Meus textos aqui no portal falam basicamente acerca do título deste post. Você pode conferir todos os meus textos clicando aqui.
Dois eventos me motivaram a escrever este texto (falarei sobre eles depois ou pule direto para a próxima sessão de sub-titulo). Eu tenho a intenção de ser breve, mas raramente me saio bem em escrever pouco. De qualquer modo, espero que você compreenda a minha preocupação e que este texto possa ter alguma utilidade em suas reflexões.
Eu sou psicólogo e trabalho com Mindfulness (que agora está bem popular no Brasil) já faz quase uma década. Naturalmente, como psicólogo, estou sempre sendo consultado sobre “técnicas” e estratégias para promoção de qualidade de vida e bem-estar. Muitas vezes as pessoas chegam até mim por conta do próprio Mindfulness. Quando isso acontece, tem dois caminhos: 1 – eu pratico um pouco de mindfulness com a pessoa (a vivência é fundamental); 2 – eu falo dos 40 anos de pesquisa sobre o mindfulness e de como a técnica recebe, de fato, suporte da ciência.
Sim, para mim, a ciência é algo importante. Aliás, o método científico é algo fundamental. Você pode até ignorar a ciência, mas quando você precisa tomar um antibiótico, fazer um cirurgia, e até mesmo andar de elevador, LÁ ESTÁ ELA! Triunfante. Vale dizer que eu não tenho uma visão “inflada” da ciência, como se ela fosse o grande trunfo da humanidade e nada mais importasse. Existem lacunas que a ciência (os cientistas, melhor dizendo) ainda não alcança com propriedade, ou alcança de maneira pouco interessada e preguiçosa.
A ciência do bem-estar, por exemplo, ainda é muito desencontrada. Todo mundo faz piada com ciência nutricional, por exemplo. Hoje os cientistas falam que comer dois ovos ao dia faz bem e, daqui dois anos, falarão que comer ovos diariamente são um grande vilão da saúde. A ciência do bem-estar mental é ainda mais complexa posto que seu objetos de estudo (o Ser Humano) possui uma complexidade que impede a invariabilidade do objeto de estudo. Portanto, a própria Psicologia, enquanto ciência, é um campo disperso, múltiplo, com diferentes epistemologias e direções. Seguimos cambaleando entre as Geisteswissenschaften (ciências do espírito ou da mente) e as Naturwissenschaften (ciências naturais). Tal é a característica da Psicologia e sua busca por estabelecer uma ciência do Bem-Estar.
Ainda assim, a Psicologia enquanto ciência não pode se furtar de uma associação plena e direta com a empiria e a experimentalidade. A Psicologia é uma ciência, o que a difere do valioso – porém sem fronteiras – conhecimento do senso-comum. Tenho falado sobre isso nos meus textos quando problematizo, por exemplo, sobre a relação entre Psicologia científica e as chamadas Constelações Familiares.
Mas voltemos agora aos dois motivos que inspiraram esse prolegômeno.
Bolinhas coloridas, Física Quântica, Registros Akáshicos e a Psicologia
Anteontem uma amiga psicóloga veio me dizer que iria fazer um “curso” sobre “Registros Akáshicos” (!!) e queria saber minha opinião (o famoso “se valia à pena”). Eu não soube o que responder. Pedi a ela que me dessa 24hs para dar uma resposta.
Fui pesquisar sobre o que seriam “registros akáshicos”. Bem, logo na barra de pesquisa do google, as sugestões eram:
Então eu vi que tem um PDF sobre a coisa, que tem aqui em Porto Alegre, que tem “níveis” e também “ALIENÍGENAS DO PASSADO”!. Legal. Cliquei ali, É CLAROOOO! A gente trabalha mas a gente se diverte.
Fui seguindo as pistas. Como resultado surgiu um documentário unindo o Deepak Chopra e aquele malução com o cabelo em pé que faz documentários sobre ETs para o History Channel. Assisti alguns trechos do documentário, entitulado “Os Registros Akáshicos T10E10”. Daí então o Dr. Chopra disse que existe uma “mente cósmica” com os registros da humanidade. Talvez algo próximo ao que o médico Carl G. Jung tenha denominado em seu modelo como “Inconsciente Coletivo”. No entanto, Jung não ousou tanto em relacionar isso com ETs. O documentário, sim. Daí eles seguem unindo eletromagnetismo, “energia cósmica”, “mente”, “conhecimento cósmico”, etc
Basicamente, segundo um autor obscuro do século XIX, existe um “reino” (!) físico (!) em algum outro lugar (!) chamado AKASHA (!!!!) onde “registros universais” (!!!) podem ser acessados por indivíduos “iluminados” (!).
