Pode causar estranheza o título deste artigo em razão, principalmente, da expressão “vazio existencial” no contexto de uma análise comportamental. No entanto, me parece bastante saudável o movimento relativamente recente de apropriação e investigação de expressões tradicionalmente deixadas de lado pela análise do comportamento, até mesmo para a sua sobrevivência enquanto ciência e cultura. É possível perceber esse movimento com bastante clareza no contexto das terapias de terceira geração, que utilizam, com bastante naturalidade, termos como “aceitação”, “compromisso”, “amor” e “coragem” (Hayes, 1987; Kohlenberg, Tsai, Kanter, Kohlenberg, Follete & Callaghan, 2011).
Nesse sentido, procuro estabelecer aqui uma relação entre o que é descrito como “vazio existencial” e a ansiedade social da perspectiva analítico-comportamental. Para o leitor interessado em um breve texto sobre o manejo de questões existenciais na terapia comportamental, deixo este link: https://www.pedrogouvea.com/single-post/2018/02/19/A-terapia-comportamental-lida-com-quest%25C3%25B5es-existenciais
O vazio existencial é um conceito complexo e de difícil operacionalização. É amplamente utilizado na tradição existencialista e fenomenológica e se refere, genericamente, a impossibilidade do sujeito em atender uma motivação básica do ser humano: dar sentido a sua própria vida (Frankl, 2005). Segundo Frankl (2005), o sujeito que renuncia à sua autenticidade e singularidade para se submeter ao que os outros fazem ou mandam, corre um grande risco de experimentar a falta de sentido e o vazio existencial.
Por outro lado, a experiência de ansiedade social é aquela em que há uma apreensão desagradável que antecede, se mantém e pode até permanecer após uma situação de interação ou desempenho social que envolva avaliação de terceiros. Todos têm em maior ou menor grau (Valença, 2014). Quando em níveis ligeiramente altos, podemos rotular o fenômeno como timidez, e quando excessivamente altos, como transtorno de ansiedade social (TAS). No caso do TAS, o medo e a esquiva trazem sofrimento clinicamente significativo e/ou prejuízos relevantes no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do sujeito. (APA, 2014; Gouvêa & Natalino, 2018).
Tímidos e ansiosos sociais – sobretudo os homens – tendem a apresentar um padrão de vida marcado pela “falta” (ausência de reforçadores, sobretudo sociais). Assim, estes sujeitos geralmente têm poucos amigos, demoram mais a alcançar uma carreira estável, demoram mais a se casar, a constituir família e assim por diante (Caspi, 1988, citado por Camisão, Figueira, Nardi, Mendlowicz, Andrade, Marques, Coscarelli & Verisiani, 1994).
Parece haver uma forte associação entre o chamado vazio existencial ou falta de sentido na vida e a ansiedade social. Ou seja, a hipótese é a de que quanto maior o nível de ansiedade social, maior será a dificuldade do sujeito em obter reforçadores positivos sociais que dariam “sentido” à sua vida. Embora o que faça sentido para uma pessoa seja extremamente amplo e variável, a maioria das pessoas – incluindo os ansiosos sociais – se comportam (ou pelo menos gostariam de se comportar) para obter bons relacionamentos de amizade, amorosos, familiares e um bom trabalho.
É bastante claro na literatura que tímidos e ansiosos sociais desejam ter interações sociais significativas, embora as evitem (Caballo, Andrés & Bas, 2003, Picon & Penido, 2011, Valença, 2014). Na maioria das vezes, essa evitação pode impedir a produção dos reforçadores desejados (amigos, namoros, bons empregos, etc.). Essa ausência ou baixa de reforçadores positivos está intimamente ligada a sentimentos de depressão, tédio, baixa autoestima, etc. (Ferster, Culbertson & Boren, 1982). Talvez, se esta condição de vida se prolongue por muito tempo, o sujeito use a palavra “vazio” para descrever o que sente ou diga que sua vida “não tem sentido”. Note que os termos para descrever sentimentos são utilizados sob contingências de vida muito específicas, e a análise funcional do comportamento verbal e dos termos psicológicos feita por Skinner (1945, 1957) é bastante útil para a nossa compreensão do assunto.
Aqui, talvez, tenhamos nos aproximado de uma conceituação mais objetiva e operacionalizada do que é o vazio existencial, especialmente identificando sob que condições essa expressão é utilizada. Ao mesmo tempo, o fio que liga o vazio existencial à ansiedade social parece ficar mais claro, uma vez que as condições aversivas que favorecem o relato “me sinto vazio” ou “minha vida não tem sentido” estão presentes, e as condições reforçadoras que dariam sentido à vida do sujeito favorecendo relatos positivos estão ausentes. Assim, podemos formular a seguinte interpretação: um histórico de vida com punições sociais relevantes, somado a contingências punitivas e de reforçamento negativo atuais (especialmente verbais), produziriam, em tese, experiências descritas como “vazio existencial” e “ansiedade social”.
