FAP e Orientação Profissional: unindo práticas

A Psicoterapia Analítico Funcional (FAP) é uma abordagem psicoterapêutica que modifica tanto o repertório clínico do terapeuta como as próprias contingências de ser terapeuta. Muitos de nós, praticantes da FAP, passamos a discriminar CRBs1 (comportamentos-problema e alvo) em diferentes tipos de demanda, sentindo-nos como o menino Cole, no filme O Sexto Sentido.

Famoso diálogo entre os personagens Cole (Halley Joel Osment) e seu psicólogo, Malcolm (Bruce Willis).

Vendo CRBs o tempo todo, notei a oportunidade de utilizar a Psicoterapia Analítico Funcional também no processo de Orientação Profissional (OP2), em que trabalho pela aprendizagem de quatro grandes classes de comportamentos: Autoconhecimento, Busca de Informação Profissional, Tomada de Decisão e Planejamento Presente-e-Futuro (Moura, 2001). A seguir, exploro cada eixo da orientação com exemplos de atuação como psicoterapeuta FAP.

Como neste texto busco integrar perspectivas a partir da minha experiência como psicoterapeuta e orientadora profissional, escrevo utilizando os pronomes em primeira pessoa; porém, esforço-me para não perder a precisão ao ancorar minha prática na produção científica de FAP e OP.

Primeira classe funcional: Autoconhecimento

Compreendido aqui como comportamento verbal emitido ante estímulos do/no indivíduo, autoconhecer-se implica em descrever relações funcionais, discriminando os próprios comportamentos e as variáveis que os controlam. Se verbal, a origem dessa classe só pode ser social.

QUINO, J. L. Toda Mafalda. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Na tirinha, Miguelito supõe que se conhecer é se olhar como os outros veem, externa e fisicamente. Na psicologia, vamos além: autoconhecimento é se olhar comportamental e funcionalmente (Skinner, 1969). Nossos primeiros e mais eficientes ‘espelhinhos’ são nossos pais, que nos ensinam o relatar autorreferente para comportamentos abertos (aquilo que faço; e.g., “eu chutei a bola e fiz o gol”) e encobertos (o que penso e sinto; e.g., “eu prefiro sorvete de bola”) (Kohlenberg & Tsai, 1991; Kanter et al., 2001; Tsai et al., 2011). Dessa forma, a aprendizagem e manutenção do autoconhecimento ocorre na interação com o outro, que, afetado pelos autotatos de um indivíduo, é capaz de se relacionar com ele – e disponibilizar reforçadores. A previsibilidade para a comunidade e a maximização da probabilidade de reforços para o indivíduo tornam o autoconhecimento um comportamento bastante adaptativo (de Rose, 1982).

No contexto da Orientação Profissional, o terapeuta também auxilia o cliente a se conhecer funcionalmente, explorando a história de vida do orientando, suas expectativas quanto ao processo de orientação e ao futuro, seu repertório atual, e as dificuldades pertinentes à escolha ocupacional. Enquanto terapeuta FAP, busco identificar e reforçar no aqui-agora as respostas que compõem o repertório a ser construído para uma escolha satisfatória, e, dessa forma, aproveito os procedimentos da Orientação para atualizar na relação terapêutica os déficits, excessos e reservas comportamentais produzidos pela história pessoal do cliente; explicitar os exemplares de comportamentos apresentados em sessão que o(a) aproximam e afastam de suas expectativas; e reconhecer (fazer o paralelo de fora para dentro), evocar, modelar e reforçar diferencialmente o repertório do orientando de enfrentamento das dificuldades de escolher e realizar a decisão profissional.

