Das caixas problema para os desafios do front: E. L. Thorndike na Primeira Guerra mundial¹

Série: Os veteranos das Guerras Psíquicas.

“You're seeing now
a veteran of a thousand psychic wars,
I've been living on the edge so long, where the winds of Limbo roar. 
And I'm young enough to look at,
And far old to see, all the stars are on the inside.
I'm not sure that's there's anything left to me
And far old to see, all the stars are on the inside.
I'm not sure that's there's anything left to me
Don't let these shakes go on!
It's time we had a break from it,
It's time we had some leave.
We've been living in a place,
We've been eating up our brains.
Oh please don't let these shakes go on!”
(Veteran of Psychic Wars; Blue Öyster Cult, 1974) 

Quanto seria diferente se uma coisa mudasse? Numa disciplina tão diversa quanto a psicologia, numa prática tão coletiva quanto a ciência, essa pergunta é difícil de responder e dimensionar. Mas poucas vezes ela foi tão assustadora quanto nos fronts da primeira guerra mundial. Na segunda metade dos anos 1910, o futuro de áreas como a psicopatologia, psicologia da percepção, a psicologia funcionalista americana e a psicologia da aprendizagem estão entre as áreas que poderiam ter seus trajetos amplamente influenciados caso a guerra tivesse se virado contra alguns personagens cujos nomes estão entre as páginas de qualquer manual de história da psicologia. Neste texto, espero localizar quanto a história da psicologia científica e os primórdios de sua aplicação profissional que não foram escritos por esses veteranos das guerras psíquicas. Não se deseja romantizar o conflito que matou mais de 15 milhões de seres humanos e cujas marcas são sentidas até hoje. Pretende-se apenas apresentar de forma introdutória o papel que alguns psicólogos tiveram ao longo da guerra e como os conhecimentos e práticas da guerra influenciaram o desenvolvimento da ciência e da profissão da psicologia.

A primeira guerra mundial ocorreu entre 1914 e 1918 e consolidou um processo de profissionalização e tecnificação das ações e planos de guerra incorporando novas práticas de engenharia e ciências e incorporando definitivamente cientistas e profissionais em meio ao corpo de combatentes em posições e atividades estratégicas (inserir aqui). A Psicologia entrou neste cerco de Guerra entre os muitos fronts tendo eminentes psicólogos engajados no esforço de guerra de Alemanha (e.g. Hermann Oppenheimer, Karl Jaspers, Kurt Koffka, Max Wertheimer e Wolfgang Köhler), Rússia (e.g. Georgy Chelpanov, Pavel Blonsky, K. N. Kornilov e Gustav Shpet), Reino Unido (e.g. Charles Spearman), EUA (Lewis Terman, Robert Woodworth, Robert Yerkes, J. R. Angell, J. M. Cattel, John B. Watson) e de vários outros países.

Aplicação de um teste psicológico (não fica claro qual seria) em soldados de Camp Lee, na Virgínia, em novembro de 1917, ano em que os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial.
Aplicação de um teste psicológico (não fica claro qual seria) em soldados de Camp Lee, na Virgínia, em novembro de 1917, ano em que os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial. Fonte: U.S. National Archives.

Edward Lee Thorndike (1874-1949) deixou um legado à psicologia comportamental que se estende dos fundamentos e medidas da psicologia experimental até a construção de ferramentas de avaliação psicológica e para a educação de crianças e adultos. Entre 1895 e 1904, Thorndike se dedicou à trabalhos experimentais com animais que renderam os achados que ele defenderia em sua tese de doutorado no laboratório de psicologia experimental de William James e James McKeen Cartel na Universidade de Harvard sobre inteligência animal (Thorndike, 1898) e que seria publicado apenas depois de mais de uma década (Thorndike, 1911). A partir de 1904 e até 1940, Thorndike assumiria uma posição como professor de Psicologia educacional na Universidade de Columbia (Britannica, 2018). Em educação deixaria seu legado dividido entre a promoção de ideias eugenistas² e a formulação de testes psicológicos e materiais didáticos voltados ao ensino de crianças e adultos. Apesar de ter formulado sua lei do efeito, Thorndike consideraria as curvas de aprendizagem como um subproduto da interação entre capacidades individuais inatas com os limitantes ou condições ambientais em vigor num processo de aprendizagem.