A despeito de todos os significados que uma expressão pode ter (ou dos efeitos que uma expressão verbal pode produzir em certas ocasiões), a expressão “vazio existencial” parece se referir a uma experiência interna bastante profunda e sofrida. No entanto, as palavras devem ser analisadas no contexto (histórico e atual) em que o sujeito fala para não confundirmos as coisas. Por exemplo, uma pessoa pode dizer que está com depressão sob controle de certas contingências, mas não relatar sentir-se vazia por não ter tido uma história de aprendizagem com essa palavra para descrever sentimentos. Logo, para essa pessoa, trata-se de coisas diferentes. Uma outra pessoa pode usar os dois termos como “sinônimos funcionais”, ou seja, querer dizer a mesma coisa, mas com topografias verbais diferentes.
Imaginemos, hipoteticamente, um sujeito com um TAS que se diz tímido, preocupa-se excessivamente com a opinião dos outros e teme desagradar ou causar uma má impressão. Paralelo a isso, exibe comportamentos típicos de um transtorno de personalidade evitativa (TPE), como ser submisso nos relacionamentos, evitar falar de si mesmo e expor opiniões, desviar o olhar e ruborizar quando é abordado para uma conversa e assim por diante. Consequentemente, este sujeito não tem amigos íntimos, apenas “conhecidos”, é solteiro – embora queira um relacionamento – e está desempregado. Digamos que essa situação se mantenha por muitos anos, o sofrimento esteja insuportável e lhe ocorram pensamentos suicidas, sugerindo também um quadro depressivo. Ele então decide buscar terapia.
Talvez, sob estas condições, esse sujeito responda que se sente vazio e que sua vida não tem sentido quando o terapeuta lhe pergunta o que o motivou a procurar terapia. Neste contexto, é fundamental que o terapeuta comportamental identifique a função do relato do cliente, ou seja, o que ele quer dizer com “vazio” ou “falta de sentido”. Provavelmente, estes relatos apontam para condições de vida muito aversivas e ausência de reforçadores. A visão pragmática da análise do comportamento auxilia bastante no manejo de verbalizações vagas e no planejamento de intervenções efetivas para estes casos.
Termino sugerindo que parece haver uma estreita conexão entre estes dois fenômenos – vazio existencial e ansiedade social – e que a análise do comportamento pode contribuir bastante com o seu pragmatismo para realizar análises conceituais, aplicadas e planejar intervenções com clientes que apresentam este tipo de demanda, bastante comum nos dias de hoje, mas que podem aparecer no consultório com rótulos (topografias) diferentes. Sigamos com a análise funcional.
Referências
APA (2014). DSM-V. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed.
Caballo, V. E., Andrés, V., & Bas, F. (2003). Fobia social. Em Manual para o Tratamento Cognitivo-Comportamental dos Transtornos Psicológicos, cap. 2, pp. 25-87.
Caspi, A. (1988). Moving away from the world: life course patterns of shy children. Dev. Psychol., 24 (6), pp. 824-831. Em: Camisão, C., Figueira, I., Nardi, A. E., Mendlowicz M., Andrade, Y., Marques, C., Coscarelli, P., & Versiani. (1994). O sofrimento silencioso da timidez. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, vol. 43 (6), pp. 340-343.
Ferster, C. B., Culbertson, S., & Boren, M. C. P. (1982). Depressão clínica. Em Princípios do Comportamento. São Paulo: Hucitec, cap. 18, pp. 699-725.
Frankl, V. E. (2005). Um sentido para a vida: psicoterapia e humanismo. Aparecida: Santuário.
Gouvêa, P. J. S. C., & Natalino, P. C. (2018). Ansiedade social como fenômeno clínico: um enfoque analítico-comportamental. Em A. K. C. R, de-Farias, F. N. Fonseca & L. B. Nery (Orgs.), Teoria e formulação de casos em análise comportamental clínica. Porto Alegre: Artmed.
Hayes, S. C. (1987). Um enfoque contextual para a mudança terapêutica. Disponível em http://www.oocities.org/br/estagioildenor/textos.html
Skinner, B. F. (1945). A análise operacional de termos psicológicos. Disponível em http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/skinner/analise_operacional.pdf
Kohlenberg, R. J., Tsai, M., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a psicoterapia analítica funcional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. C. S. Conte & M. Z. S. Brandão, Orgs. Trads.). Santo André: ESETec.
Picon, P., & Penido, M. A. (2011). Terapia cognitivo-comportamental do transtorno de ansiedade social. Em B. P. Rangé (Org.), Psicoterapias cognitivo-comportamentais: Um diálogo com a psiquiatria (pp. 269-289). Porto Alegre: Artmed.
Skinner, B. F. (1957/1978). O comportamento verbal (M. P. Villalobos, Trad.). São Paulo: Cultrix.
Valença, A. M. (2014). Psicopatologia e diagnóstico. Em A. E. Nardi, J. Quevedo & A. G. da Silva (Orgs.), Transtorno de Ansiedade Social: Teoria e clínica (pp. 49-55). Porto Alegre: Artmed.