O valor adaptativo da timidez

Normalmente, quando nos referimos a alguém como tímido ou termos correlatos (“reservado”, “fechado”, “introvertido”, etc.), tendemos a ver esta característica como algo negativo. A própria pessoa que se descreve como tímida também, muitas vezes, vê sua timidez de forma negativa. Ou seja, como uma forma de ser indesejada, que envolve desconforto nas interações sociais e que apenas prejudica sua vida. Assim, a pessoa tende a querer mudar esse comportamento, deixando de ser tímida, ou sendo menos tímida, seja em função de como ela própria encara sua timidez, seja em função de como os outros encaram a timidez (é comum a pessoa tímida ser vista como “metida”, “arrogante”, “antissocial”, “estranha”, etc.).

No entanto, podemos olhar a timidez de uma outra perspectiva e nos perguntar que aspectos deste padrão amplo de comportamento poderiam ser adaptativos? Ou seja, que vantagens o “ser tímido” pode proporcionar para o indivíduo?

Embora a timidez seja um constructo difícil de definir por ser bastante heterogêneo e fazer parte da linguagem comum, podemos traçar algumas características importantes deste padrão, tais como: cautela em falar ou agir, reticência nas relações interpessoais, tendência a evitar estas relações ou ficar quieto nelas, nervosismo e ansiedade ante avaliação dos outros e déficit em habilidades sociais (McCroskey & Richmond, 1982; Henderson, Gilbert & Zimbardo, 2014).

É importante ressaltar que a timidez interfere menos na vida da pessoa e está associada a níveis substancialmente menores de evitação social e sofrimento do que o transtorno de ansiedade social (TAS), este considerado a sua expressão patológica (Emanuel & Vagos, 2010).

Segundo Schier, Ribeiro e Silva (2014), nascemos com uma sensibilidade à desaprovação social e à rejeição por razões evolutivas. Assim, tendemos a experimentar, via de regra, algum desconforto no contato social com os outros, pois isso implica, quase que invariavelmente, perspectivas de crítica e rejeição. Nesse sentido, comportamentos de inibição, cautela e timidez são esperados nestes contextos.

Encarado como um conjunto de reflexos inatos, produtos da seleção natural, esta sensibilidade ao escrutínio dos outros – em níveis moderados – pode ter assumido um valor de sobrevivência, tal como liberar adrenalina frente a um perigo. Caso este reflexo seja fraco demais, é provável que o indivíduo não consiga reagir a tempo de se proteger do perigo, tendo menos chance de sobreviver e de se reproduzir, ao mesmo tempo em que o reflexo forte demais também seria prejudicial (Baum, 1994/2006).

Desta maneira, um indivíduo que não é sensível ou é pouco sensível ao que os outros pensam dele, tende a agir de maneiras inadequadas em situações sociais, assim como o indivíduo que é extremamente sensível a estes estímulos.

Por exemplo, digamos que um sujeito extremamente despreocupado com a opinião dos outros (literalmente “não está nem aí para o que os outros pensam”), vá a um encontro romântico pela primeira vez. Como ele não tem a menor preocupação em agradar e é pouco sensível à avaliação interpessoal, possíveis comportamentos inadequados podem surgir, como ser grosseiro, falar demais, não se importar com o que o outro diz, interromper excessivamente o outro, e assim por diante. Talvez esse sujeito seja rotulado como “extrovertido”. A consequência destes comportamentos pode ser resumida em uma só: possível afastamento do outro.

Por outro lado, um sujeito extremamente sensível à avaliação interpessoal também tende a se comportar de modo inadequado em uma situação como essa, ou seja, pode ficar muito calado durante o encontro, ser muito submisso, ficar muito ansioso e tentar agradar excessivamente. O comportamento de tentar causar uma boa impressão no outro e acreditar que não é capaz de fazê-lo está fortemente associado a problemas de timidez excessiva (Leary, 1983 citado por Serra, Gonçalves & Firmino, 1986).

Como podemos observar, a timidez, em si mesma, não é um problema. Ela pode ser benéfica em diversas situações sociais em que este comportamento pode ser reforçado. Por exemplo, a timidez pode evitar críticas e julgamentos indevidos, proteger a pessoa de certos perigos da exposição social, como revelar coisas íntimas a pessoas não confiáveis, gerar admiração por ser um bom ouvinte, elogios por ser “tranquilo” ou “discreto”, evitar pessoas “inconvenientes” que tem seu comportamento reforçado por quem “fala demais”, favorecer a interação com pessoas muito extrovertidas, e assim por diante.

Estas são algumas possíveis funções adaptativas da timidez, no sentido de produzirem reforço positivo e evitar consequências aversivas. Aceitar e atentar para estas funções pode fazer com que o tímido se veja de outra maneira, não como alguém problemático, mas simplesmente como alguém que não age conforme os padrões de extroversão geralmente valorizados. E não há nada de errado nisso. Talvez alguns problemas importantes de convivência humana fossem resolvidos se a timidez adaptativa fosse mais frequente nas relações interpessoais em geral.

 

Referências

Baum, W. B. (1994/2006). Compreender o behaviorismo: Ciência, comportamento e cultura. Porto Alegre: Artmed.

Emanuel, P., & Vagos, R. M. (2010). Ansiedade social e assertividade na adolescência. Tese de doutorado, Universidade de Aveiro, Portugal.

Henderson, L., Gilbert, P., & Zimbardo, P. (2014). Shyness, social anxiety and social phobia. In Hofmann, S. and DiBartolo, P. (eds.) Social Anxiety, Cambridge, Massachusetts: Academic Press, pp. 95-115.

McCroskey, J. C., & Richmond, V. P. (1982). Communication apprehension and shyness: conceptual and operational distinctions. Central States Speech Journal, vol. 33.

Schier, A., Ribeiro, N. P. O., & Silva, A. C. (2014). Hipóteses etiológicas. Em A. E. Nardi, J. Quevedo & A. G. da Silva (Orgs.), Transtorno de ansiedade social: Teoria e clínica (pp. 29-34). Porto Alegre: Artmed.

Serra, A. V., Gonçalves, S., & Firmino, H. (1986). Autoconceito e ansiedade social. Psiquiatria Clínica, vol. 1 (2), pp. 103-108.

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Escrito por Pedro Gouvea

Psicólogo. Especialista em Análise Comportamental Clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Especialista em Docência do Ensino Superior pela AVM Educacional/UCAM. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Centro de Psicologia Aplicada e Formação/UCAM. Atua como psicólogo clínico e em instituição de acolhimento para idosos. Tem interesse principalmente pelos seguintes temas: Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e Psicopatologias/Comportamentos que envolvem a ansiedade social, como o transtorno de ansiedade social (fobia social), timidez, introversão e personalidade evitativa. E-mail para contato: pedrow.gouvea@gmail.com

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