Em sua atuação no front americano na I Guerra Mundial, Thorndike desenvolveu a versão alfa e beta do ASVAB (teste de múltipla escolha aplicado no processo de admissão de novos recrutas no exército estadunidense). Estes testes se fundamentam sobre três construtos básicos ou dimensões para o desenvolvimento intelectual. A inteligência abstrata, que seria o processo de formação de conceitos distintos e estabelecimento de relações entre conceitos distintos. O segundo construto seria a inteligência mecânica, que descreveria a capacidade de uma pessoa em lidar com objetos físicos e problemas concretos. Por fim, o último constructo trataria da inteligência social ou a capacidade de lidar com relações interpessoais. Este dimensionamento ou análise da inteligência distinguia a proposta de Thorndike de outras contemporâneas suas (e.g. como as de James McKeen Cattell) por propor o tratamento da inteligência em dimensões ou habilidades específicas (e.g. abstrata, mecânica e social), característica que seria posteriormente adaptada em testes posteriores (como as escalas Wescheler de inteligências e os modelos de inteligência de Gardner e Sternberg).

A experiência com a aplicação do ASVAB derrubaria várias das pré-concepção de Thorndike a respeito da inteligência humana. Um bom exemplo é a refutação da ideia de que a inteligência começava a declinar 1% ao ano a partir dos 35 anos de idade (Thorndike, 1935) e contribuiria para o desenvolvimento de novas práticas e políticas para a educação de adultos, em especial nos EUA. O trabalho de Thorndike influenciaria David Wescheler, que incorporaria o princípio de decomposição da inteligência em dimensões à sua escala de avaliação de inteligência em adultos (WAIS-I) ainda em meados dos anos 1930 (Murdoch, 2007). E. L. Thorndike construiu uma carreira integrando os achados de psicologia animal (a qual investigou e se dedicou em grande parte de sua carreira) com o desenvolvimento de práticas e ferramentas que contribuíram com a avaliação e testagem psicológica e para a construção da psicologia educacional nos EUA (Britannica, 2018). Ao fim da guerra, Thorndike retornaria à Universidade de Colúmbia e se dedicaria à pesquisa sobre educação de adultos. Seu trabalho experimental influenciaria o trabalho de Skinner e muitos outros, tendo sua obra uma das mais citadas e referenciadas do século XX (Britannica, 2018). O ASVAB está hoje em sua quinta edição e continua a ser usado pelo exército americano para o recrutamento de pessoas até os dias de hoje (Britannica, 2018).

Notas de rodapé
¹ Este texto é parte de uma série dedicada a apresentação das diversas contribuições à prática profissional do psicólogo e ao desenvolvimento da psicologia enquanto ciência durante o período do
conflito.
² Thorndike diria que "A criação seletiva pode alterar a capacidade do homem de aprender, manter a sanidade, valorizar a justiça ou ser feliz. Não há uma maneira mais certa e econômica de melhorar o ambiente do homem e de melhorar sua natureza" (Thorndike, 1913, p. 134).

Referências

Britannica. (2018). Edward Lee Thorndike. Acessado em: 12 de novembro de 2019. Link: https://www.britannica.com/biography/Edward-L-Thorndike.
Thorndike, E. L. (1911). Animal Intelligence: experimental studies. New York: The Macmillan Company.
Thorndike, E. L. (1913). Education Psychology: briefer course. New York: Routledge.
Thorndike, E. L. (1935). The psychology of wants, interests and attitudes. New York: Appleton-Century.

Link para fonte da imagem de destaque: https://www.smithsonianmag.com/history/first-personality-test-was-developed-during-world-war-i-180973192/

#osveteranosdasguerraspsíquicas
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Escrito por Luiz Henrique Santana

Psicólogo (UFPA). Mestre em Neurociência e Cognição (UFABC). Doutorando em Psicologia Experimental (USP). Pesquisador do Departamento de Psicologia na University of California in Los Angeles e Analista de Pesquisa Freelancer na Pearson Educacional. Ex-professor de Neuropsicologia e Psicologia Experimental (Análise do Comportamento) em Universidades pública e privada no Brasil. Ex-pesquisador visitante no Institute of Neuroscience (Chinese Academy of Sciences). Membro e Coordenador Estudantil de assuntos de Pesquisa (Student Research Coordinator) da Association for Psychological Science Student Caucus. Diretor do projeto The Online Museum of Psychological Science.

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