ABPMC emite moção de REPÚDIO referente à interpretação da resolução 001/1999

ABPMC emite moção de REPÚDIO referente à interpretação da resolução 001/1999
A pedido da ABPMC, o psicólogo e ex presidente da associação, Denis Zamignani, elaborou esta moção de repúdio, que publicamos em nome da comunidade brasileira de analistas do comportamento. O Excelentíssimo Juiz Federal da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, em audiência realiza
a no dia 15 de setembro de 2017, acolheu parcialmente o pedido liminar formulado em ação popular proposta por um grupo de três psicólogos, determinando que o Conselho Federal de Psicologia interpretasse a Resolução CFP n.º 001/1999, de modo a permitir ao psicólogo a promoção de estudos científicos e o atendimento profissional com vistas à reorientação sexual.

A Resolução 001/1999 do CFP visa promover a despatologização da homossexualidade e regular a prática dos psicólogos com relação a essa questão. Alguns trechos a seguir permitem compreender o teor da resolução:

“Art. 2° – Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.

Art. 3° – os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.”

 

A decisão do magistrado (http://s.conjur.com.br/dl/decisao-r…), pautada essencialmente no que ele refere como “liberdade científica”e na “dignidade da pessoa”, foi baseada na seguinte argumentação (negrito nosso): “… a norma em questão, em linhas gerais, não ofende os princípios maiores da Constituição. Apenas alguns de seus dispositivos, quando e se mal interpretados, podem levar à equivocada hermenêutica no sentido de se considerar vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual.

 

Pois bem, pretende-se pontuar no presente texto cada um dos argumentos presentes na referida decisão:

(1) Ao levantar a liberdade científica como argumento para arbitrar sobre uma prática psicológica, o Juiz coloca sob a mesma égide categorias muito diferentes: a produção de conhecimento e a prestação de serviços. A produção de conhecimento, em qualquer área, é regulamentada por comitês científicos específicos que, sob a avaliação de pares, definem se um estudo deve ou não ser realizado, levando em consideração a segurança e a dignidade das pessoas envolvidas. Na área de psicologia, a pesquisa é regulamentada atualmente pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), que tem sua mais recente regulamentação na Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016 (http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf).
Já a regulamentação da prestação de serviços profissionais é algo que está sob a responsabilidade dos conselhos profissionais. No caso em questão, é dever do Conselho Federal de Psicologia zelar pela qualidade e efetividade dos serviços prestados, bem como pela segurança e dignidade das pessoas que a eles são submetidos. Trata-se, portanto, de decisão desconectada dos princípios éticos e científicos que devem nortear a atuação do psicólogo. Ademais, a decisão é logicamente falha e juridicamente desajustada. Nesse aspecto, os argumentos utilizados para fundamentar a decisão são logicamente incongruentes e juridicamente duvidosos quando utilizam os princípios da liberdade, da igualdade e da dignidade humana para fundamentar uma decisão que permitirá a proliferação de práticas psicológicas sem fundamento científico e que promovem a discriminação, a estigmatização, o preconceito, a patologização da homossexualidade, que contribuem para a repressão e para a censura de uma liberdade inerente a todo ser humano: a liberdade de SER aquilo que se é;

(2) A avaliação de uma prática em saúde, ao tratar da vida de seres humanos, deve levar em consideração duas questões principais: (a) essa prática é efetiva para promover o resultado que ela diz produzir? (b) essa prática pode ser prejudicial ou nociva para os indivíduos a ela submetidos? No caso em questão a prática que está em discussão são as terapias de (re)orientação sexual, textualmente citadas na decisão do Magistrado. A esse respeito, no ano de 2009, a Associação Psicológica Americana (American Psychological Association) publicou um relatório (http://www.apa.org/pi/lgbt/resource…) de uma força-tarefa para verificar se havia base de evidências científicas sobre as Práticas Terapêuticas dirigidas a mudanças na Orientação Sexual (Sexual Orientation Change Efforts – SOCE), com o intuito de fornecer recomendações mais específicas aos profissionais de saúde mental, ao público e aos formuladores de políticas públicas. Para isso, a força-tarefa realizou uma revisão sistemática da literatura, que chegou aos seguintes resultados:

Sobre a eficácia das SOCE (tradução livre, negrito nosso): “(…) Encontramos sérios problemas metodológicos nesta área de pesquisa; apenas alguns estudos encontraram os padrões mínimos para avaliar se os tratamentos psicológicos, como esforços para mudar a orientação sexual, são eficazes. (…) Nenhuma das pesquisas recentes (1999-2007) atende aos padrões metodológicos que permitem conclusões sobre eficácia ou segurança. (…) Dada a quantidade limitada de pesquisas metodologicamente sólidas, as afirmações de que o SOCE recente é efetivo não são suportadas. (…) esses estudos mostram que a mudança persistente na orientação sexual de um indivíduo é incomum.

