A engenheira comportamental da ACT-Matrix

Se você é um leitor frequente do Comporte-se, provavelmente já leu algo sobre a Teoria das Molduras Relacionais (Relational Frame Theory – RFT). É possível, ainda, que tenha sofrido um pouco, já que é uma teoria que, por vezes, é difícil de compreender. Ainda assim, pode ser que tenha ficado curioso para saber mais (se quiser saber mais sobre a RFT leia o excelente artigo de Desiree Cassado aqui)

Aqueles que conhecem um pouco sobre aplicativos para o celular, sabem que um dos requisitos para falar que uma “App” é útil, é que seja “user friendly”, que seja fácil de utilizar. Isso não quer dizer que qualquer pessoa pode desenhar o software do aplicativo, pois é muito complexo para quem não é engenheiro. Porém, as tecnologias mais “user friendly” podem estar baseadas em muito estudo e trabalho teórico. Isso é para mim a Matrix, uma peça de tecnologia “user friendly” baseada em uma sofisticação teórica que muitas vezes não vemos com um simples olhar. O objetivo deste artigo é propor uma leitura da Matrix, a partir da Teoria das Molduras Relacionais, para aqueles que gostam da engenharia comportamental, mas também para aqueles que acham que o conhecimento desta teoria pode melhorar a prática clínica (uma ideia que ainda precisa ser respondida empiricamente). A proposta é só especulativa e qualquer dica ou sugestão será bem vinda.

Seguindo com a metáfora, podemos dizer que a Teoria das Molduras Relacionais é a engenharia comportamental da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) e da Matrix¹ . Para a RFT o sofrimento humano é uma consequência colateral da utilização de uma ferramenta fundamental para a sobrevivência, que é a linguagem. Do ponto de vista da RFT a linguagem é um comportamento ou um repertório aprendido de comportamentos, mediante os quais construímos e respondemos para relações simbólicas (arbitrárias). Assim, uma das ideias fundamentais da RFT é que as pessoas verbais têm a capacidade de desenvolver e responder a relações que não são baseadas em propriedades físicas dos eventos, mas em convenções estabelecidas socialmente, transformando as funções dos eventos que são parte das redes relacionais. O responder relacional arbitrariamente aplicável é um comportamento operante, treinado desde que somos crianças, como o ticket de entrada para a comunidade verbal. Uma vez que temos este comportamento no nosso repertório, estabelecemos redes de relações que dão coerência para o caos fenomênico do mundo, fazendo com que o mundo possa parecer mais seguro.

Coincidindo com Barnes Holmes et al (2017), ainda quando RFT não foi desenvolvida como uma teoria sobre a terapia e não fala especificamente sobre ela, é uma teoria comportamental sobre a linguagem e a cognição, a qual pode ser útil para uma maior compreensão e tratamento do sofrimento psicológico do ser humano. Como terapeutas, quando usamos a Teoria das Molduras Relacionais, podemos notar se o que fazemos e falamos, e o que nossos clientes dizem ou fazem, evoca molduras que promovem ou inibem a flexibilidade psicológica numa situação determinada. Quando fazemos isso estamos numa melhor posição para promover comportamentos mais úteis no cliente, e para ajudá-los a se mover para direções valoradas. É importante assinalar que ainda quando a transformação de funções pode ocorrer pelo meio da conversação terapêutica, diferentes dicas podem ativar relações e transformar funções. Certamente a ACT Matrix é um diagrama visual que pode ser útil para evocar diferentes tipos de molduras.

A Matrix é um modelo clínico útil para nos aproximar dos dois objetivos fundamentais na terapia comportamental contextual: Sensibilidade flexível para o contexto e Coerência funcional. Isto significa que usando a Matrix podemos incrementar a sensibilidade de nossos clientes para todos os elementos do contexto que estão influenciando no seu comportamento, e moldar um ponto de vista funcional a partir do qual os clientes podem avaliar a utilidade dos seus comportamentos.

