O suicídio é um fenômeno complexo, multifatorial e se constitui como um problema de saúde pública, cujas justificativas para seu estudo e sua prevenção são bastante evidentes. Mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida por ano, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. Ainda, estimam entre 20 e 30 tentativas para cada óbito desta maneira (Wasserman, 2001). No Brasil, estima-se que 32 pessoas se matem por dia, em média, resultando em uma taxa de uma morte desta maneira a cada 45 minutos (CVV, 2017).
Em função desses dados, estratégias de prevenção são primordiais. Como Linehan e colaboradores (2015) observam, é comum encontrar terapeutas que não incorporem instrumentos de avaliação de risco de suicídio ou de seu manejo clínico na sua prática. Quando algum(a) psicólogo(a) ou psiquiatra se depara com algum caso que envolva risco de suicídio, é essencial que se pesquise na literatura da respectiva área, a fim de encontrar intervenções que sejam úteis no manejo clínico.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) elaborou uma cartilha chamada “Suicídio: informando para prevenir”. É encontrada facilmente em uma pesquisa na internet. Nela, constam informações sobre o suicídio, mitos e verdades sobre o fenômeno, bem como estratégias para avaliação de risco e de manejo no setting clínico. Em casos que a associação considera como de “médio risco” e de “alto risco” para o suicídio, recomendam a elaboração de um “contrato de não-suicídio” (páginas 42 e 43 do arquivo). Este tipo de intervenção também é comumente recomendada por profissionais da área da saúde, quando são discutidas quais estratégias devem ser usadas para lidar com casos de clientes que querem tirar a própria vida.
Resumidamente, um contrato de não-suicídio é um combinado feito entre terapeuta e cliente, ora verbal, porém geralmente escrito, no qual é acordado que cliente não tente causar dano a si, seja via autolesão sem intenção suicida ou via tentativa de suicídio. Ele pode conter, também, objetivos de tratamento.
Para investigar a eficácia do contrato de não-suicídio, McMyler e Pryjmachuk (2008) fizeram uma revisão sistemática de literatura sobre o tema, encontrando 23 artigos nas bases de dados pesquisadas, dos quais 13 consistiam em pesquisas empíricas e 10, em artigos de opinião.
Sobre as pesquisas empíricas, identificou-se que elas geralmente careceram de evidências para respaldar o uso do contrato de não-suicídio como instrumento eficaz para a prevenção do suicídio. Na revisão de literatura, McMyler e Pryjmachuk (2008) encontraram estudos, como o de Drye, Goulding e Goulding (1973), que não continham grupo controle (grupo que não recebeu a intervenção, no caso o contrato de não-suicídio, ou que receberam outra intervenção para comparar o efeito com a intervenção testada), estudos que utilizavam o contrato em um contexto de acolhimento por telefone – análogo ao nosso Centro de Valorização da Vida (CVV) –, com dados não favoráveis, como 46% dos 617 casos que utilizaram o contrato reportaram ocorrência de autolesões (Mishara & Daigle, 1997).
Acerca dos artigos de opinião, McMyler e Pryjmachuk encontraram algumas explicações para os porquês do contrato não ter eficácia. Alguns usuários de serviços de saúde relataram que compreenderam que deveriam assinar o contrato, caso contrário creram que não receberiam o tratamento psicológico ou psiquiátrico. Além disso, dado o caráter demandante do contrato, ele tende a exercer controle aversivo na pessoa atendida. Assim, ele pode ser usado de maneira punitiva, após um relato sobre suicídio ocorrer em sessão, por exemplo, o que diminui a probabilidade de clientes relatarem sobre o risco de suicídio em sessões futuras¹.
Com base nessas informações, também é possível estabelecer algumas hipóteses de subprodutos prejudiciais do uso do contrato em sessão. Dado que essa intervenção tende a ter o registro de um comprometimento de clientes com o tratamento, terapeutas podem ficar menos propensos(as) a monitorar o risco de suicídio dentro e fora dos atendimentos. Além disso, devido ao caráter demandante do contrato, clientes que apresentam comportamento suicida costumam ter dificuldades em lidar com uma sensação de fracasso. Isto posto, diante de uma crise suicida que pode ocorrer fora das sessões, tais clientes podem acreditar que não estão atingindo expectativas e/ou objetivos terapêuticos. Em função disso, podem ter uma probabilidade menor de relatar tais episódios em sessão.
