A Teoria das Molduras Relacionais (RFT) vem sendo utilizada em diferentes contextos, buscando compreender, de um modo geral, o processo pelo qual as pessoas relacionam estímulos de diferentes naturezas, e como isso pauta seus pensamentos e ações. A RFT prevê que as pessoas têm a capacidade de criar relações entre palavras/símbolos e significados em diversos níveis, quantos mais estão expostas a exemplares dessas relações. Um exemplo bem simples disso seria quando uma criança aprende a falar “água” diante do líquido transparente e inodoro, e aprende a falar essa palavra toda vez que sente um certo incômodo na garganta (que nomeamos de sede, e aprendemos que “água mata a sede”), ou quando quer para tomar banho, e em todas as outras ocasiões que utilizamos água e apresentamos esta palavra para a criança.
Assim, para entendermos melhor como a publicidade atua na nossa vida, e até mesmo para pensarmos em campanhas mais eficientes (no caso de sermos nós, os publicitários), é essencial buscar a compreensão dos elementos que são associados a uma determinada marca, e de que maneira eles contribuem com a percepção da marca pelos consumidores, e é neste aspecto que a Teoria das Molduras Relacionais pode ser bastante útil.
Para a publicidade, o uso dessa teoria pode ser muito reveladora se aplicada a uma compreensão de construção e percepção de marca. As marcas estão presentes a todo momento em nosso cotidiano como símbolos aos quais atribuímos significados.A RFT pode auxiliar na compreensão das relações dos consumidores com as marcas, e, consequentemente, da relação dos consumidores com os produtos.
Alguém lembra das propagandas de cigarro da década de 80? Elas ficaram famosas por mostrarem figuras de pessoas destemidas no meio do deserto americano, encarando situações de adversidade, praticando esportes radicais, sempre demonstrando imponência, habilidade e força, como se essas características fossem adquiridas pelo uso do produto. Neste exemplo, as relações simbólicas expressavam quase que o oposto do que o consumo do produto pode oferecer: até onde sabemos, fumar não atribui a nenhum indivíduo maior força física ou melhor desempenho físico, muito pelo contrário, geralmente um fumante tem problemas respiratórios que podem dificultar bastante a realização de qualquer atividade física. Neste caso a relação simbólica promovida pela propaganda tenta estabelecer justamente o oposto desta ideia, e toda a campanha publicitária tenta estabelecer relações de identidade entre o produto e contextos atraentes (que podem variar a depender do público alvo de consumidores).
No caso do cigarro, a publicidade teve um papel imprescindível, tanto que, nos últimos vinte anos houve uma redução considerável no número de fumantes, o que pode ser atribuído, entre outras coisas, às leis anti-tabagismo que, dentre várias ações, inviabilizaram esse tipo de publicidade (Portal Brasil Saúde, 2017). A forma como percebemos uma marca está diretamente relacionada à maneira como a publicidade cria e explora as relações que desejam que sejam feitas à determinada marca (Mark & Pearson, 2012).
O trabalho de construção da marca, bem como a Indústria Cultural dependem exaustivamente da publicidade. Ela é “um elemento absolutamente indispensável na sustentação de todo o edifício simbólico da Comunicação de Massa.” (Rocha, 2012, p. 42), e tem o papel fundamental de ‘pagar a conta’ dos conteúdos que recebemos, o tempo todo, de maneira gratuita pela Indústria Cultural. Sendo assim, o mais interesse na RFT para a publicidade é como as propagandas podem construir, de forma intencional, as relações que deseja que o consumidor estabeleça, considerando que existem diferentes tipos de relações possíveis entre os estímulos (relações hierárquicas, relações comparativas, relações causais, relações de oposição, relações espaciais, relações temporais e relações dêiticas – Hayes, Barnes-Holmes & Roche, 2001). De forma semelhante à crianças que estão aprendendo a falar (estabelecendo relações a partir da sua experiência com os exemplares da sua língua materna nas diferentes situações cotidianas), as pessoas também vão estabelecendo relações com as marcas, na medida em que são expostas a múltiplos exemplares de materiais publicitários amplamente difundidos na pela Indústria Cultural.
Essas relações são construídas a partir de pistas contextuais que são fornecidas pelo ambiente (Perez, Niko, Kovac, Fidalgo & Leonardi, 2013). Essas pistas têm a função de ajudar no processo de construção das relações, indicando os elementos que deverão ser relacionados e as funções que irão adquirir (por exemplo, quando sabemos que a água na banheira é para tomar banho, e não para beber). Nesse sentido, a mudança de contexto também pode indicar mudança na relação. Por exemplo, em um contexto onde uma pessoa tem sede e há um copo de água e um copo de refrigerante, ambos são relacionáveis na “categoria bebida”, estabelecendo assim uma relação de equivalência (“líquidos para beber”). Porém em um contexto em que haja preocupação com a saúde, os mesmos estímulos (copo de água e de refrigerante) podem representar uma relação de oposição, sendo um saudável e outro não.
