AGINDO COM CONSCIÊNCIA, CORAGEM E AMOR EM TEMPOS DE MUDANÇA GLOBAL

Legenda da imagem: cubo de palavras que mudam de “change” (em português, “mudança”) para “chance” (em português, “chance”).

Estamos vivendo um momento único. Fomos forçados a viver a vulnerabilidade por meio de uma mudança substancial e abrupta. Não tivemos escolha. Sentimos a perda, o medo, a saudade, a raiva, a privação. Quando especificamos a análise para as nuances do isolamento físico, outra reflexão surge e é necessária: somos humanos por sermos organismos sociais e, portanto, o papel dos relacionamentos interpessoais é muito importante em nossas vidas. O isolamento e as mudanças na intensidade e frequência das relações traz sofrimento. Como analistas do comportamento, temos certa previsibilidade de alguns efeitos comportamentais dessas mudanças em nossas vidas. Mas a dimensão real é ainda pouco clara. Minha proposta, nesse artigo, é apresentar reflexões e sugestões para vivermos esse período com base no Modelo Consciência, Coragem e Amor – ACL (do inglês, awareness, courage and love), sustentado pela Psicoterapia Analítica Funcional – FAP (Kohleberg & Tsai, 1991). A inspiração para desenvolver esse texto vem de minha experiência clínica, bem como de participações e ações que faço como co-líder do Projeto Viva com Consciência, Coragem e Amor – CCA, de PhD Mavis Tsai (para saber mais sobre o projeto, acesse aqui).  

A FAP é uma estratégia terapêutica que têm como foco as dificuldades interpessoais e a relação terapêutica como mecanismo de mudança clínica (Kohlenberg & Tsai, 1991; Tsai, Kohlenberg, Kanter, Kohlenberg, Follete & Callaghan, 2009). Em sua estrutura, os autores da FAP elaboraram um modelo de intervenção clínica chamado Modelo Consciência, Coragem e Amor – ACL, que consiste em um conjunto de habilidades/comportamentos, apresentados pelo terapeuta, que se mostram importantes para que as dificuldades interpessoais do cliente sejam trabalhadas em um processo terapêutico (Holman, Kanter, Tsai & Kohlenberg, 2017). Além disso, o Projeto Global Viva com Consciência, Coragem e Amor tem por objetivo estender o Modelo ACL para relações interpessoais gerais, por meio de grupos nos quais os participantes aprendem e utilizam o modelo uns com os outros em uma interação profunda, genuína e respeitosa. Essa proposta demonstra que o Modelo ACL pode ser utilizado não só pelo terapeuta FAP, mas nas relações que vivemos no geral. Ainda, a proposta dos encontros do Projeto Viva com CCA fornece o Modelo ACL não somente quando somos ouvintes de uma relação (semelhante à postura sugerida para o terapeuta FAP). Isto é, esse modelo também dá subsídios para agirmos com consciência, coragem e amor com nós mesmos. Uma premissa importante é que, para que sejamos conscientes, amorosos e carinhosos com os outros, é preciso que sejamos conosco também.

Desse modo, gostaria de contribuir para refletir sobre a utilização do Modelo ACL em tempos de mudança global. Escolhi chamar de “mudança global” (e não pandemia ou isolamento físico), pois entendo que passaremos por alterações de vida que superam o estágio que nos encontramos no momento na publicação desse artigo. A seguir, abordarei em separado cada um dos elementos que compõem o Modelo ACL, adaptando-os a essa temática.

Consciência

Para agir com consciência, é importante que estejamos conscientes e abertos às nossas emoções, pensamentos e sentimentos no aqui-agora (Holman, Kanter, Tsai, Kohlenberg, 2017). Esse momento de mudança global tem trazido e continuará trazendo, ainda por um tempo, emoções difíceis como: medo (de contaminação de si mesmo, de pessoas amadas ou da comunidade global, assim como do futuro); raiva, tristeza (decorrentes das perdas que estamos vivendo ou até mesmo dos desdobramentos sociais/políticos atuais); angústia/sensação de perda de controle (decorrente de planejamentos antes feitos e que agora se tornam impossibilitados); culpa (por não estarmos nos sentindo produzindo, por exemplo). É importante, também, termos consciência de que podem vir emoções positivas como: bem estar de ficar em casa; sensação de maior produtividade em relação a tarefas que antes estavam pendentes; tranquilidade sobre as aprendizagens que as mudanças têm trazido. Em minha prática clínica, pude me deparar com pessoas que relataram culpa por se sentirem bem, como se fosse incompatível com o momento. Estar consciente é um caminho importante para perceber e aceitar esses sentimentos (bons ou não) sem julgá-los, isto é, compreendo-os como parte de nosso momento e oriundos de uma história prévia que os fazem estarem aqui nesse processo de mudança. A consciência também contempla estarmos abertos para observarmos nossos valores, isto é, o que é importante para nós, nossas metas e necessidades (Holman, Kanter, Tsai, Kohlenberg, 2017). Estarmos conscientes de nós favorece o desenvolvimento de nossa consciência sobre os outros, facilitando nossa compreensão a respeito do que outras pessoas estão sentindo e vivendo também. Esse é um importante aspecto para que as tensões vividas nas relações interpessoais em tempos de isolamento possam ser melhor administradas.