Há poucos anos, orientei um jovem que chegou até mim inclinado a optar pela carreira de medicina, com quem utilizei a FAP obtendo resultados significativos. Em um de nossos encontros, quando ainda explorávamos o eixo do autoconhecimento, o orientando discriminou que um dos critérios mais importantes para sua escolha era o retorno financeiro que a profissão supostamente garantiria e, em algum momento do nosso diálogo, ele revelou ter feito o cálculo de quanto pagava por minuto de sessão. Parecendo estabelecer comigo a mesma relação “trabalho/produtividade e retorno financeiro” que ele presumia para escolher sua carreira, convidei-o a observarmos as variáveis que, ali manifestadas, controlavam objetivamente seu comportamento, tornando as contingências conscientes para que ele pudesse avaliar a consistência entre suas ações e valores. Então, conversamos sobre frequentemente excedermos nosso tempo de sessão sem cobranças adicionais, falamos sobre a continuidade do processo fora da sala de atendimento e discutimos sobre o impacto em mim, como pessoa e profissional, de ouvi-lo reduzir nosso relacionamento a variáveis tão operacionais, medidas e quantificadas. Para a nossa surpresa, esse momento mudou o curso da orientação; o ponderar sobre o “contrato” da nossa relação permitiu que ele reavaliasse o contrato que estava firmando com sua escolha profissional, um acordo que traria também consequências conflitantes com seu apetite por poder e status. Próximo do final do processo, o orientando optou pela graduação em Economia.

Segunda classe funcional: Informação Profissional

Como a contingência preconiza, se há resposta, há um contexto antecedente e consequente articulados. Na Orientação Profissional, a aquisição de respostas autodescritivas (autoconhecimento) é colocada sob controle das informações referentes às profissões para que possa produzir uma escolha futura com maior probabilidade de produzir estímulos da atual classe de reforçadores.

Os procedimentos mais abrangentes da etapa Informação Profissional incluem tarefas para conhecer melhor as opções profissionais (e.g., pesquisas na internet, busca de reportagens e informativos e participação em atividades relacionadas à ocupação – como cursos, voluntariados etc.) e entrevistas com profissionais das áreas de interesse a fim de dialogar e observar modelos. Na prática, frequentemente os(as) orientandos(as) não apresentam os comportamentos finais de pesquisar e entrevistar profissionais; portanto, utilizando a Psicoterapia Analítico Funcional, faço intervenções oferecendo modelo e modelando instâncias proximais e em sessão do que seria esperado que realizassem fora do setting clínico.

Nesta etapa, as descobertas sobre as atividades da profissão, a formação, as especializações e o mercado de trabalho são evocativas de diferentes respostas que comumente se referem ao repertório em aquisição de tomada de decisão, importantes alvos de intervenção in loco. Certa vez, recebi uma cliente para a sessão de pré-orientação que desejava cursar relações internacionais para trabalhar em instituições financeiras, especificamente com investimentos; seus pais trabalhavam em banco e exerciam importante influência na sua escolha. Ao desbravar a área, a orientanda deparou-se com uma formação que dialogava com conhecimentos em economia, política, história e até direito, campos em que seus interesses e habilidades eram menos motivados e desenvolvidos. Diante da descoberta, a sua reação foi de minimizar a importância do estudar humanidades para alcançar seu objetivo enquanto, paralelamente, respondia a mim dispensando discriminações sobre idealizar profissões (e.g., a supervalorização da carreira pela família, as contradições entre expectativas pessoais e a realidade profissional, as distorções sobre mercado de trabalho e status da profissão etc.). A semelhança funcional entre rejeitar a relevância das disciplinas de conhecimento humano e das minhas falas ‘humanas’, que propunham refletir sobre estereótipos, possibilitou que reconhecêssemos importantes CRB1s: a emissão de regras diante das minhas tentativas de sensibilizá-la às contingências funcionando pela esquiva de renunciar à opção pretendida, aos planos da carreira de internacionalista e da frustração de seus pais. Ainda que as regras que ela anunciava fossem acuradas, como “é normal a gente fazer o que não gosta pra ter o que gosta”, não eram consistentes com a sua própria realidade; ‘não gostar’, por exemplo, era apenas uma instância de suas reações, ainda havia a escassez de engajamento e de dedicação ao campo das humanidades – e ao trabalho comigo. No momento em que avançamos para o eixo Planejamento Presente-e-Futuro, a cliente entrou para um grupo de estudos em economia em uma universidade de sua cidade, passou a realizar leituras e a participar de cursos livres nas áreas de política e história. Em nossos encontros, as discussões se tornaram bastante entusiasmadas!

