Funções executivas no autismo: Possibilidades de uma compreensão comportamental.

TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO (TEA) E DIAGNÓSTICO MÉDICO.

O DSM –V descreve o TEA como um prejuízo do desenvolvimento que acomete as áreas da comunicação social e do comportamento, antes dos 3 anos de idade. Além desses dois amplos grupos de habilidades comprometidas, o TEA pode envolver alterações sensoriais, ou seja, a percepção dos estímulos pode se dar de maneira exacerbada ou abrandada.

As falhas em tais precursores dificultam que uma série de habilidades que deveriam ser observadas em idade mais avançada sejam desenvolvidas. Assim, pode-se dizer que, tais inabilidades desencadeiam déficits de raciocínio abstrato, formação de conceitos verbais, dificuldades importantes em integrar raciocínio verbal com informações sociais, predileções por rotinas e invariância de hábitos e comportamentos, dificuldades em reconhecer e expressar emoções, bem como de inferir sobre os estados emocionais dos outros. As teorias cognitivistas descrevem, ainda, déficits nas funções executivas como decorrentes das falhas identificadas em idade precoce.

FUNÇÕES EXECUTIVAS.

Segundo Miotto (2007), as funções executivas envolvem um conjunto de habilidades relacionadas que nos permite formular nossos objetivos, planejar e organizar as ações necessárias para a execução de tais objetivos, monitorar nosso comportamento, inibir comportamentos inapropriados, resolver problemas e tomar decisões etc. Lazak, Howieson e Loring (2004) descreveram quatro etapas das funções executivas: 1) volição ou intenção; 2) planejamento (identificação dos etapas e elementos necessários para se alcançar um objetivo); 3) ação proposital (transição da intenção e do planejamento para a concretização do comportamento); 4) desempenho efetivo (capacidade de se automonitorar, autocorrigir, regular a intensidade, o tempo e outros aspectos qualitativos da produção comportamental orientada).

ANÁLISE COMPORTAMENTAL DAS FUNÇÕES EXECUTIVAS.

Traduzir tal concepção cognitivista em termos comportamentais é, no mínimo, desafiador. Primeiro, porque não entendemos os comportamentos como produto de constructos hipotéticos internos, mas como comportamentos produzidos na complexa interação organismo e ambiente (incluindo ambiente social). Segundo, porque, desse ponto de vista, poderíamos dizer que tal concepção parece abranger uma ampla gama de comportamentos, ou melhor, de classes comportamentais relacionadas ao comportamento verbal, mais especificamente, relacionadas ao comportamento governado por regras e autoregras.

COMPORTAMENTO GOVERNADO POR REGRAS.

Analisando o comportamento governado por regras a partir da tríplice contingência, podemos dizer que a resposta emitida por um indivíduo é evocada por um estímulo discriminativo que descreve uma regra ou instrução, que por sua vez descreve uma contingência comportamental do tipo “se isso, então aquilo”. Trata-se, nesse caso, de um comportamento evocado e mantido por contingências sociais. Essas regras, por sua vez, podem ser emitidas por um falante próximo a quem seque a regra ou essa regra pode ser dita e seguida pela mesma pessoa. Nesse último caso, chamamos de comportamento governado por autoregras. As autoregras podem ser formuladas a partir da experiência vivenciada nas contingências de reforçamento (não social) ou a partir de instruções recebidas por outro previamente (Skinner 1969/1984).

Não me prolongarei em descrever o comportamento governado por regras e sua importância cultural, pois discutí-lo requereria laudas e mais laudas escritas. Mas quem tiver interesse em se aprofundar mais nesse tema sugiro ler Skinner, 1969/1984 ou Matos, 2001.

O importante de salientar neste momento é que: 1) o comportamento governado por regras é um comportamento verbal e, portanto, social e 2) o comportamento governado por regras deve ser entendido e descrito a partir da história ambiental de instalação e reforçamento do mesmo (e não a partir de constructos hipotéticos). Em outras palavras, o comportamento governado por regras é um subproduto de nossas interações sociais e não subproduto da consciência ou mente.

O DESENVOLVIMENTO DO COMPORTAMENTO GOVERNADO POR REGRAS NO TEA.

Pois bem, se estamos diante de um processo de instalação de um comportamento como esse, nossos indivíduos diagnosticados com TEA se encontram em tremenda desvantagem: primeiro porque eles, quando desenvolvem a fala, o fazem de maneira rudimentar e quando o fazem, a linguagem se desenvolve de maneira menos abstrata e, segundo, porque eles são pouco sensíveis a responder sob controle de estímulos sociais. Assim, podemos concluir que instalar esse tipo de comportamento é uma tarefa árdua, cuja aquisição é necessariamente gradual.

