Coluna RFT e Relações Derivadas

Prezados leitores do portal Comporte-se, é com prazer que inauguramos a coluna de RFT e Relações Derivadas! A coluna tem por objetivos: (1) apresentar o que há de mais novo no desenvolvimento teórico e experimental da RFT e suas áreas adjacentes de uma forma acessível e (2) apresentar como o conhecimento produzido em laboratório pode ser aplicado a diversos temas de interesse social.

A equipe de colunistas é composta por 17 pessoas que são estudiosos da área: Aline Simões, Bárbara Mohor, César Rocha, Denise Peixoto, Gabriela dos Santos, João Henrique de Almeida, Raul Manzione, Erica Faria, Filipe Vasconcelos, Henrique Pilotto, Jaume Aran, Luciano Queiroz, Matheus Bebber, Melina Vaz, Táhcita Mizael, Umbelino Gonçalves e será coordenada por mim, Cainã Gomes.

Antes de mais nada, precisamos contextualizar o que é a RFT (do inglês, Relational Frame Theory – Teoria das Molduras Relacionais). Com base em descobertas empíricas desenvolvidas por quase meio século, os autores da RFT identificaram o que eles acreditam ser a “unidade” funcional da qual brota a rica diversidade da vida psicológica caracteristicamente humana. Ainda mais surpreendente, uma onda crescente de estudos científicos indica que essa unidade básica (denominada responder relacional arbitrariamente aplicável ou RRAA) permite que uma série de comportamentos complexos sejam previstos e influenciados com precisão, escopo e profundidade (Hayes, Barnes-Holmes & Wilson, 2012). Essas descobertas levaram ao desenvolvimento e subsequente refinamento de explicações científicas acerca de como a linguagem e a cognição humana operam, a partir de um ponto de vista contextual (Hayes, Barnes, & Roche, 2001).

O RRAA se baseia em uma premissa muito simples: a de que relacionar é um operante. O que chamamos aqui de relacionar, é simplesmente responder a um evento ou estímulo nos termos de outro. Por exemplo, diante da pergunta “o carro é maior que a bicicleta?” a resposta sim será reforçada a depender da relação de comparação maior/menor entre carro e bicicleta – nada é maior em si.

Os autores da RFT enfatizam que a aquisição da linguagem se inicia com o aprendizado do responder relacional não arbitrário, ou seja, do responder a uma relação entre estímulos com base em propriedades físicas. Desde pequenos, somos expostos a contingências da comunidade verbal que nos ensinam a relacionar, comparar, contrastar e igualar. Como no caso de qualquer operante, respostas relacionais não ocorrem de forma aleatória. Tais respostas também estão sob controle de estímulos ou, nos termos da RFT, tais respostas são contextualmente controladas. São denominados dicas contextuais relacionais, os estímulos que especificam o tipo de relação (igualdade, oposição, etc.) estabelecida entre dois estímulos.         Uma vez que se ensina um indivíduo a responder adequadamente a estas dicas, agora elas podem ser usadas para aprender novas relações totalmente arbitrárias (i.e. não baseadas em propriedades físicas), pois as dicas adquiriram essa função, ou significado, de indicar um determinado tipo de relação: uma família pode ensinar que “o Palmeiras é maior que o Corinthians”. Neste caso, a comparação não é feita pelo espaço físico que cada clube ocupa nem pelo número de jogadores, mas sim, por uma convenção arbitrária da comunidade verbal, no caso, a família de palmeirenses. Da mesma forma, um indivíduo pode aprender em sua infância que o negro é inferior ao branco, que homens são melhores que as mulheres ou que os árabes são piores que os americanos.

Uma implicação fundamental deste fato é que estímulos podem ter suas funções transformadas a depender do tipo de relação estabelecida. Por exemplo, qual seria a sua vontade de comer “vek”, se eu lhe dissesse que vek é muito mais gostoso do que brigadeiro? Provavelmente alta! Ainda que, antes da fala, “vek” não exercesse qualquer função sobre seu comportamento alimentar, foi apenas com base na regra que descrevia uma relação de comparação entre um estímulo apetitivo (brigadeiro) e um estímulo neutro (vek). Agora, é capaz de você até salivar se eu disser que vou trazer um vek quentinho direto da panela para você!

De acordo com a RFT, respostas relacionais arbitrárias, como as descritas acima, são instâncias de uma classe maior, que consideramos um operante generalizado ou puramente funcional, como a imitação (ver Barnes-Holmes & Barnes-Holmes, 2000). Isso significa que ao longo de um treino com múltiplos exemplares, os membros da comunidade verbal aprendem não só os conjuntos das relações específicas ensinadas. O que é aprendido é o comportamento de relacionar eventos de modo arbitrário (Perez, Nico, Kovac, Fidalgo & Leonardi, 2013).

Há diversas formas pelas quais podemos relacionar eventos entre si além de igualdade e cada tipo de relação é considerado na RFT um diferente tipo de moldura: Há estudos sobre molduras de oposição (Barnes-Holmes,Barnes-Holmes & Smeets, 2004), diferença (Roche & Barnes, 1996), comparação (Vitale, Barnes-Holmes, Barnes-Holmes & Campbell, 2008), hierarquia (Foody, Barnes-Holmes, Barnes-Holmes & Luciano, 2013), temporais (O’Hora et al.,2008), de causalidade, e relações dêiticas ou que indicam a perspectiva do falante e do ouvinte (Weil, Hayes &Capurro, 2011).

