Imagine que você está em terapia e relata ao seu terapeuta, pela primeira vez, uma opinião ou sentimento pessoal que nunca falou a ninguém. Você percebe o terapeuta ouvindo atentamente o que você tem a dizer, eventualmente perguntando algo com o intuito de clarificar o que foi dito. De repente, o seu relato é colocado sob perspectiva; vira tema de análise na sessão. Diversos desfechos são possíveis, mas dependendo do seu relato e das perguntas do terapeuta, você pode descobrir algo novo sobre você ou vivenciar uma emoção nunca antes explorada em sessão.
Ok. Temos agora uma pequena noção de como pode ser descobrir coisas novas sobre você mesmo em psicoterapia. Muitos clientes possuem dificuldade em “se descobrir” no tratamento. Para ilustrar o que quero dizer, imaginem a seguinte situação: uma cliente, Susannah, entra no consultório com queixas frequentes de irritação¹. Ela buscou terapia porque está com problemas no trabalho, onde ocupa um cargo de gerente. Relata estar cansada de lidar com pessoas, pois elas a irritam. O discurso de Susannah oscila entre sentir-se incapaz de lidar com seus funcionários, inferior aos donos da empresa, e insuficiente no relacionamento com seu namorado atual. Quando questionada sobre os momentos em que sua irritação tem início, a resposta mais frequente é “não sei, vem do nada.” Seus sentimentos com relação ao namorado são expressos com frases vagas, como “ele me faz bem, sabe?” ou “ele me cansa”; no trabalho, a expressão mais utilizada é “estou cansada daquele lugar, não sei o que querem de mim.” Esta cliente não consegue reportar coisas que são importantes para ela a curto e longo prazo. Susannah relata que é uma pessoa séria e ao mesmo tempo brincalhona no trabalho. Engraçada e ao mesmo tempo fria no relacionamento. E carinhosa e ao mesmo tempo impaciente com a família. Suas descrições sobre si mesma variam muito. Por vezes a cliente reporta o que os outros dizem sobre ela (“falam que eu sou muito agitada”). Em sessão, Susannah adota termos utilizados pelo terapeuta para descrever a si mesma (“hoje estou me sentindo meio validante, sabe?”) e pergunta em todas as sessões qual é a maneira correta de agir diante de seus problemas.
Alexitimia
Susannah possui uma característica reportada há muito tempo na literatura sobre psicoterapia. O nome comumente dado é alexitimia, um sintoma subclínico, presente em diversos transtornos psiquiátricos e que se refere à incapacidade de identificar suas emoções e os contextos eliciadores destas (Sifneos, 1973). Clientes com alexitimia são difíceis de tratar. Os relatos em terapia costumam ser excessivamente detalhados e o cliente com frequência fala sobre como as coisas deveriam ser ou sobre como os outros perceberam os eventos. Além disso, clientes com alexitimia parecem não conhecer muito bem a si mesmos (seu self), falhando em reportar desejos e valores (i.e., o que é importante em suas vidas) (Dimaggio & Lysaker, 2015). Portanto, um cliente com alexitimia possui pouco repertório de autoconhecimento e de início é necessário auxiliar o indivíduo a conhecer seus próprios comportamentos, emoções e valores.
Alguns pesquisadores acreditam que a alexitimia ocorre devido a um déficit em identificar as pistas interoceptivas das emoções (Shah, Hall, Catmur, & Bird, 2016). Isto quer dizer que aquele frio na barriga ou aceleração no batimento cardíaco que às vezes sentimos em momentos de medo são menos captados pelos indivíduos alexitímicos. Dado que a alexitimia está associada a vários transtornos psiquiátricos e aparece eventualmente na clínica, Darrow e Follette (2014) elaboraram uma interpretação behaviorista radical da dificuldade em identificar emoções. As hipóteses, baseadas na análise do comportamento, são diversas. A incapacidade de tatear emoções pode ser devido ao não reforçamento de descrições acuradas das emoções na infância. A invalidação ou punição de expressão emocional na infância também é uma possibilidade, dado que a criança pode ignorar pistas emocionais internas ou diminuir o relato para se esquivar de punições. É possível também que o cuidado excessivo dos pais diante de mínimas expressões emocionais durante a infância do cliente alexitímico tenham deixado-o insensível às pistas internas das emoções.
A sugestão de Darrow e Follette (2014) para o tratamento destes quadros segue as premissas da psicoterapia analítica-funcional (sigla FAP para o termo em inglês), uma abordagem comportamental focada na relação terapêutica. Kohlenberg e Tsai (1991/2006), criadores da FAP, propõem que o ambiente de terapia possibilita o reforçamento em tempo real dos comportamentos de melhora do cliente. A premissa é de que reações emocionais de um cliente com alexitimia irão ocorrer, eventualmente, em sessão. Nestes momentos a reação do terapeuta será de grande relevância visto que ela pode aumentar a frequência da expressão emocional do cliente em sessão através de um processo chamado reforçamento diferencial. O reforço neste caso é qualquer reação do terapeuta ao comportamento do cliente que aumente a frequência de expressões emocionais.