Poderíamos considerar a Matrix como uma metáfora visual que promove a ‘desliteralização’ do conteúdo psicológico, permitindo que o cliente possa experiencialmente “dar um passo para trás” de contextos linguísticos que evocam transformações ineficazes de funções, o que, por sua vez, promovem comportamentos ineficazes e inflexíveis.

Figura 1: A Matrix

A Matrix² é um modelo que permite ao cliente e ao terapeuta transformar as funções dos eventos psicológicos por meio de duas tarefas clínicas principais: pedir ao cliente para classificar suas experiências e comportamentos e fazer perguntas que funcionem como dicas contextuais. Essas dicas contextuais evocam respostas relacionais derivadas específicas que afetam o comportamento do cliente através da transformação de funções.

Na primeira tarefa clínica, convidamos nossos clientes para classificar experiências, comportamentos e histórias nos quatro quadrantes formados pelas duas linhas: 1) “quem ou o que é importante”, 2) “quais obstáculos internos aparecem “, 3) ” o que você faz para se afastar dos obstáculos internos “, e 4)” o que você faz para se aproximar de quem ou o que é importante “. O principal ponto do modelo é classificar as redes relacionais (histórias, regras e pensamentos) em cada um dos quadrantes. Nesta tarefa, convidamos nossos clientes a praticar esta classificação e, ao fazer isso, geramos um contexto no qual eles enquadram suas “experiências internas” hierarquicamente em um “eu” dêitico (Eu observador). Isto implica olhar o nosso mundo interior hierarquicamente, como o conteúdo deste “Eu” dêitico que funciona como um recipiente deles, a fim de enfraquecer as funções de evitação discriminativa. Coincidindo com Foody et al. (2014), ao trabalhar com ACT devemos tentar minimizar o apego ao conteúdo. Sendo assim, um de nossos principais objetivos é transformar as relações de coordenação entre o Eu e o conteúdo (os dois AQUI e AGORA) em relações de hierarquia, onde o Eu fica AQUI, AGORA, mas o conteúdo fica LÁ – ENTÃO. Na verdade, este poderia ser o processo central do que chamamos de Flexibilidade Psicológica. Através de treinamento de múltiplos exemplares com a Matrix, as pessoas classificam hierarquicamente os eventos psicológicos, aumentando as habilidades de tomada de perspectiva (PT) desde um ponto de vista dêitico (AQUI e AGORA) selecionando conteúdos (LÁ – ENTÃO).

A segunda tarefa clínica da Matrix implica na utilização de diferentes perguntas para orientar o cliente em todo o diagrama. Com essas perguntas vamos expandir explicitamente as redes relacionais através da conversa clínica, transformando as funções de contextos verbais que estagnam os clientes. Como exemplo, vamos apresentar algumas das perguntas básicas que usamos na Matrix e algumas das molduras principais que, provavelmente, poderíamos estar evocando. É importante considerar que o que tentamos evocar nem sempre coincide com o que realmente evocamos, já que as mesmas dicas podem evocar diferentes respostas relacionais em diferentes pessoas devido às diversas histórias de aprendizagem:

  • “Quem ou o que é importante para você?”: Esta pergunta pode evocar uma moldura relacional de coordenação com valores.
  • “Quais são os seus obstáculos internos que aparecem no caminho?“: Esta pergunta pode evocar molduras relacionais de coordenação com emoções e outras experiências internas (tatear), mas também outros tipos de molduras, tais como hierárquicas e condicionais. Assim, os obstáculos internos são enquadrados como obstáculos no caminho para alguma das coisas mais importantes para nós, ou enquadrados em uma rede condicional na qual “Se eu me aproximo dos meus valores, vou enfrentar estes obstáculos”.
  • “O que você faz para se afastar da experiência interior indesejada ou o que você faz diante destes obstáculos internos?” Com esta pergunta, nós poderíamos evocar enquadramentos temporais e condicionais.
  • “Como funciona esse comportamento a curto e longo prazo?”: Ao usar a Matrix trabalhamos para avaliar a viabilidade das ações de afastamento, através do enquadramento temporal e condicional, transformando as funções dos movimentos de afastamento em funções aversivas.
  • “O que você faz para se aproximar de quem ou do que é importante?”: Molduras temporais, condicionais e hierárquicas são ferramentas fundamentais para evocar funções apetitivas para os comportamentos de aproximação do que é importante (reforço intrínseco). Portanto, quando usamos esta dica verbal podemos evocar um contexto verbal no qual os clientes podem criar ou ligar com diferentes fontes de significado pessoal.
  • “Quem pode perceber isso?”: Usando a Matrix convidamos o cliente para ser um observador de comportamentos internos e observáveis. Esta pergunta pode ser uma dica dêitica e hierárquica, ampliando o sentido do self do cliente e treinando-o para a tomada de perspectiva, na qual pode escolher comportamentos alinhados com os seus valores.