Coragem

Sabe aquela sensação de “certo risco” que temos antes de fazer algo e que não temos certeza se será bem recebido pelos outros ou se dará certo? Ser corajoso(a) se refere a isso. Significa estarmos abertos para o que costuma se vulnerabilizante para nós (Holman, Kanter, Tsai, Kohlenberg, 2017). Eu diria que a coragem, em tempos de mudança global, está relacionada a conseguirmos nos tornar uma versão mais ousada de nós nesse novo ambiente que se forma. É muito comum e natural que mudanças abruptas nos façam, por segurança, criar estratégias de nos mantermos em uma zona de conforto. A mudança global pela qual estamos passando intensifica essa tendência. Estabelecer segurança é importante. Ter medo em tempos de isolamento é, inclusive, necessário (a ansiedade que advém do medo de contaminação, por exemplo, é até certo ponto necessária para nossa proteção e para mantermos a prática do isolamento). Portanto, a coragem aqui não está na saída de zona de conforto do isolamento físico. A saída dela está na busca de alterações dentro dessa realidade. Perguntas que podem facilitar a identificação do que seria coragem para você nesse momento: como você pode se aprofundar em ações que até então eram superficiais/ausentes em sua vida? O que você pode mudar em você durante o isolamento? O que você tem a oferecer ao mundo nesse momento? O que você pode fazer por outras pessoas? Trata-se, portanto, de observarmos que tipo de zona de conforto emocional criamos durante esse período e quais práticas podem ser importantes para nos movermos em direção a uma versão mais ousada de nós, seja conosco ou na interação com o outro.

Amor

Para que possamos agir com consciência e coragem, é imprescindível que sejamos amorosos (conosco e com os outros). Ser amoroso é agir com aceitação, compaixão e autocuidado (Holman, Kanter, Tsai, Kohlenberg, 2017). Em tempos de mudança global, é ser tolerante com seu processo de adaptação, que é único. O que estamos vivendo trouxe mudanças significativas em nossas rotinas e precisamos passar por um período de redescobrir o que nos fará bem. Quando não está claro o que devemos fazer para nos sentirmos bem, é comum que busquemos modelos e referências. As redes sociais, nesse momento, tornaram-se um referencial para buscar formas para agirmos cuidadosamente conosco. Contudo, o que nos faz bem é único e precisamos saber identificar isso. Devemos, nesse momento, favorecer autocuidado a partir da observação sobre o que nos produz relaxamento, tranquilidade e prazer. Com o outro, agir com amor é conseguir ser terno e acolhedor quando alguém é corajoso, isto é, quando o outro aparenta estar agindo de forma diferente ao seu habitual em busca de uma versão melhor de si nos tempos atuais. Agir com amor é, também, receber amor e afeto do outro quando nos sentimos vulneráveis, isolados e sós. Em tempos de mudança global como a pandemia que estamos vivendo, nossa rede interpessoal fisicamente próxima é restrita; pode ser um momento importante aproveitá-la para favorecer o dar e receber amor nessas relações.

Espero, com esse artigo, atingir o(a) leitor(a) sobre formas de lidar com o cenário difícil que estamos vivendo a partir de um modelo gentil/amoroso, consciente e com certa ousadia afetiva. De minha parte há o desejo de que possamos favorecer conexão emocional conosco e com os outros, acreditando genuinamente que fazer isso tem poder transformador nesse momento de crise global.

Referências

Holman, G., Kanter, J. K., Tsai, M., & Kohlenberg (2017). Functional Analytic Psychoterapy: made simple. Oakland: New Harbinger.

Kohlenberg, R. J. & Tsai, M. (1991). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando Relações Terapêuticas Intensas e Curativas. Santo André, SP: ESETEc.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2009). A guide to functional analytic psychotherapy: awareness, courage, love and behaviorism. New York: Springer.

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Escrito por Gabriela Martim

Psicóloga, especialista e mestra em Psicologia Clínica. Treinadora e Terapeuta Certificada em Psicoterapia Analítica Funcional (FAP). Amante das relação terapêutica. Atua com psicologia clínica (presencial em Curitiba-PR e online), supervisora e professora.

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