Auxiliando o cliente a conhecer suas emoções
Voltando ao caso de Susannah, podemos pensar em intervenções que a auxiliem no processo de identificação de emoções. Darrow e Follette (2014) sugerem que convidar o cliente a relatar como este se sentiu em cada situação pode ser mecânico de início, mas ao mesmo tempo aumenta a consciência do cliente sobre seus estados corporais e seus pensamentos em circunstâncias emocionalmente relevantes. Pode ser pedido ao cliente algo como: “por favor, conte novamente como foi o seu dia de ontem, mas desta vez inclua como você se sentiu a cada pequeno evento”. A ideia é que o relato siga o seguinte formato: “quando encontrei meu namorado ontem eu estava me sentindo x, depois de brigarmos me senti y e quando fizemos as pazes me senti z.” Obviamente os relatos emocionais serão pouco precisos e o terapeuta terá de clarificar os sentimentos para ajudar o cliente a nomear as emoções: “após a briga, em que parte do corpo você sentiu esta emoção? Foi algo mais próximo de raiva ou tristeza?” Teatralizações do terapeuta (e.g., mimetizar expressões de raiva ou tristeza) durante a clarificação podem ajudar o cliente, no entanto, devem ser utilizadas com cautela considerando que o cliente pode adotar a perspectiva do terapeuta sobre o que houve e perder a sensibilidade às suas reações internas do momento.
Também é útil prestar atenção às reações do cliente em sessão, pois eventualmente pequenas expressões emocionais irão surgir e podem ser apagadas pelo relato detalhado. Às vezes, pode ser útil interromper o relato: “eu percebi que você baixou o tom de voz agora e pareceu desanimar… consegue me descrever o que mais você sentiu?” Neste momento, a reação do terapeuta após os relatos do cliente é de suma importância. Conforme sugerido na FAP, o terapeuta deverá avaliar o efeito de suas respostas aos comportamentos de melhora do cliente (Darrow & Follette, 2014; Kohlenberg & Tsai, 1991/2006). Caso o cliente aumente a frequência de relatos com conteúdo emocional, é possível deduzir que as reações do terapeuta estão sendo reforçadoras. Caso os relatos emocionais não aumentem, o terapeuta não está reagindo de maneira reforçadora. Ademais, é muito importante reforçar os comportamentos de melhora que ocorrem em sessão de maneira natural, i.e., utilizando de reações que o cliente poderá encontrar no ambiente extra-consultório. O interesse do terapeuta sobre as emoções que o cliente sentiu em sessão (e.g., “a maneira que você expressou o que sentiu me fez querer ouvir mais sobre esse dia”), perguntas sobre situações emocionalmente relevantes (e.g., “nesse momento me parece que você sentiu algo diferente, o que foi?”) e a validação das emoções do cliente (e.g., “o que você sentiu ”) são alguns exemplos de reações do terapeuta que podem ser reforçadoras para o cliente. Todavia, essas devem ser aplicadas com cautela, na medida em que é avaliado se os pares do cliente irão reagir de maneira semelhante fora da terapia.
Uma construção possível na relação terapêutica
Imaginemos agora que Susannah aprendeu a identificar suas emoções durante o processo de terapia. O terapeuta, muito atento aos preceitos da FAP, auxiliou Susannah a identificar as emoções que sentia na sessão, no trabalho e na sua relação com o namorado. A irritação de Susannah era uma resposta à imprevisibilidade dos eventos: sempre que não sabia como reagir, sentia irritação. Quando algo imprevisível acontecia no trabalho (e.g., relatórios atrasados) ou no relacionamento (e.g., namorado chegava triste em casa), Susannah ficava ansiosa e irritada por não saber “qual a maneira correta de agir” e se perdia imaginando o que os outros gostariam que ela fizesse para consertar as coisas. Ao longo do processo de terapia, Susannah começou a perceber os gatilhos para sua queixa: em situações nas quais poderia ser deixada de lado ela tentava prever como agir para não ser abandonada (ou demitida), sentia ansiedade durante esse processo e, quando não conseguia saber como agir, sentia raiva. A raiva era seguida de um medo breve, que somente foi percebido após Susannah se dar conta de seu receio de ser abandonada. Todo esse processo era reforçado pelo “sucesso” que Susannah eventualmente tinha ao tentar prever o que os outros gostariam que ela fizesse. Será que conhecer todo este processo permitiria à Susannah entrar em contato com aquela sensação nova, de descoberta, que você imaginou no início do texto? Provavelmente sim. No entanto, diversas pequenas descobertas seriam feitas por Susannah antes de entrar em contato com uma percepção maior sobre seu self. Na perspectiva dos autores da FAP, as novidades que a cliente conheceria sobre si mesma em terapia ocorreriam na medida em que seus comportamentos ecoassem nas reações do terapeuta. É como se o self do cliente fosse uma escultura moldada em sessão, com martelos e cinzéis oriundos da relação terapêutica. No caso específico da alexitimia, o papel do terapeuta é auxiliar o cliente a formar a base dessa escultura identificando suas emoções e os contextos que as eliciam.
Referências
Darrow, S. M., & Follette, W. C. (2014). A behavior analytic interpretation of alexithymia. Journal of contextual behavioral science, 3(2), 98-108. doi: 10.1016%2Fj.jcbs.2014.03.002
Dimaggio, G., & Lysaker, P. H. (2015). Metacognition and mentalizing in the psychotherapy of patients with psychosis and personality disorders. Journal of Clinical Psychology, 71(2), 117-124. doi: 10.1002/jclp.22147.
Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (2006). Psicoterapia Analítica Funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec. Original publicado em 1991.
Shah, P., Hall, R., Catmur, C., & Bird, G. (2016). Alexithymia, not autism, is associated with impaired interoception. Cortex, 81, 215-220. doi: 10.1016/j.cortex.2016.03.021.
Sifneos, P. (1973).The prevalence of alexithymic characteristics in psychossomatics patients. Psychotherapy and Psychossomatics, 22, 255-262. doi: 10.1159/000286529