De um ponto de vista histórico, podemos apontar que o termo “RFT” foi introduzido à comunidade científica em 1985, em uma apresentação de congresso feita por Steven Hayes e Aaron Brownstein (Hayes & Brownstein, 1985). Nela, as sementes iniciais foram colocadas para o estabelecimento de uma abordagem com um objetivo relativamente ambicioso e extremamente amplo: desenvolver uma abordagem indutiva, monista e funcionalmente enraizada da linguagem e da cognição que possa falar sobre temas tão diversos como as origens da linguagem e o surgimento do self, os fatores responsáveis pelo sofrimento humano, inteligência, atitudes implícitas e comportamento governado por regras (Hughes & Barnes-Holmes, 2016).

A RFT nasce já influenciada pelo contextualismo funcional (Biglan & Hayes, 1996), que é a perspectiva filosófica que se propõe ser sua base epistemológica, pelas pesquisas sobre equivalência de estímulos (Sidman, 1971), pela concepção skinneriana de comportamento operante e seleção pelas consequências (Skinner, 1981) e por uma marcada concepção evolucionista do comportamento (Wilson, Hayes, Biglan & Embry, 2014). É importante ressaltar que, apesar de ser apresentada em seu primeiro livro (Hayes et al., 2001) como uma abordagem “pós-skinneriana” e de críticas pontuais (), isso não quer dizer que a RFT seja uma abordagem anti-skinneriana – a moldura é temporal, não de oposição.

Ao longo dos próximos posts da coluna, vocês poderão acompanhar a temas como: preconceito, aplicações clínicas, marketing, experimentos recentes, atitudes implícitas, comportamento simbólico, cultura, inteligência, comportamento governado por regras, tomada de perspectiva, entre outros!

Referências:

Barnes-Holmes, D., & Barnes-Holmes, Y. (2000). Explaining complex behavior: Two perspectives on the concept of generalized operant classes. The Psychological Record50, 251-265.

Barnes-Holmes, Y., Barnes-Holmes, D., & Smeets, P. M. (2004). Establishing relational responding in accordance with opposite as generalized operant behavior in young children. International Journal of Psychology and Psychological Therapy, 4, 559- 586.

Biglan, A., & Hayes, S. C. (1996). Should the behavioral sciences become more pragmatic? The case for functional contextualism in research on human behavior. Applied and Preventive Psychology5, 47-57.

Foody, M., Barnes-Holmes, Y., Barnes-Holmes, D., & Luciano, C. (2013). An Empirical Investigation of Hierarchical versus Distinction Relations in a Self-based ACT Exercise. International Journal of Psychology & Psychological Therapy, 13, 373- 388.

Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D., & Roche, B. (Eds.). (2001). Relational Frame Theory: A Post-Skinnerian Account of Human Language and Cognition. Springer US.

Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D., & Wilson, K. G. (2012). Contextual behavioral science: Creating a science more adequate to the challenge of the human condition. Journal of Contextual Behavioral Science1, 1-16.

Hayes, S. C., & Brownstein, A. (1985). Verbal behavior, equivalence classes, and rules: New definitions, data, and directions. Paper presented at the annual meeting of the Association for Behavior Analysis, Columbus, OH.

Hughes, S., & Barnes-Holmes, D. (2016). Relational Frame Theory: Implications for the Study of Human Language and Cognition. In S. Hayes, D. Barnes-Holmes, R. Zettle, and T. Biglan (Eds.), Handbook of Contextual Behavioral Science. New York: Wiley-Blackwell.

O’Hora, D., Pelaez, M., Barnes-Holmes, D., Rae, G., Robinson, K., & Chaudhary, T. (2008). Temporal relations and intelligence: Correlating relational performance with performance on the WAIS-III. The Psychological Record, 58, 569-584.

Perez, W. F., Nico, Y. C., Kovac, R., Fidalgo, A. P., & Leonardi, J. L. (2013). Introdução à Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory): principais conceitos, achados experimentais e possibilidades de aplicação. Perspectivas em Análise do Comportamento, 4, 33-51.

Roche, B., & Barnes, D. (1996). Arbitrarily applicable relational responding and human sexual categorization: A critical test of the derived difference relation. The Psychological Record, 46, 451-475.

Sidman, M. (1971). Reading and auditory-visual equivalences. Journal of Speech, Language, and Hearing Research14, 5-13.

Skinner, B. F. (1981). Selection by consequences. Science213, 501-504.

Vitale, A., Barnes-Holmes, Y., Barnes-Holmes, D., & Campbell, C. (2008). Facilitating responding in accordance with the relational frame of comparison: Systematic empirical analyses. The Psychological Record, 58, 365-390.

Weil, T.M., Hayes, S.C., & Capurro, P. (2011). Establishing a deictic relational repertoire in young children. The Psychological Record, 61, 371-390.

Wilson, D. S., Hayes, S. C., Biglan, A., & Embry, D. D. (2014). Evolving the future: Toward a science of intentional change. Behavioral and Brain Sciences37, 395-416.

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Escrito por Cainã Gomes

Formado em Psicologia pela PUC-SP e especialista em Clínica Analítico-Comportamental. É pesquisador do Paradigma - Centro de Ciências do Comportamento, onde também atua como terapeuta. Tem experiência na área de Análise do Comportamento, com ênfase com Comportamento Governado por Regra e RFT (Relational Frame Theory). Foi coordenador da Comissão de História de Análise do Comportamento da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC) na gestão 2015-2016. Além disso, é mestrando do programa de Psicologia Experimental: Análise do Comportamento da PUC-SP com período sanduíche na Universidade de Gent, sob orientação do Prof. Dermot Barnes-Holmes. Está cursando o Intensive Training em DBT do Behavioral Tech, Linehan Institute.

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