Meu terapeuta chorou, e agora?

Gosto de pensar que estar na posição de terapeuta é estar em uma posição de privilégio, mas um privilégio gostoso, recompensador. Pessoas me procuram em busca de ajuda, um tipo de ajuda que envolve duas pessoas em uma sala fechada e com a proposta de colocar seu coração à mesa para fazer mudanças significativas em suas vidas – e isso tende a ser mais desafiador do que com as palavras que descrevo aqui. O cliente traz seus tecidos – aqueles que a vida o presenteou e saiu juntando – e eu compartilho com ele de uma agulha e um fio onde, a partir daí, nós delineamos o que o cliente quer criar com essa costura e seguimos nesse processo colaborativo. Podemos, eventualmente, acabarmos por nos ferir em tal empreitada – ao mesmo tempo em que não há trabalho de costura sem a disposição de ocasionalmente acabar por levar uma pontada. O trabalho final é personalizado, individual, e muito belo.

Muitas vezes, eu me emociono. Certa vez eu acompanhei uma pessoa em terapia que seu maior medo era falar de amor. Foi um longo processo, tendo a acompanhado por quase 3 anos. Um dia ela me trouxe a surpresa de que pôde assumir o risco de dizer para seu cônjuge que o amava.  Me faltam palavras para descrever aqui o que senti de ouvir tal relato, mas lembro que instantaneamente me eliciaram respondentes intensos e quando eu vi, eu estava chorando.

De tempos em tempos, algum cliente irá tocar em um assunto de um trauma profundo, ou então irá contar sobre uma mudança muito impactante que fez como fruto da terapia. E minha visão vai se embaçar. Nem sempre as lagrimas caem, mas em alguns momentos é bom ter uma caixinha de Softy’s a disposição.  Alguns profissionais, porém, resistem à expressão emocional porque acreditamos que nossos clientes não gostariam que seu terapeuta chorasse.

Não existe uma técnica ou livro que aborde o “chorar terapêutico”, nem é algo que possa ser forçado. Irá acontecer. Aproximadamente 72% dos psicoterapeutas admite ter chorado em alguma sessão (Blume-Marcovici, Stolberg, & Khademi, 2013). É perfeitamente normal e mais comum do que imaginamos.

Durante a graduação nunca me foi ensinado sobre minhas próprias lágrimas. Alguns professores nos encorajavam a resistir a qualquer traço de emoção. Outros nos encorajavam a sermos empáticos. Lembro da primeira vez que abri para uma supervisora sobre meu choro me sentindo como se fosse confessar um pecado. Devemos ser neutros e desapegados ou seriam nossas lágrimas benéficas e capazes de ser um modelo de flexibilidade? Estaríamos mostrando fraqueza? Serão nossas habilidades e inteligência respeitadas se mostrarmos nosso “lado emocional”? Imagine-se, leitor ou leitora, nos sapatos de um terapeuta que vê pessoas sofrendo, pessoas que se perderam e ficaram presas sob a própria pele, na própria vida. Diante dessas pessoas, preciso de uma visão de mundo com implicações de ação. Preciso de uma orientação teórica que me diga como entender o que estou observando diretamente, o que fazer ou dizer a seguir e como saber que o que faço ou digo está realmente funcionando para treinar novos comportamentos. Quando estou de frente com alguém que confiou em mim o sofrimento deles, tudo o que tenho é meu próprio comportamento. Acima de tudo, eu preciso de uma análise que me inclua nela.  

Sempre devemos recorrer à função: chorar reforça ou pune a resposta de meu/minha cliente baseado nos objetivos terapêuticos estabelecidos? Quero que a pessoa se exponha novamente, focando no controle consequente da minha ação, ou ao me atentar mais a variáveis antecedentes aversivas estou me esquivando do assunto? Por ser parte das variáveis independentes que influenciam o responder de meus clientes, eu tenho de analisar meu próprio comportamento na interação. Eu acredito em revelações que partem do coração, mas também acredito que uma boa terapia é feita com boa ciência – supondo que o choro de um terapeuta diante de um comportamento corajoso de seu cliente faz com que tal repertório generalize, então pode ser interessante constar na conceituação de caso que gestos empáticos, naturais, podem ser úteis para o progresso terapêutico do cliente.

Tais questionamentos, inclusive, parecem contraditórios com a proposta que trouxe. Não estou dizendo que ao se trabalhar com ACT você deve chorar. Talvez minha ponderação seja a de que podemos quebrar algumas “regras” terapêuticas com as quais nos fusionamos: experimente, e veja o que acontece.

Se você for cliente e seu ou sua terapeuta chorar em algum momento da terapia – tudo bem se você se surpreender com o movimento, e tudo bem caso isso aconteça – afinal não há nada de fora do comum em uma ação humana como esta. Pois há momentos nessa profissão que são intensos e sensíveis. Nesses momentos, ciência e profissionalismo são coadjuvantes e é nossa experiência total como ser humano que é a protagonista na sala de terapia.

Referências

Blume-Marcovici, A., Stolberg, R., & Khademi, M. (2013). Do therapists cry in therapy? The role of experience and other factors in therapists’ tears. Psychotherapy50(2), 224-234. doi: 10.1037/a0031384

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Escrito por Raul Vaz Manzione

Psicólogo (Mackenzie) e Mestre em Análise do Comportamento Aplicada (Instituto Par/UFPA). Atua como psicólogo clínico, supervisor, professor e treinador de terapeutas É Peer-Reviewed ACT Trainer reconhecido e listado pelo processo oficial da Association for Contextual Behavioral Science (ACBS) sendo um dos únicos a obter o título na América Latina.
Em seu currículo já ministrou treinamentos em ACT a mais de 1000 profissionais no Brasil e no mundo. Atua como membro do Comitê de Treinamento da ACBS (ACBS Training Committee).

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