Que o filme é uma crítica aos sistemas econômicos, não é novidade. A internet já está saturada de interpretações sociológicas de todos os tipos. A proposta do presente artigo é um pouco diferente: Ao invés de olhar O Poço de fora e tentar extrair o significado do filme, a ideia é se colocar lá dentro e questionar comportamentos humanos.
Ingestão de restos de alimentos mastigados ou carne humana, assassinato, agressão – quem assistiu “O Poço”, dificilmente deixou de sentir algum tipo de aversão diante cenas desse tipo, tão frequentes ao longo do filme. Será que alguém realmente seria capaz de fazer isso? E a natureza humana? Será que os homens são naturalmente bons e as circunstâncias que o tornam mau?
As práticas éticas mantidas pela sociedade, às quais todos nós estamos expostos em alguma medida, exercem papel fundamental no controle do comportamento ao definir funções comportamentais específicas a determinados eventos. A seleção natural nos tornou sensíveis ao reforçamento por moléculas de proteínas, e não exclusivamente por carne de não-humanos. São as práticas éticas que conferem função aversiva à determinados comportamentos (Skinner, 1953) conforme nos ensina a relacioná-los à palavras como “errado”, “mal”, “nojento”, “pecaminoso”, “tóxico” e muito outros adjetivos negativos. Adicionalmente, contingências punitivas são mantidas através da lei, e regras são passadas de forma a diminuir a probabilidade de ocorrência do comportamento desviante. Há um valor de sobrevivência para cultura muito claro nessas práticas: ao tornar essas ações tão aversivas e repugnantes, garante que os membros do grupo não se comportem dessa maneira, evitando demais prejuízos à harmonia das relações sociais. É claro que a manutenção dessa harmonia não se deve unicamente à supressão do comportamento inadequado. Há muitas contingências responsáveis por reforçar positivamente comportamentos ditos “civilizados”: chamamos alguns padrões de ação de “bons”, “virtuosos”, “educados”, “sensatos”, e os valorizamos quando ocorrem.
Nesse sentido, a manutenção do comportamento dito “civilizado” depende de duas variáveis muito importantes: (i) o comportamento verbal e de (ii) um ambiente social evoluído, capaz de manter esses comportamentos. O que aconteceria se essas contingências simplesmente fossem suspensas? O que aconteceria se um organismo humano, cujo repertório é produto de um longo histórico de aprendizado e se encontra sob controle do ambiente social imediato, fosse inserido em um ambiente extremamente diferente, um ambiente onde essas contingências simplesmente não existem? Um ambiente completamente novo, para o qual todo o repertório que adquiriu é inútil na produção dos estímulos necessários à sobrevivência? Mais que isso: um ambiente onde respostas que outrora eram punidas passam a ser altamente adaptativas? Entrar em O Poço diz respeito justamente a essas experiências.
Pensem comigo: a seleção natural produziu um organismo humano cujas respostas são simplesmente reforçadas pelas consequências que as seguem, sem restrições éticas. Quando sob privação alimentar, qualquer resposta que produza comida é fortalecida; diante sinais de perigo, qualquer resposta que evite ou elimine a ameaça é fortalecida. O ambiente social contemporâneo faz o que está ao seu alcance para que respostas com essas funções sejam ensinadas da forma mais refinada possível para que ocorram sem gerar prejuízos aos demais: ensina ao humano que, quando sentir fome, deve a assar o alimento, cortar com talheres, mastigar cuidadosamente e limpar a boca após a ingestão. Quando arrumar problemas com alguém, deve resolver no diálogo, pedir desculpas, se afastar ou, na pior das hipóteses, recorrer às autoridades responsáveis pelo exercício da punição.
Mas esse organismo humano civilizado e dotado de valores não é muito diferente daquele organismo humano que, há muitos milênios, travava guerras sangrentas, e que até foi responsável pela extinção de outros hominídeos que povoaram a terra(Harari, 2017). Como haveria de ser modelado o repertório desse organismo humano pelas contingências presentes numa época tão remota, na qual não havia domínio do fogo nem etiquetas, e muito menos uma comunidade verbal evoluída o suficiente para classificar respostas em “certo” e “errado”? Obviamente, comportamentos que produzissem comida e a evitação do perigo eram livremente selecionados, mesmo que hoje o consideremos horríveis ou doentios, e isso pode incluir a ingestão de alimentos mastigados ou carne humana, assassinatos e agressões. Tanto o é que em certas culturas essas práticas são comuns.
