema, e não a estrutura neoliberal do mundo e das relações de poder. Chris Goto-Jones, um observador astuto e crítico da ingenuidade política do movimento mindfulness, observa: “Não é uma revolução dos desesperados ou marginalizados na sociedade, nem é o conflito apaixonado do fundamentalismo religioso, mas sim um ‘pacífica revolução ‘sendo liderada por brancos de classe média … Para algo que quer se apresentar como uma ‘revolução’, este movimento mostra um conservadorismo notável”.

Ensinar crianças da cidade a fazerem uma “pausa de 3 minutos para respirar” não responde em nada ao racismo sistêmico que nos circunda.

Ron Purser

Até recentemente, houve pouco exame de como a ideologia neoliberal e os imperativos capitalistas influenciaram e exploraram a maneira como a atenção plena é utilizada como uma tecnologia comportamental moderna do self. A maioria dos programas contemporâneos de mindfulness são cúmplices dos valores neoliberais que enquadram mindfulness principalmente como uma prática instrumental e privatizada. Esse enquadramento despolitiza essencialmente a atenção plena, excluindo estratégias que poderiam fomentar uma crítica radical das causas e condições do sofrimento social implicadas nas estruturas de poder e nos sistemas econômicos da sociedade capitalista.

Não é nenhuma surpresa, então, que a atenção plena tenha um apelo público tão difundido. Os líderes do movimento diagnosticaram nosso mal-estar cultural: a sociedade está corrompida apenas porque a população em geral está distraída e presa em ruminações mentais sobre o passado e o futuro. Se as pessoas estivessem mais atentas ao momento presente, seus mundos seriam infinitamente mais gratificantes. Além disso, se as pessoas parassem de se envolver em “fazer” intermináveis ​​e se retirassem para seus próprios mundos privados, elas poderiam encontrar paz de espírito”.Esse diagnóstico parece um pouco conveniente demais.

o estresse que as pessoas estão experimentando supostamente não tem nada a ver com suas reais condições materiais, nem com as exigências irracionais impostas a elas por culturas corporativas tóxicas e viciadas em trabalho. Em vez disso, o estresse é entendido como um assunto privado, subjetivo e interior – um problema pelo qual os indivíduos precisam assumir a responsabilidade por conta própria

Ron Purser

Isso é o que o falecido psicólogo crítico David Smail se refere como “voluntarismo mágico”, em que o peso e o locus do sofrimento psicológico e da mudança dependem inteiramente da vontade (ou, agora podemos dizer, do mindfulness) do indivíduo. No meu livro “McMindfulness”, eu desafiei a narrativa dominante que privatiza as causas do estresse e mostro como a atenção plena se tornou a nova espiritualidade capitalista – uma técnica da moda para controle social e auto-pacificação. Mindfulness como mera autoajuda é impotente para desafiar o que é injusto, culturalmente tóxico e ambientalmente destrutivo. Na sociedade capitalista tardia, a ganância, o ódio e a ilusão – os três “venenos mentais” que causam o sofrimento humano – não estão mais confinados às mentes individuais. Essas aflições proliferaram em nossa sociedade – infectando todo o caráter social de nossa cultura. É a natureza interligada do sofrimento social e sua institucionalização que tornou seus perpetradores virtualmente invisíveis.

Ao ver o sofrimento como um assunto privado, apenas como algo que um indivíduo deve superar por meio do autocuidado, a atenção plena funciona como uma anestesia social. Praticando diligentemente “atenção sem julgamentos para o momento presente”, os gurus da atenção plena nos dizem que podemos trabalhar a “aceitação das coisas como elas são”. E ao transferir o fardo da responsabilidade para os indivíduos na administração do seu próprio bem-estar, privatizando e patologizando o estresse, a chamada “revolução da atenção plena” desabou aos pés da lógica neoliberal individualista.

Precisamos lembrar que nossos interiores psicológicos estão emaranhados com nossos exteriores sociopolíticos. Olhando para o clássico de C. Wright Mills, The Sociological Imagination, entendemos que o Calcanhar de Aquiles do movimento da atenção plena é a absurda desconexão entre problemas pessoais e questões públicas. Como o sofrimento pessoal está enredado em uma rede interdependente de relações, a atenção plena pode ser parcial ou totalmente ineficaz na redução do sofrimento último, a menos que possa gerar atenção coletiva, construir solidariedade e fomentar comunidades de luta e resistência. Senão, resta como anestesia.

Programas de treinamento de mindfulness foram desenvolvidos como métodos terapêuticos para autogestão, não para transformação social e cura coletiva. Os programas de atenção plena nas escolas, por exemplo, não têm meios pelos quais alunos e professores possam desenvolver uma compreensão crítica de seus contextos sócio-políticos e históricos. Programas assim são ineptos em promover uma consciência crítica, o que Paulo Freire chamou de “concientização”, a conexão dos problemas pessoais com as situações sociais atormentadas pela violência, pobreza e dependência de drogas. Ensinar crianças da cidade a fazerem uma “pausa de 3 minutos para respirar” não responde em nada ao racismo sistêmico que nos circunda.

Os programas corporativos (empresariais) de mindfulness, por estarem alinhados com os interesses do poder, nunca questionam a ordem institucional mais ampla ou os objetivos fundamentais da corporação. Esses programas convenientemente evitam focar a atenção na exploração dos trabalhadores ou no controle da força de trabalho dos trabalhadores.

Mindfulness nas forças armadas, por exemplo, não fará nada para prevenir guerras preventivas, danos morais e traumas culturais, nem tais programas erradicarão os enganos, mentiras e máquina de propaganda necessária para justificar ações militares. A atenção plena na política até agora não abordou nem enfrentou as crises sem precedentes do século 21 – a emergência climática e o aquecimento global, níveis crescentes de desigualdade, falta de moradia, pobreza, racismo galopante, encarceramento em massa, xenofobia, sexismo, bem-estar corporativo e corrupção política e militarismo.

Isso não significa que devemos simplesmente descartar as funções terapêuticas das intervenções baseadas em mindfulness, mas a prática deve estar em uma relação dialética com as realidades sociais, históricas e políticas. Uma nova práxis baseada em uma consciência social criticamente informada pode revolucionar a atenção plena, libertando-a dos grilhões do neoliberalismo.

TEXTO TRADUZIDO LIVREMENTE por Tiago Tatton, PhD. (www.iniciativamindfulness.com.br) me siga em https://www.instagram.com/tatton_tiago_mindfulness/

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Ronald Purser é professor de administração na San Francisco State University. Seus ensaios e sua crítica cultural foram publicados nas revistas Huffington Post, Salon, Alternet e Tricycle. Seu artigo viral, "Beyond McMindfulness", abriu as comportas para a reação de mindfulness. Seus livros recentes incluem o Handbook of Mindfulness: Culture, Context and Social Engagement e o Handbook of Ethical Foundations of Mindfulness. O Dr. Purser começou seu treinamento budista começando em 1981 no Instituto Tibetano Nyingma em Berkeley, Califórnia, e é um professor budista ordenado na ordem coreana Zen Taego. Ele é co-apresentador do podcast Mindful Cranks e é orador regular e convidado em programas de rádio e podcasts. Ele mora com a família e seu cachorro em San Francisco, CA.
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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

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