Terceira classe funcional: Tomada de Decisão

Com o repertório de autoconhecimento expandido e em função do conhecimento da realidade profissional, o orientando está em condições de realizar a Tomada de Decisão. Logo, a escolha de uma profissão passa a produzir consequências, reforçadoras quando afins aos valores do(a) cliente, e aversivas, se em conflito com variáveis culturais e sistêmicas (família, rede social) em que ele(a) está inserido(a). Comprometer-se com as consequências da decisão é o objetivo dessa etapa da Orientação Profissional.

Waltterson, Bill. Disponível em: http://depositodocalvin.blogspot.com

Assim como Calvin, desejamos vários reforçadores e, também como ele, com baixo custo de resposta. Porém, a realidade nos coloca diante de complexas contingências entrelaçadas, em que obter uma classe de reforçadores envolve a aprendizagem e emissão de múltiplas respostas diante de diferentes contextos, em grande parte aversivos. Portanto, operacionalizar os comportamentos direcionados às metas de alcance à profissão permite manipular variáveis que alterem a frequência e a magnitude do reforçamento, aumentando sua probabilidade e efetividade. Tais variáveis estão presentes nas três dimensões da contingência: antecedente, em que se altera o controle de regras, operações motivadoras e estímulos discriminativos; respostas, ampliando o contra-controle e a variabilidade comportamental; e consequente, transformando o valor dos reforçadores e tornando-os mais contíguos.

Para ilustrar uma possibilidade de tantas nesse contexto, reconto um exemplo oferecido em um curso de OP pela psicóloga e orientadora Nathália Cippola Roncato, sobre uma cliente com um déficit expressivo no repertório de tomada de decisão. Para modelar comportamentos da classe, a terapeuta a estimulava fazer escolhas no próprio setting (como optar pelo lugar em que se sentaria durante a sessão), criando oportunidades de evocar CCR2s. Em uma dessas ocasiões, Nathália levou uma caixa de bombons para que a orientanda selecionasse qual preferia; naturalmente, ela respondeu à demanda de escolha apresentando seus CCR1s: disse não querer bombom naquele momento e, diante da persistência da terapeuta, pediu para que a Nathália escolhesse os seus preferidos primeiro. As tentativas esquivas de recusar e de escolher por exclusão foram notadas pela terapeuta que, então, foi produzindo condições progressivamente mais complexas para que a cliente conseguisse selecionar um bombom predileto. Depois de incentivar a orientanda a verificar as opções disponíveis, hierarquizar quais ingredientes gostava mais e avaliar quais combinações continham o maior número de ingredientes de sua seleção… A orientanda pegou – e comeu! – o bombom escolhido.

Quarta classe funcional: Planejamento Presente-Futuro

Consolidando as aprendizagens adquiridas durante a Orientação profissional, o último passo do processo visa o engajamento do cliente no planejamento e nas estratégias de ação de curto, médio e em longo prazo. Neste momento, consideram-se valores familiares e pessoais, além dos profissionais, projetando no futuro possibilidades realistas e factíveis, pois objetivo sem ação leva à idealização sem realização.

Davis, Jim (2010)

O Garfield é famigerado pela sua preguiça e atividades voltadas para comer e dormir. Mas, para que o futuro seja diferente do passado, é preciso se comportar – com variabilidade! – já que… “Os homens agem sobre o mundo, modificam-no e, por sua vez, são modificados pelas conseqüências de sua ação” (Skinner, 1957/1978, p.15). Portanto, é útil que o cliente em Orientação Profissional finalize o processo sendo hábil em elaborar autorregras que guiem seus comportamentos atuais; em criar contextos mais favoráveis para a emissão de ações encadeadas; e em produzir majoritariamente reforçadores positivos nas contingências que experiencia e experimentará. Aqui, a FAP também pode ser eficaz ao estimular o exercício no momento presente de comportamentos funcionalmente semelhantes aos que deverão ser emitidos de maneira generalizada no futuro, contribuindo para a aquisição e manutenção de um repertório que ficará sob controle de um ambiente ‘estranho’ ao terapeuta (e, afinal, ao cliente também).