Vamos começar descrevendo o ensino de uma brincadeira de faz de conta. Essa atividade envolve a manipulação dos brinquedos concomitante a um enredo verbal (uma história, um diálogo, por exemplo). Esse enredo verbal deve ser encoberto (audível apenas por quem brinca) assim, nesse caso, o falante é o ouvinte de si mesmo. Na perspectiva cognitivista, chamamos essa habilidade de brincar simbólico (habilidade que permeia as funções executivas). Entendemos que, nessa brincadeira, muitas habilidades precursoras do comportamento governado por regras estão envolvidas: 1) estímulos verbais acompanhando ações (manipulação dos brinquedos); 2) enredos ou experiências anteriormente vivenciadas podem controlar o brincar; 3) quem brinca, fica sob controle de respostas verbais emitidas por si mesmo e 4) as respostas verbais que acompanham as ações são mais importantes que a própria ação (limitada pela concretude dos objetos).

Algumas técnicas comportamentais para o ensino do brincar de faz de conta podem ser incorporadas: vídeo modelação (consiste na apresentação de um vídeo modelo de como manipular os brinquedos e do enredo a ser verbalizado), scripts visuais (consiste em pistas visuais (imagens da cena) organizadas sequencialmente com os passos que devem ser cumpridos durante o brincar. Isso significa que, os estímulos aos quais às crianças com desenvolvimento típico respondem naturalmente no ambiente social e desenvolvem o brincar simbólico de maneira intuitiva, são descompostos e apresentados de maneira simples, clara e direta às crianças diagnosticadas com TEA. Em ambos os casos, os estímulos que evocam e selecionam essa brincadeira são do ambiente social (e não dos constructos hipotéticos cognitivistas).

Uma habilidade mais complexa, que também pode ser descrita à luz do comportamento governado por regras é o fazer a lição de casa. Essa atividade, para ser executada com autonomia requer o cumprimento de uma sequência de tarefas que devem ser pormenorizadamente descritas para nossos indivíduos com TEA. Todos esses passos são descritos na forma de instruções visuais que devem servir de estímulos discriminativos para que o comportamento seja emitido. Por exemplo, podemos escrever em um quadro branco fixado no ambiente no qual a lição de casa é executada as tarefas 1) abrir a agenda, 2) ler na agenda a disciplina que há lição, 3) pegar os materiais da disciplina envolvida, 3) executar a lição de casa. Para evitar estímulos distratores, uma série de medidas também devem ser tomadas e descritas para o aprendiz, como por exemplo, mantenha seu celular fora do ambiente de estudos, bem como regras de como agir diante questões da lição de casa que geram dúvidas. Essas regras também podem ser apresentadas de maneira visual com o uso de histórias sociais (confecciona-se uma história com imagens e textos apresentando o comportamento-alvo e as estratégias para lidar com o mesmo, conforme a ilustração.

Conclui-se, por fim, que as funções executivas podem ser entendidas e trabalhadas, pelo menos em parte, a partir da concepção skinneriana do comportamento governado por regras. O importante, do ponto de vista comportamental, é entender o quanto que esse comportamento depende de uma história individual e cultural de aquisição do mesmo, sempre permeado por práticas sociais e culturais. O cerne da dificuldade de pessoas diagnosticadas com TEA está em responder sob controle de estímulos sociais e culturais, colocando-os em extrema desvantagem quanto a aquisição de comportamentos socialmente construídos. No entanto, há técnicas disponíveis para o desenvolvimento dessas habilidades tão importantes na construção de um ser social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM – 5 (5ª. ed.). Arlington, VA.

Lezak, M. D., Howieson, D. B. & Loring, D. W. (2004). Neuropsychological assessment. (4th ed.). New York: Oxford University Press.

Matos, M. A. (2001). Comportamento governado por regras. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Vol 3. nº 2.

Miotto, E. C. Reabilitação Neuropsicológica da Disfunção Executiva in Miotto, E. C.; Lucia, M. C. S.; Sacaff, M.. Neuropsicologia e as Interfaces com a Neurociências. Casa do Psicólogo: São Paulo, 2007).

Skinner, B. F. (1969/1984). Contingências do reforço: Uma análise teórica. Em Pavlov-Skinner da Coleção Os Pensadores (tradução de R. Azzi e R. Moreno), São Paulo: Editora Abril Cultural.

 

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Escrito por Cintia Guilhardi

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