Figura 2: Representação da Matrix e das perguntas básicas que usamos na Matrix

Como conclusão, podemos dizer que quase todo o trabalho da Matrix é fortemente consistente com RFT. A Matrix é uma metáfora visual que evoca diferentes molduras relacionais, o que nos permite expandir nosso ponto de vista em direção a aspectos relevantes do contexto (sensibilidade contextual) e estar ciente das funções de comportamento (coerência funcional), criando um contexto no qual nós somos os “reciptáculos” de todas as experiências e comportamentos.
Gostou da engenheira?

Ate o próximo artigo.

Fabi

Notas:

¹- Ainda quando às vezes no Brasil algumas pessoas falam de “Matriz”, o nome do modelo faz referencia ao filme. Por isso, a tradução correta tem que respeitar o nome do filme no país.

²- Se quiser conhecer sobre a Matrix recomendo o nosso ultimo livro The Essential Guide to the ACT Matrix: A Step-by-Step Approach to Using the ACT Matrix Model in Clinical Practice (Polk, Schoendorff, Webster, & Olaz, 2015). Proximamente em Português. Tambem pode visitar o sitio da ACT-Matrix Academy (Sitio do querido Kevin Polk, um dos criadores do modelo)

Referencias:

Barnes-Holmes, Y., Kavanagh, D., Barnes-Holmes, D. et al. (2017) Review: Mastering the Clinical Conversation: Language as Intervention, Villatte, M., Villatte, J. L., & Hayes, S. C. (2015).New York, NY: The Guilford Press. Psychol Rec (2017). doi:10.1007/s40732-017-0229-0.

Foody, M., Barnes-Holmes, Y., Barnes-Holmes, D., Törneke, N., Luciano, C., Stewart, I. Mc Enteggart, C. (2014). RFT for clinical use: The example of metaphor. Journal of Contextual Behavioral Science, 3, 305–313.

Polk, K. L., Schoendorff, B., Webster, M. & Olaz, F. O. (2015). The Essential Guide to the ACT Matrix: A Step-by-Step Approach to Using the ACT Matrix Model in Clinical Practice. EEUU: New Harbinger

Villatte, M., Villatte, J. L. & Hayes, S. C. (2015). Mastering the Clinical Conversation. Language as Intervention. New York: The Guilford Press.

Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (1999). Acceptance and commitment therapy: An experimental approach to behavior change. New York: The Guilford Press.

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Escrito por Dr. Fabián Olaz

Doutor em Psicologia. Professor Adjunto de Clínica Psicológica e Psicoterapias, Investigador e Diretor do Laboratório de Comportamento Interpessoal na Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de Córdoba. Membro da ACBS, e representante na Argentina da Asociación Psicológica Iberoamericana de Clínica y de la Salud. Affiliated Scientist do Center for the Science of Social Connection – University of Washington Department of Psychology. Psicoterapeuta ACT e FAP, trabalha especialmente como terapeuta, supervisor e diretor clínico do Centro Integral de Psicoterapias Contextuais em Córdoba, Argentina. Diretor da Especialização em Psicoterapias Comportamentais Contextuais do Centro de Estudos da Família e do Indivíduo (CEFI, POA). Praticante de Aikido, gosta da musica e dos amigos. Midade brasileiro, adora as caipirinhas e compartilhar encontros.

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