Nas décadas de 1970 e 1980 alguns psicólogos norte-americanos que atuavam em casos de divórcio e dissolução conjugal começaram a descrever comportamentos de crianças que rejeitavam os pais sem razão aparente (Boyd, 2015). Nessa mesma época, o psicólogo Richard Gardner começou a produzir material sobre disputas de guarda com casos que, segundo esse autor, seriam realizados a partir da manipulação e lavagem cerebral de um dos pais para prejudicar o relacionamento com o outro genitor. Muitos psicólogos brasileiros adotaram a visão de Gardner sobre o fenômeno, ao qual ele denominou de Alienação Parental e, posteriormente, como Síndrome de Alienação Parental (SAP), por ter segundo ele, algumas características semelhantes em todos os casos. Porém, a grande questão é: há cientificidade nesses conceitos e ainda, eles existem de fato no mundo real?
Em início, devemos ter claro que os conceitos descritos por Gardner foram criados pelo próprio a partir de suas observações, sem qualquer suporte científico para ser adotado por outros cientistas (Clemente & Padilla-Racero, 2015). A definição de Síndrome é ainda mais problemática, considerando que para a American Psychiatric Association, responsável pelo DSM, para ser considerada uma síndrome tal problema deve ter tratamento validado empiricamente, curso da síndrome e padrão familiar, ou seja, padrão com características semelhantes nas pessoas afetadas. A SAP não apresenta nenhum desses elementos nas pesquisas publicadas (Bala & Hunter, 2015).
Devido à ausência de suporte empírico para a SAP alguns psicólogos resolveram abandonar a ideia de síndrome, mas mantiveram o uso da Alienação Parental. Estes não descartam a Alienação Parental como possibilidade a princípio e utilizam a ideia que muitas razões são importantes para uma criança recusar contato com um dos genitores, sendo sempre necessária uma avaliação individual. As razões para a recusa podem estar relacionadas com a exposição a violência doméstica, comportamento do genitor que se diz alienado, uso de substâncias, entre outros elementos (Kelly & Johnston, 2001).
Uma série de estudos de Nicholas Bala (Bala, Hunt & McCarney,2010; Bala et al., 2012; Bala & Hunter, 2015) indicam dados empíricos que apontam a alienação como uma, dentre muitas possibilidades, para a resistência de filhos terem contato com um dos genitores. Mas, esse autor aponta que isso seria o menos comum, sendo necessárias avaliações aprofundadas, inclusive sobre a saúde mental dos pais, para que seja possível descartar quaisquer outros problemas familiares envolvidos em casos de resistência das crianças. Bala afirma que a alienação seria um ponto fora da curva, incomum, que ocorre em uma ínfima porcentagem dos casos de disputas de guarda conflituosas.
Clemente e Padilha-Racero (2015) são mais críticos ao apontar que Gardner intencionalmente decidiu omitir de seu conceito de Alienação Parental a possibilidade de a recusa da criança ser justificada por outras causas, como as apontadas acima. Para esses autores espanhóis, Gardner criou a SAP para garantir diagnóstico e tratamento, ou seja, articulando a possibilidade de criar e ser o proprietário de técnicas exclusivas para essa condição. Eles afirmam categoricamente que conflitos do divórcio, que seriam típicos da natureza desse evento, foram criados para um enquadramento em uma síndrome inexistente. Em outro aspecto, diversos autores (Goodman-Brown et al., 2003; Goodman et al., 2003; Warshak, 2001) tem visão semelhante a de Clemente e Padilla-Racero (2015), ao afirmar que ao difundir a ideia de que há uma epidemia ou grande quantidade de alegações falsas de maus-tratos em processos de disputa de guarda, os psicólogos e profissionais dificultam as verificações e investigações deixando o genitor acusado de alienação em vulnerabilidade com acusações contra si de coparentalidade e ameaças de perda da guarda.
Obviamente, profissionais que atuam nessa área tem dificuldade para tomar decisões que garantiriam o princípio do melhor interesse da criança. O desafio dessas decisões é ainda maior em casos que envolvem acusações de Alienação Parental. Os críticos dessa teoria, como os apontados acima, têm tido atenção para o papel que os estereótipos de gênero podem ter na construção de um caso de Alienação Parental. Quando não há evidências claras ou materialidade de provas, como é o caso na maioria das alegações de Alienação Parental, os profissionais enfrentam a dificuldade de lidar com relatos das crianças de forma a obter a informação de maneira imparcial e objetiva (Priolo-Filho et al., 2019). Harman e colaboradores (2016) apontam as expectativas dos profissionais do Judiciário afetam sua tomada de decisão. Isto é, quando há uma “violação” de comportamento de um indivíduo há uma maior probabilidade de que ele seja punido através da decisão judicial. Isso significa que há maior chance de uma mãe ser considerada alienadora quando não apresenta comportamentos esperados socialmente pela sua comunidade. Ou seja, um processo de seleção comportamental com consequências claras para as mães que saem do padrão comportamental esperado pela sociedade faz com que sejam consideradas alienadoras de acordo com Harman et al. (2016). Esses dados apontam para o efeito cultural em uma tomada de decisão que, em tese, deveria ser técnica e imparcial. Esses dados apresentados sobre a visão dos operadores do Direito têm grande impacto na vida das famílias. Muitas vezes as decisões não são contingentes aos comportamentos emitidos pelas partes, mas dependem de vieses do Judiciário que selecionam determinados comportamentos condizentes com a prática cultural vigente. Esse é um aspecto importante da alienação parental e que deve ser mais bem compreendida pelos pesquisadores: como os vieses de gênero afetam as respostas dos indivíduos em situações de suspeita de alienação e quais consequências são fornecidas pelo sistema Judiciário nestes casos.