Daí foi simples. Então o curso que minha amiga queria fazer seria algo para ensinar as pessoas como “acessar” esse “reino”. DEOS MEO MANO! Isso parece muito interessante mas está “anos-luz” distante de uma prática empírica-experimental que possa ser sustentada minimamente dentro uma perspectiva científica. Aí adentramos no obscuro e denso território da pseudociência. A pseudociência é velha companheira da Psicologia e segue de braços dados desde sua fundação.
Me informei um pouco mais sobre os Registro Akáshicos e, em um vídeo no YouTube, uma senhora disse que as pessoas tem capacidade de acessar esses “registros” de “memória” que são protegidos “por um guardião”. E você precisa acessar esses registros porque “é onde está sua liberdade”. Basicamente, tem uma promessa de que se você conseguir “acessar” seus registros você se tornará uma pessoa mais feliz e livre. É tipo uma psicanálise misturada com pseudociência hindu e eletromagnética. Ao menos parece isso.
Meu desafio, de peito aberto, é convidar os cientistas do registro akáshico a submeterem seu método à empiria e experimentação, estabelecendo níveis de segurança e de efetividade da intervenção. Se a “terapia” deles se mostrar segura, eficaz e efetiva eu prometo recomendar “registros akáshicos” como um método seguro e eficaz para se tornar uma pessoa mais livre e feliz. Veja bem, nem como Terapia Cognitivo-Comportamental, que tem mais de 5 décadas de investigação sobre bem-estar, nós conseguimos tal façanha. Certamente existem abordagens mais eficazes.
Eu não recomendei o curso do ponto de vista científico (inclusive, se você é psicólogo ou psicóloga, se trabalhar explicitamente com Akashismo, pode estar violando nossa deontologia), mas disse que se ela quiser experimentar como Ser Humano acho que seria interessante. Mas que ela soubesse que me cheirava como pura pseudociência e placebo. Ela – corajosa como é – foi lá e fez o curso. Adorou.
O curioso sobre isso tudo é que a entrada sobre REGISTROS AKÁSHICOS na Wikipedia em português e em inglês trazem textos diferentes. Isso é normal. O que têm me assustando é que nas entradas em português sobre técnicas supostamente pseudocientíficas não há – sequer – uma discussão acerca da cientificidade da técnica. É um padrão. Na WIKI US ou UK sempre tem um corpo de texto dizendo: “There are anecdotal accounts but there is no scientific evidence for the existence of the Akashic records.[1][2][3]“
Em português não há nenhuma preocupação sobre o que a ciência tem a dizer sobre a técnica em questão. Isso é um padrão da Wikipedia brasileira sobre este tipo de técnicas. Tenho ficado em certo pavor com isso, pois parece demonstrar o valor que damos em nossa cultura à avaliação científica das coisas. É recorrente. O entendimento público de ciência no Brasil é vergonhoso. Abaixo do aceitável.
Desta longa reflexão me surge outra que, de perto, parece estar intrinsecamente conectada. Uma enxurrada de vídeos na timeline do meu facebook, vindo de amigos que curtem esoterismo e pseudociência, de umas bolinhas coloridas caindo por um tipo de tabuleiro de Galton. As bolinhas INCRIVELMENTE se separam por cores devido ao que??? Ao que???? SEMPRE ELA> Física Quântica!!!! A falácia preferida da pseudociência. Veja que incrível o vídeo AQUI.
Naturalmente o vídeo é fake mas CURIOSAMENTE está sendo compartilhado com grande satisfação e alegria por muitos amigos. E CURIOSAMENTE está mais presente na Timeline do facebook dos meus amigos que curtem – dentre outros – registros akáshicos e cia ltda.
Mais uma vez, eu vejo como urgente a criação de uma cultura cotidiana de acesso ao conhecimento científico básico. Isso não significa que eu acredite que a ciência é a única fonte válida de conhecimento. Isso significa apenas que não dá para viver em uma sociedade onde o valor da ciência é pauperizado, cotidianamente, de modo sistemático e contundente.
Como você se comporta frente a estes vídeos e informações pseudocientíficas? COMPARTILHA porque te agrada? Compartilha porque vai na direção de suas crenças e expectativas? Abre mão da dúvida? Opa! O ceticismo (a dúvida) é elemento central do modo de pensar científico. Sem o ceticismo nós abrimos mão daquilo que a evolução demorou milhares de anos para esculpir em nosso córtex pré-frontal – o raciocínio.
Por um Brasil mais racional, científico e saudável.
PS: “estamos indo no caminho errado da edução” > https://www.youtube.com/watch?v=FPbf6qX_fzM