Os participantes neste corpo de pesquisa continuaram a experimentar atrações do mesmo sexo após a SOCE e não relataram mudanças significativas para outras atrações que poderiam ser empiricamente validadas, embora algumas tenham diminuído a excitação fisiológica para os estímulos sexuais. A evidência convincente de diminuição do comportamento sexual dirigido ao mesmo sexo e do envolvimento no comportamento sexual com o outro sexo foi rara. (…) Assim, os resultados de pesquisas cientificamente válidas indicam que é improvável que os indivíduos possam reduzir as atrações do mesmo sexo ou aumentar as atrações sexuais de outros sexos através das SOCE.” (pp 2- 3) Sobre o risco de danos produzidos pelas SOCE: “Descobrimos que havia algumas evidências para indicar que os indivíduos sofreram danos da SOCE. Estudos iniciais documentaram os efeitos iatrogênicos de formas aversivas de SOCE. Esses efeitos colaterais negativos incluem perda de sentimentos sexuais, depressão, suicídio e ansiedade. As elevadas taxas de abandono caracterizaram estudos de tratamento aversivo precoce e podem ser um indicador de que os participantes da pesquisa experimentaram esses tratamentos como prejudiciais. Relatórios de pesquisa recentes sobre esforços religiosos e não-favoráveis indicam que existem indivíduos que percebem terem sofrido danos.” (pp 2-3)

O relatório conclui:

“há uma escassez de pesquisas cientificamente sólidas sobre a segurança da SOCE. (…) as tentativas de mudança de orientação sexual podem causar ou exacerbar o sofrimento e a má saúde mental em alguns indivíduos, incluindo depressão e pensamentos suicidas. A falta de pesquisas rigorosas sobre a segurança da SOCE representa uma preocupação séria, assim como os estudos que relatam percepções de danos” (p. 34) Há inúmeros relatos de tentativas de reversão da orientação sexual, com resultados trágicos para os indivíduos a ela submetidos. Alguns dos exemplos são o caso do jovem Bobby Griffith, cuja história foi retratada no filme “Prayers for Bobby” (https://www.facebook.com/prayersfor…).

Outros exemplos dos efeitos nocivos dessa prática podem ser encontrados neste artigo da Human Rights Campaing (https://www.hrc.org/resources/the-l…) ou neste artigo de Shidlo & Michael Schroeder (https://pdfs.semanticscholar.org/a8… d4a.pdf). Com base em todas essas informações e considerando o dever do CFP de regulamentar a profissão e zelar pela oferta de serviços seguros e efetivos, pode-se concluir que o CFP está cumprindo sua função social ao proteger a população de práticas que, até que haja dados que indiquem o contrário, são inefetivas, senão nocivas. Cabe ainda ressaltar que, em nenhum momento, a norma do CFP proíbe a realização de pesquisas sobre o assunto, já que a realização de pesquisas será fiscalizada em outra instância da profissão.

(3) A decisão do Magistrado determina que o CFP se abstenha de “privar o psicólogo de estudar ou atender àqueles que, voluntariamente, venham em busca de orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação.”. Trata-se de interpretação equivocada, ao sugerir indevidamente que, quando uma pessoa busca tratamento por estar em sofrimento devido a sua orientação sexual, ela busca necessariamente a reorientação ou reversão sexual. É ponto pacífico que a pessoa que busca psicoterapia está em sofrimento psicológico e é dever do profissional de psicologia acolher e validar esse sofrimento. Mesmo quando o sofrimento diz respeito a uma experiência egodistônica com relação ao seu desejo sexual, é dever do profissional acolher essa queixa e compreendê-la de modo amplo e despido de preconceitos. Entretanto, é necessário acolher essa demanda considerando o status da homossexualidade enquanto característica, orientação da sexualidade, e não enquanto patologia. Cabe ressaltar que a Associação Americana de Psiquiatria (APA, sigla em inglês) retirou a homossexualidade da lista de doenças desde 1973, determinação que foi seguida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1990. Considerado esse aspecto, pode-se verificar, portanto, que os preceitos levantados pelo Juiz no referido trecho são inteiramente respeitados no texto da Resolução do CFP: “Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas.”

A ausência de dados sobre a efetividade das terapias de reversão, bem como o status não patológico da homossexualidade dão sustentação para as decorrentes diretivas quanto à prática profissional: “os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.” e “Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.”. Tais diretivas são compatíveis com o artigo 4. da Declaração dos Direitos Sexuais, da Organização Mundial da Saúde Sexual (World Association for Sexual Health – http://www.worldsexology.org/), que declara como direito sexual universal “O direito de estar isento de tortura, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante: Todos devem estar isentos de tortura, tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante em razão de sua sexualidade, incluindo: praticas tradicionais nocivas; esterilização, contracepção ou aborto forçado; e outras formas de tortura, tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes praticados por razões relacionadas ao sexo, gênero, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, ou característica física de alguém.”

Permitir que profissionais de psicologia mantenham práticas que atribuam uma condição de patologia à homossexualidade é retroceder mais de quarenta anos no conhecimento científico. O psicólogo deve atender um indivíduo em sofrimento devido a sua orientação sexual, mas esse sofrimento deve ser compreendido em seu contexto social e cultural, e o profissional deve reconhecer o desejo homoerótico como aspecto constituinte da subjetividade do indivíduo atendido e não como algo a ser condenado ou reorientado.