Tentando identificar aspectos que dificultam a avaliação desses casos Priolo-Filho et al. (2019) realizaram uma pesquisa com 280 profissionais do sistema Judiciário norte-americano que indicaram suas crenças sobre a acurácia do relato de crianças, por exemplo, era apresentada a frase “Crianças de 3-5 são facilmente sugestionáveis pelos pais” e os participantes apresentavam seu nível de concordância com a mesma. Também foram apresentadas três vinhetas relacionadas a divórcio e disputa de guarda, sendo que um apresentava uma história sem hostilidade entre os pais, um com hostilidade entre os genitores (mais característico da ideia de Alienação Parental) e um com suspeitas de abuso sexual infantil. Para todos as vinhetas, o gênero dos genitores foi experimentalmente variável entre os sujeitos, ou seja, alguns participantes responderam cenários em que o pai era o acusado de Alienação Parental, enquanto em outros a mãe sofria tal acusação. Após a leitura dos cenários, os participantes julgavam o quanto acreditavam que naquele caso ocorreu Alienação Parental. Os resultados mostraram que para o cenário de abuso sexual, os profissionais que avaliaram o relato de crianças como impreciso e que liam o cenário em que a mãe era acusada avaliaram essa vinheta como Alienação Parental em taxas mais elevadas. Para o cenário com hostilidade entre os pais, os profissionais com maior idade apontavam a ocorrência de Alienação Parental em taxas superiores nas manipulações em que a mãe era acusada. O cenário sem hostilidade não apresentou diferenças significativas para os participantes. Ou seja, esses dados trazem um aspecto experimental para a discussão sobre Alienação Parental e sobre a dificuldade de avaliação quando hostilidade e suspeitas de abuso sexual são alegadas.
Por fim, a grande questão que temos diante dos casos de Alienação Parental é: todas as variáveis descritas na literatura como frequentes foram avaliadas antes da suspeita de Alienação Parental ter sido apresentada? Ou seja, foi investigada de maneira adequada se a rejeição da criança por um dos genitores é fundamentada nos eventos mais frequentes, como à exposição a violência doméstica? Com base nas evidências científicas nossa pergunta inicial merece ser respondida com parcimônia. Os dados apontam que para a maioria dos casos a alegação de Alienação Parental é uma perturbação das reais causas da recusa de contato das crianças. Importante destacar que as consequências fornecidas pelo Judiciário não têm sido estudadas com a profundidade necessária nestes casos. Especialmente, quais as funções dos comportamentos de acusação de alienação, bem como da seleção de respostas perante as demandas do Judiciário. Somente após uma avaliação adequada sobre essas outras variáveis é que a possibilidade de alienação deve ser aventada. Para que uma investigação adequada sobre as reais causas precisamos de entrevistas de qualidade realizadas por entrevistadores capacitados para o mesmo. Mas esse é tema para outra discussão.
Para saber mais:
Bala, N., Hunt, S. & McCarney, C. (2010). Parental Alienation: Canadian Court Cases 1989–2008. Family Court Review, 48(1), 164–179. doi: 10.1111/J.1744-1617.2009.01296.x.
Bala, N., Bertrand, L. D., Wheeler, A., Paetsch, J. J. & Holder, E. (2012). A study of post-separation/divorce parental relocation. Department of Justice: Calgary, Canada. http://dx.doi.org/10.11575/PRISM/34651
Bala, N. C. and Hunter, K. (2015). Children Resisting Contact & Parental Alienation: Context, Challenges & Recent Ontario Cases (May 5, 2015). Queen’s University Legal Research Paper No. 056.
Boyd, J-P. (2015). Alienated Children in Family Law Disputes in British Columbia. Canadian Research Institute for Law and the Family.
Clemente, M., & Padilla-Racero, D. (2015). Are children susceptible to manipulation? The best interest of children and their testimony. Children and youth services review, 51, 101-107.
Goodman-Brown, T. B., Edelstein, R. S., Goodman, G. S., Jones, D. P., & Gordon, D. S. (2003). Why children tell: A model of children’s disclosure of sexual abuse. Child abuse & neglect, 27(5), 525-540.
Goodman, G. S., Ghetti, S., Quas, J. A., Edelstein, R. S., Alexander, K. W., Redlich, A. D., … & Jones, D. P. (2003). A prospective study of memory for child sexual abuse: New findings relevant to the repressed-memory controversy. Psychological Science, 14(2), 113-118.
Harman, J. J., Biringen, Z., Ratajack, E. M., Outland, P. L. & Kraus, A. (2016). Parents behaving badly: Gender biases in the perception of Parental Alienation behaviors. Journal of Family Psychology, 30(7), 866-874. https://psycnet.apa.org/doi/10.1037/fam0000232
Kelly, J. B., & Johnston, J. R. (2001). The alienated child: A reformulation of parental alienation syndrome. Family court review, 39(3), 249-266.
Priolo-Filho, S. R., Goldfarb, D., Shestowsky, D., Sampana, J., Williams, L. C. A. & Goodman, G. S. (2018). Judgments regarding parental alienation when parental hostility or child sexual abuse is alleged. Journal of Child Custody, 15(4), 302-329, DOI: 10.1080/15379418.2018.1544531
Warshak, R. A. (2001). Current controversies regarding parental alienation syndrome. American Journal of Forensic Psychology, 19(3), 29-60.