Não obstante, este contrato parece ter uma função legal para terapeutas e psiquiatras, dado que há um documento, com assinatura da pessoa atendida, mostrando comprometimento com o tratamento e com não se machucar, o que poderia ser visto como uma evidência para a defesa destes profissionais, caso a pessoa morra por suicídio e a família processe o(a) profissional.
Diante de um problema envolvendo algum caso clínico, qualquer ferramenta que aparentemente o resolva tende a ser reforçadora para profissionais da área da saúde. O contrato de não-suicídio produz esse efeito em quem se depara com uma demanda delicada (risco de suicídio), além de haver descrições de contingências (regras) orientando tais profissionais a usá-lo, como o documento da ABP. Contudo, dados e opiniões de especialistas na área apresentam fundamentos para, no mínimo, questionarmos esse uso.
Isto posto, podemos nos perguntar: o que fazer, no lugar, para garantir a segurança da pessoa com risco de suicídio que está sendo atendida? O Safety Planning (Stanley & Brown, 2012) e o Collaborative Assessment and Management of Suicidality (Jobes, 2016) são algumas das intervenções que contornam aspectos problemáticos do contrato anti-suicídio e que foram testadas empiricamente, apresentando evidências favoráveis para serem utilizadas.
O suicídio é um assunto delicado. Se você sente que precisa de algum auxílio, entre em contato com algum(a) profissional especializado(a) ou com o Centro de Valorização da Vida (CVV), através do número 188 ou através do site https://www.cvv.org.br/. Profissionais desta ONG estão disponíveis 24 horas para poder lhe ajudar.
Notas:
¹ É essencial salientar que o uso de uma audiência não-punitiva por parte de terapeutas aumenta a probabilidade de clientes relatarem sobre assuntos que tenderam a sofrer punições da comunidade verbal em suas histórias de vida. Em sessão, quando algum cliente verbaliza o risco de suicídio, criar estratégias para o manejo dele são fundamentais. Porém, primeiramente, clientes devem se sentir à vontade para falar sobre tais assuntos. Além disso, quanto mais informações terapeutas possuírem sobre crises suicidas das pessoas atendidas, mais elementos são coletados para um rearranjo de contingências eficaz para manejá-las.
Referências:
Associação Brasileira de Psiquiatria. (2014). Suicídio: informando para prevenir.
CVV. Falando abertamente sobre suicídio, 2017. Disponível em: <https://www.cvv.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Falando-Abertamente-CVV-2017.pdf> (acesso em 08 de Outubro de 2019)
Drye R.C., Goulding R.L. & Goulding M.E. (1973) No-suicide decisions: patient monitoring of suicidal risk. American Journal of Psychiatry 130, 171–74.
Jobes, D. A. (2016). Managing suicidal risk: A collaborative approach. Guilford Publications.
Linehan, M.M., Korslund, K.E., Harned, M.S., Gallop, R.J., Lungu, A, Neacsiu, A.D., McDavid, J., Comtois, K.A., & Murray-Gregory, A.M. (2015). Dialectical Behavior Therapy for high suicide risk in individuals with borderline personality disorder: A randomized clinical trial and component analysis. JAMA Psychiatry, 72, 475-482.
McMyler C. & Pryjmachuk S. (2008) Journal of Psychiatric and Mental Health Nursing 15, 512–522. Do ‘no-suicide’ contracts work?
Mishara B.L. & Daigle M.S. (1997) Effects of different telephone intervention styles with suicidal callers at two suicide prevention centers: an empirical investigation. American Journal of Community Psychology 25, 861– 885.
Stanley, B., & Brown, G. K. (2012). Safety planning intervention: A brief intervention to mitigate suicide risk. Cognitive and Behavioral Practice, 19(2), 256-264.
Wasserman, D. (Ed.). (2001). Suicide: an unnecessary death. CRC Press.