(4) Por último, mas não menos importante, deve-se compreender a origem da reivindicação dos profissionais que solicitaram a anulação da resolução do CFP. Trata-se de profissionais afiliados a religiões evangélicas pentecostais que, há anos, tentam desenvolver no âmbito da psicologia terapias de reorientação sexual e que defendem que a homossexualidade é algo errado, do âmbito do pecado. Em recente entrevista à Revista VEJA, a principal autora da ação, Rozângela Justino (http://rozangelajustino.blogspot.com.br/…), atribui à homossexualidade a prática da pedofilia (http://veja.abril.com.br/blog/reveja/autora-de-acao-da-cura-gay-comparouativistas-a-nazistas/), o que é uma distorção grosseira voltada a confundir a opinião pública sobre um problema que nada tem a ver com orientação sexual, mas sim com graves problemas psicológicos, independentemente da sexualidade. Trata-se de um grupo de pessoas que, mesmo sem base científica, pretende travestir suas práticas com o manto do “saber científico” para impor as suas convicções pessoais e religiosas acerca da sexualidade, lucrando com a dor e o sofrimento, e contribuindo para a depreciação da psicologia como ciência.

(5) Ao decidir a favor de uma reivindicação que é motivada por fatores religiosos e que não atende a princípios científicos mínimos, o juiz está ferindo princípios essenciais da laicidade do Estado. Mais que isso, abre precedentes para uma prática extremamente perigosa: se a terapia de reorientação (ou reversão) sexual passa a ser considerada uma prática da psicologia, nada impede que pais de jovens e adolescentes, insatisfeitos com a orientação sexual de seus filhos, os conduzam precocemente para profissionais que desenvolvam essas práticas, submetendo uma pessoa que ainda não tem autonomia para decidir sobre os rumos de sua existência a uma condição equivalente à tortura psicológica. Considerando todos os aspectos apontados;
Considerando que é dever do profissional da Psicologia prezar pelo bem estar dos indivíduos e zelar pela oferta de tratamentos psicológicos consistentes, seguros, e que respeitem a dignidade da pessoa humana;

Considerando que a Constituição da República Federativa do Brasil garante “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”; Considerando que é parte dos objetivos constitutivos da ABPMC a valorização do ser humano e seus direitos – o que inclui os direitos sexuais;

ABPMC emite moção de REPÚDIO referente à interpretação da resolução 001/1999

Assim, a Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental manifesta seu mais profundo repúdio à decisão proferida pelo Excelentíssimo Juiz Federal da 14ª Vara do Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, em audiência realizada no dia 15 de setembro de 2017 e reivindica que a Resolução 001/1999 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) seja respeitada em sua integridade e que se mantenha a proibição de qualquer terapia de reversão ou (re)orientação sexual no âmbito da psicologia. ___________________________________

Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Graduado em Psicologia e Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela PUC-SP. Analista do comportamento acreditado pela Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental. Diretor acadêmico do Paradigma Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento, onde é docente do Mestrado profissional em Análise do Comportamento Aplicada, além de coordenador do grupo de pesquisa sobre processo-resultado em terapia analítico-comportamental. Foi Presidente da Associação Brasileira de Psicologia Comportamental (ABPMC), gestão 2015-2016, vice-presidente da gestão 2010-2011 e atual membro do Conselho Consultivo. É membro do corpo editorial da Revista Perspectivas em Análise do Comportamento e da Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Membro da ABPMC, Sociedade Brasileira de Psicologia e OBM Network.

 

A ABPMC – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSICOLOGIA E MEDICINA COMPORTAMENTAL é uma organização interdisciplinar que representa os profissionais Analistas do Comportamento, na promoção da Psicologia Comportamental, da Medicina Comportamental e de áreas de estudo do comportamento nos seus fundamentos científicos, na sua prática e nos seus princípios éticos. É considerando a Análise do comportamento enquanto área da Psicologia e com base em seus princípios profissionais e éticos, que a ABPMC se posiciona com relação à referida decisão.

 

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Escrito por Gabriel de Melo Cardoso

Graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Possui formação em Terapia Cognitivo Comportamental pelo CETCC - Centro de Estudos de Terapia Cognitivo Comportamental de São Paulo. Atualmente, Diretor de Consultoria na Persona e bolsista de iniciação científica no projeto: Avaliação de fatores de risco ao estresse ambiental/ocupacional em expedicionários do Programa Antártico Brasileiro (PROANTAR) e membro do projeto de Ensino Online de Análise do Comportamento Humano ambos no Laboratório Fator Humano. Entusiasta dos temas: neurociência, gamification, autismo, linguagem, memória e tecnologia.

Curso “Tecnologias Comportamentais para Inclusão no Ambiente de Trabalho”

II Simpósio ABAcadabra de Atualização em TEA