Na publicidade, as pistas contextuais podem ser produzidas intencionalmente, em uma tentativa de que o consumidor crie as relações que são interessantes para uma marca em detrimento de outra. Se a mesma situação, descrita anteriormente, fosse uma propaganda da marca Coca-cola, a relação de oposição não seria interessante para marca, e por isso, não faria sentido que se criasse, na propaganda, pistas contextuais para isso. Mesmo a relação de equivalência não seria a mais interessante. Para marca é importante que o consumidor considere seu produto único e não como “mais uma bebida”. Neste caso, provavelmente, as pistas contextuais levariam a uma relação comparativa, onde a bebida da Coca-cola tivesse atributos mais atrativos que a outra bebida, fazendo com que o consumidor estabelecesse uma relação de superioridade, que teria um retorno positivo para marca, ou seja, o consumo do produto.
Outro aspecto importante é o aspecto arbitrário dessas relações. As molduras relacionais, criadas a partir dos contextos, podem ser arbitrariamente construídas, formando relações puramente simbólicas (De Rose & Rabelo, 2012, p.12), como é o caso das propagandas de cigarro, já citadas aqui. Isso reforça ainda mais a possibilidade de aplicar essa teoria para a percepção das marcas, já que, em sua maioria, as relações que estabelecemos com as marcas são simbólicas, e não se referem a qualidade do produto em si, o que também nos ajuda a explicar o sucesso de umas algumas marcas e insucesso de outras no mercado, ainda que não haja problemas de qualidade nos produtos oferecidos pela marca rejeitada.
No entanto, o ponto que talvez seja o mais relevante para se pensar a percepção das marcas a partir da RFT seja a propriedade de transferência ou transformação de função (Perez, Niko, Kovac, Fidalgo & Leonardi, 2013). Para a publicidade, o mais importante no processo de construção de marca é que os consumidores façam as transferências das características atribuídas à marca para seus respectivos produtos. Quanto mais forte se realizar esta transferência, mais eficiente terá sido a campanha publicitária (como um torcedor de futebol que ama – e compra – produtos de seu time, porque esses produtos – símbolos – possuem a mesma função de seu time). Quanto mais há avanços tecnológicos na fabricação de produtos e bens, menos as marcas têm se diferenciado em termos de qualidade do produto em si, e mais em atributos (muitas vezes apenas simbólicos) que são adicionados aos produtos, daí o papel fundamental da publicidade.
Além disso, podem ser construídas também novas relações, da marca com outras marcas e produtos, como, por exemplo, a relação de oposição. Considerando que muitas vezes há vários exemplares de um mesmo produto no mercado, a campanha publicitária precisa não só motivar a própria ação do consumo do produto da sua marca, mas também desmotivar o consumo de outras marcas a ponto de causar rejeição.
A Teoria das Molduras Relacionais pode ser uma ferramenta tanto para os publicitários compreenderem melhor as relações que intencionam promover entre os consumidores, quanto para pesquisadores investigarem quais relações estão sendo formadas em campanhas publicitárias nos mais diferentes contextos. Em uma sociedade marcada pelo consumo, na qual a publicidade exerce um papel fundamental na forma como as pessoas se comportam (Douglas & Isherwood, 2013), e considerando que boa parte do nosso comportamento é mediada por relações simbólicas, a aproximação da publicidade com a RFT pode ser vista como uma nova perspectiva de compreender os significados atribuídos a diferentes marcas e aos produtos, e como esses significados permeiam o modo como nos posicionamos diante deles.
*Este texto foi escrito em parceria com Priscila Vaz (minha irmã), que é formada em Estudos de Mídia pela Universidade Federal Fluminense. É mestra e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.
Referências
De Rose, J. C. & Rabelo, L. Z. (2012). Teoria das molduras relacionais e possíveis aplicações à educação. Revista de Deficiência Intelectual, 3, 10-15.
Douglas, M. & Isherwood, B. (2013). O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. 2a edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D. & Roche, B. (Orgs.) (2001). Relational frame theory: A post-Skinnerian account of human language and cognition. New York: Plenum Press.
Mark, M. & Pearson, C. S. (2012). O herói e o fora-da-lei. Como construir marcas extraordinárias usando o poder dos arquétipos. 2a edição. São Paulo: Editora Cultrix.
Perez, W. F., Nico, Y. C., Kovac, R., Fidalgo, A. P., & Leonardi, J. L. (2013). Introdução à Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory): principais conceitos, achados experimentais e possibilidades de aplicação. Perspectivas em análise do comportamento, 4(1), 33-51. Versão On-line ISSN 2177-3548.
Portal Brasil Saúde (2017). Número de fumantes no País diminuiu nos últimos 25 anos. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/saude/2017/04/Numero-de-fumantes-no-pais-diminuiu-nos-ultimos-25-anos
Rocha, E. (2012). A sociedade do sonho. 5ª edição – revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Mauad.