Está em cartaz o filme “Extraordinário”, adaptação para o cinema do livro de mesmo nome, escrito por R. J. Palacio. A história se trata da inserção escolar do protagonista, Auggie Pullman, de 10 anos, que apresenta deformidades faciais congênitas.
A mãe do protagonista dedicou-se à alfabetização e educação dele. Mas, aos 10 anos, a família decide que é o momento de Auggie enfrentar um novo desafio: frequentar a escola. O filme retrata com muita perspicácia e sensibilidade os obstáculos enfrentados por Auggie: a rejeição, o desdém, o isolamento que caracterizam o buylling sofrido pelo menino em sua busca pela adaptação ao novo ambiente.
Mas aqui eu gostaria de destacar outro aspecto do filme, para mim muito rico e igualmente importante: o impacto da presença e da condição especial de Auggie para cada um dos que vivem à sua volta.
Cada personagem tem um toque especial e é um convite à reflexão para cada um de nós, expectadores. O pai se destaca pelo bom humor, para tentar levantar o astral do filho e diminuir a tensão na casa. A mãe, pela dedicação incansável e, por vezes, excessiva, retratada pelo adiamento da redação de sua dissertação de mestrado. A irmã, pela maneira impecável com que se desempenha na escola, sofrendo muitas vezes o peso de lidar sozinha com seus dramas e dificuldades. O colega de escola Jack tem um senso de humor e uma molecagem que lhe conferem um ar espontâneo ao que faz.
O professor Browne, em suas aulas, leva os alunos a discutirem valores essenciais para o convívio humano e harmonioso. Uma de suas aulas tem como tema a discussão sobre a seguinte afirmação: “Seja gentil com o outro, pois todo mundo vive uma grande batalha”.
Aos poucos a trama faz com que esta se torne a máxima do filme: mostra as batalhas que cada um vive, e como cada um desenvolve maneiras pessoais de lidar com sua dor: abdicando de atividades, calando-se, satirizando, entre outras. As topografias, ou os fenótipos dos comportamentos de cada personagem vão aos poucos ganhando função, ou seja, tornam-se um “comportar-se dentro de contextos”1.
O que eram apenas respostas dos personagens se comportando, possivelmente gerando nos expectadores as mais diversas reações imediatas e calorosas, vai se compondo como peças de um quebra-cabeças, e ganhando um significado que nos faz julgar menos e olhar mais para cada personagem como um indivíduo com sentimentos e uma história.
Ao olhar para o roteiro do filme desta maneira, lembrei-me do Pequeno Príncipe, em que Saint-Exupéry nos ensina que “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”2. Fiquei instigada a pensar se, ao fazermos análises funcionais, conseguimos, enquanto psicoterapeutas, enxergar “com o coração”. E, tão importante quando isso, ensinarmos nossos clientes a fazê-lo.
Considero que um primeiro ingrediente para a sensibilidade ao outro seja a habilidade de controlar impressões abruptas e carregadas de nossas próprias regras e valores: neste caso, o excesso de comportamentos governado por regras pode nos levar a generalizações equivocadas sobre os comportamentos das outras pessoas.
À medida que tentamos esclarecer os elementos da tríplice contingência em que o outro está inserido, e não nós próprios, é que teremos acesso às reais condições antecedentes dos comportamentos emitidos pelo outro: não olharemos para as nossas regras, mas para o que de fato antecedeu o comportamento das pessoas. Então, conseguiremos identificar suas carências, seus desejos, suas formas de pensar o mundo. Não precisaremos concordar, mas já daremos um passo ao compreender o que leva o outro a se comportar da forma como o faz.
Esta percepção será, por sua vez, uma condição antecedente para nosso comportamento: uma visão mais acurada do outro nos permitirá ajustar com mais precisão como iremos agir em relação a ele. Estaremos, então, mais sensíveis às Contingências de Reforçamento em operação no presente do que governados pelas nossas regras sobre como vemos (e categorizamos) o mundo.
Ao comportar-se de tal maneira dentro contexto psicoterapêutico, o psicoterapeuta contribuirá para uma relação terapêutica mais humana e sensível, além de oferecer modelo de comportamento para interações que o cliente estabelecer em seu cotidiano. Além disso, poderá contribuir para fortalecer comportamentos desta classe em seus clientes, ao consequenciar e fortalecer comportamentos dos clientes que demonstrem empatia, acolhimento e sensibilidade ao outro.
Diante de um compromisso com a psicologia, de humanizar nossa profissão e as relações sociais, além de uma necessidade urgente de diminuir a individualidade que isola, acredito que 2018 poderá ser um ano melhor se praticarmos nossa sensibilidade ao outro. Vamos tentar fazer da nossa atuação profissional um exercício de “ver com o coração a batalha que o outro vive”.
- Matos, M. A. (2001). Com o que o behaviorismo radical trabalha. In: R. A. Banaco et al (Orgs). Sobre Comportamento e Cognição: aspectos teóricos, metodológicos e de formação em análise do comportamento e terapia cognitivista. Santo André, SP: ESETec Editores Associados.
- Saint-Exupéry, A. (1942).O Pequeno príncipe.