Comportar-se dessa forma faria parte da “humanidade” ou seria desumano? Conforme o dicionário Michaelis, humanidade significa “Totalidade das características peculiares à natureza humana”. Se em diferentes contingências o homo sapiens adquire repertórios diferentes, então “humanidade” corresponde simplesmente à totalidade de comportamentos que o humano pode apresentar, independente da sua topografia.
O poço pode ser visto como um experimento que nenhum comitê de ética aprovaria. Os algozes simplesmente colocam humanos sob privação alimentar e ameaça de vida num ambiente onde a comida é escassa, e observam os operantes que são evocados sob controle dessas operações motivadoras. É nesse ponto que observamos como e quando os níveis de seleção por consequências se sobrepõem ou se ultrapassam. Quando o nível filogenético se sobrepõe, os níveis de privação são tão elevados que estabelece função reforçadora aos eventos que a sociedade havia tornado aversivo; com isso, alimentar-se de carne humana, resto de cadáveres ou fatiar gradualmente um colega, mantendo-o vivo para que a comida dure por mais tempo, são respostas facilmente evocadas e fortalecidas. Quando a cultura fala mais alto, não importa o nível de privação: as funções de estímulos continuam os mesmos que a cultura estabeleceu, e as únicas respostas passíveis de produzir saciação permanecem aversivas demais para serem emitidas – é melhor saltar para a morte ou perecer de fome. Um caso expressa mais “humanidade” que o outro, ou em ambos os casos estamos diante de uma mesma “humanidade”?
O personagem apresenta uma sobreposição ainda maior da cultura. As regras que adquiriu ao longo da sua vida são poderosas demais, e continuam controlando seu comportamento mesmo quando, para os demais, o filogenético fala mais alto. Após passar pela fome extrema, Goreng não se alimenta até a saciação quando enfim chega nos níveis mais altos do poço, onde a comida é farta. “É preciso ajudar os outros”, “É preciso que todos se alimentem”, dizem as regras do personagem. Goreng segue fielmente essas regras, e até se sente bem agindo dessa forma. Em outros contextos, o seguimento dessa regra poderia até beneficiar o grupo como um todo, mas não no poço: o responder alinhado aos ideais que lhe ensinaram, tão humanos e nobres, não trouxe garantia de benefício aos outros nem aos próprios genes; o seguimento da regra o leva à morte. Agir conforme os princípios elevados da sua cultura seria um trabalho de sisífio? Naquele contexto, sim. Aqui, temos um exemplo de um efeito suicida da cultura. Muitas reflexões filosóficas podem ser extraídas disso, como: quantos outros padrões de comportamento sustentamos em prol de benefícios aos demais membros da cultura, mesmo que nocivos à nossa própria vida? Mas isso não é um assunto para este texto.
O diretor do filme disse que um dos seus objetivos era “[…]colocar o espectador em vários níveis e ver como eles se comportariam em cada um deles”(Zuliani, 2020). Muitas vezes, é difícil evitar colocar-se no lugar do outro – o responder empático, tão reforçado ao longo das nossas vidas. Talvez as sensações estranhas que sentimos ao assistir o filme envolvam mais do que meras aversões eliciada pelas imagens pesadas; talvez seja as emoções que sentimos quando observamos como nós mesmos nos comportaríamos se estivéssemos nas mesmas circunstâncias do personagem. É óbvio.
REFERÊNCIAS
Harari, Y. N. Sapiens: Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2017.
Skinner, B. F. Science and human behavior. Publisher: New York Series: Free Press paperback [1953].
Zuliani, A. O Poço: Diretor fala sobre a trama e a mensagem por trás do filme. 2020. Disponível em: https://www.omelete.com.br/terror/poco-filme/o-poco-netflix-diretor-trama-mensagens