Tive a chance de fazer uso dessa proposta em uma orientação com um adolescente de 16 anos que optou pela carreira de músico e que pretendia adiar os planos de seu projeto de vida para o período do vestibular. Bom, uma vez que a graduação em música se caracteriza pelo aprofundamento e aperfeiçoamento teórico e técnico na música, a seleção nas instituições públicas inclui provas de habilidades específicas. Adiar a aprendizagem e o treino dessas habilidades (performance em instrumentos, interpretação e execução harmônica de melodias e ritmos) provavelmente acarretaria prejuízos no seu repertório e, consequentemente, no seu desempenho. Receptivo às minhas intervenções, o orientando expressava concordância, mas permanecia desengajado nos comportamentos correlacionados ao desenvolvimento na carreira, apenas mantendo o contato que já tinha com a música. Notei a similaridade entre essa circunstância e a de seu desenvolvimento na trajetória da OP, em que nossos esforços resultaram em novas classes de comportamentos que produziram autoconhecimento, articulação entre autoconhecimento e conhecimento da profissão e preparo para planejar as ações futuras relativas à escolha e de inserção no mercado de trabalho. Fazer o retrospecto de quem ele era e de quem se tornou permitiu fazê-lo entrar em contato com o que, até então, eram possibilidades apenas no futuro. Ser capaz de escolher uma profissão, com autonomia e autenticidade, eram valores do orientando que, então reconhecidos, poderiam ser realizados também no vestibular. A generalização da relação entre esforço e ganho de competências resultou em um aluno bastante dedicado ao piano… E que sempre me comove ouvir tocar!

Unir as práticas como psicoterapeuta analítico funcional e orientadora profissional é um trabalho que tenho me desafiado a fazer com Consciência, Coragem e Amor, buscando construir uma relação com meus clientes que contribua para eles construam relações gratificantes com o que é importante em suas vidas.

1A sigla CRB refere-se aos Comportamentos Clinicamente Relevantes do cliente, sendo classificados como CRB1s, quando se referem as suas dificuldades, e CRB2s, quando se relacionam com a sua melhora (Kohlenberg & Tsai, 1991/2007)

2FAP e OP são siglas frequentemente empregadas neste texto que designam, respectivamente, a Psicoterapia Analítico-Funcional e a Orientação Profissional.

Referências

De Rose, J. C. C. (1982). Consciência e propósito no behaviorismo radical (pp. 67-91). Em B. Prado Jr, (Org.). Filosofia e Comportamento. São Paulo: Brasiliense.

Kanter, J., Parker, C., & Kohlenberg, R. J. (2001). Finding the self: A behavioral measure and its clinical implications. Psychotherapy: Theory, Research and Practice, 38, 198-211.

Moura, C. B. (2001). Orientação Profissional sob o enfoque da Análise do Comportamento. Londrina: Editora da UEL.

Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (1991/2007). Functional Analytic Psychotherapy: A guide for creating intense and curative therapeutic relationships. New York: Plenum.

Skinner, B. F. (1969). Contingencies of reinforcement: A theorical analyses. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B.F. (1978). Comportamento Verbal. São Paulo: Cultrix/EDUSP. Publicação original de 1957.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): Consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. Conte & M. Z. Brandão, Trans.). Santo André, SP: Esetec. (Original work published 2009).

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Escrito por Francine Fernandes

Formada em Psicologia pela UFSCar e especialista em Clínica Analítico-Comportamental, atua como psicoterapeuta e supervisora clínica.

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