Desafios da ABA – Parte I: quais os critérios de qualificação do Analista do Comportamento Aplicado ao Autismo?

 

Renata Michel

Iniciando a série de artigos sobre os desafios da Análise do Comportamento Aplicada (ABA, da sigla em inglês para Applied Behavior Analysis) ao Autismo, faz-se necessária a discussão da qualificação do profissional que atua com ABA. Cabe ressaltar que essa tem sido a dúvida de muitos pais, profissionais e até mesmo empresas e planos de saúde.

Este tema tem feito com que os profissionais que trabalham na área se deparem, cada vez mais, com o paradoxo entre a moralidade, a ética e a legalidade. A legalidade é aquilo que nos é imposto por uma norma ou lei vigente no país. No caso, o órgão que regulamenta a atuação do profissional de psicologia no Brasil são os Conselhos de Psicologia (regionais ou federais). Nesse sentido, qualquer profissional portador do diploma de psicólogo pode se afirmar como qualificado em atuar em qualquer área da Psicologia. Nesse caso, mesmo que a atuação em ABA ao autismo apresente características específicas que frequentemente não são ensinadas em cursos de Psicologia, profissionais com tal diploma estão legalmente habilitados para atuar em tal campo. O reconhecimento de uma especialização específica do analista do comportamento pelos Conselhos de Psicologia poderia abrir caminho para o reconhecimento da necessidade de tal formação.

A gravidade da situação fica evidente se pensarmos que grande parte das faculdades de Psicologia possuem, em média, entre um e três semestres de matérias que versam sobre Análise do Comportamento. O psicólogo, portanto, conclui sua faculdade apenas com noções básicas de tal abordagem e sem condições acadêmicas suficientes para atuar na área.

A Análise do Comportamento é uma ciência do comportamento composta por produções de conhecimento em uma filosofia denominada Behaviorismo Radical. Tal ciência possui um braço experimental denominado de Análise Experimental do Comportamento e um braço aplicado denominado de Análise do Comportamento Aplicada, este último comummente tratado pela sigla ABA, descrita acima. Nesse sentido, não existiria um “método ABA”, como muitas vezes aparece propagandeado. O que existe é uma ciência aplicada do comportamento que pode ser utilizada para trazer soluções de problemas a fenômenos de relevância social, entre eles, o autismo.

Falando ainda especificamente da formação do analista do comportamento aplicado e para demonstrar a complexidade de seu trabalho, o clássico livro americano Applied Behavior Analysis” de Cooper, Haron e Heward (2007), descreve cerca de 95 habilidades necessárias para a prática de tal profissional. Tais habilidades vão desde a realização de uma análise funcional apurada, passando por procedimentos de ensino e de mudança de comportamentos, até a forma de registro e avaliação de resultados. Portanto, o aprendizado de uma ciência além de complexo, tem de ser contínuo. A quem deseja atuar em uma ciência natural que se propõe a predizer comportamento e desenvolver repertórios comportamentais, cabe o enfrentamento de anos de estudo e dedicação que nunca devem se exaurir.

Nos Estados Unidos, país com maior número de analistas do comportamento do mundo, foi criado há cerca de 30 anos a certificação denominada BCBA (Behavior Analyst Certification Board). Para obter esse certificado é exigido mestrado, horas de experiência (cerca de 1500), e, ao final, aprovação em um exame. O título do BCBA é reconhecido internacionalmente e tais critérios evidenciam a especificidade de conhecimentos necessários ao Analista do Comportamento. A adoção de um critério similar na realidade do nosso país faz-se cada vez mais necessária.

Tendo isso em vista, associações como a ABPMC (Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental) e a ACBr (Associação Brasileira de Análise do Comportamento) recomendam na procura do profissional Analista do Comportamento o nível de pós-graduação deste profissional, o que pode mais claramente atestar sua qualificação profissional para atuar como analista do comportamento aplicado. Além disso, a atuação de modo competente é também resultado da experiência do profissional sob supervisão de um analista do comportamento experiente e esse quesito deve, também, ser considerado. Pois, assim como um piloto bem formado e que saiba teoricamente todos os comandos de seu avião, necessitará, ainda, provar número de horas pilotando o avião para ser considerado apto.

Importante ressaltar que o objetivo de uma cerificação que defina a atuação do Analista do Comportamento, deve ser o de proteger os pacientes, suas famílias e profissionais de práticas errôneas, garantindo a qualidade do serviço prestado, e não o de conservar interesses de reserva de mercado de uma minoria de profissionais que possuam cargos ou privilégios políticos em tais instituições.

Atualmente, tem crescido no país o número de casos de crianças e adolescentes diagnosticados com TEA (Transtorno do Espectro do Autismo). Por consequência, muitos pais têm procurado o tratamento a seus filhos e, muitas vezes, buscado judicialmente que o Estado ou planos de saúde custeiem o tratamento em ABA, prescrito pelo médico – situação essa que trataremos em artigos posteriores. Com a demanda crescente para analistas do comportamento aplicados ao campo do autismo, e a ampla oferta de psicólogos no mercado, como já preconizou Marx, impera a lógica capitalista. Cada vez mais, profissionais que não possuem qualquer titulação de pós-graduação ou experiência comprovada de atuação sob supervisão em Análise do Comportamento Aplicada, atuam com ABA ao autismo.

Nesse momento, nos deparamos com o paradoxo entre o que é legal e o que é moral ou ético. A esfera da legalidade é sem dúvida, e como já explicado acima, mais específica e não possui ainda entendimento específico sobre o tema. Entretanto, a moral e a ética são tão antigas quanto Aristóteles, considerado por muitos, o primeiro pai da Psicologia. A moral é um conjunto de valores vigentes na sociedade. A ética é o questionamento da moral. Cabe então questionar: seria moralmente justo que um profissional realizasse um trabalho que não está, nem próximo, de sua capacidade profissional? Seria eticamente correto colocar interesses pessoais e profissionais acima do bem-estar do paciente? Para Skinner (1971), valores são reforçadores providos a contingências dos membros de uma cultura. Quais contingências temos reforçado? Tais contingências contribuem para a manutenção e aprimoramento de nossa cultura?

Se estivéssemos diante de um conselho médico e fosse relatado que um paciente passou por uma cirurgia cardíaca realizada por um clínico geral a comoção, sem dúvida, seria generalizada. Na Psicologia, entretanto, isso tem se tornado comum e, o que é mais grave, com pacientes altamente vulneráveis e que necessitam do tratamento correto e intensivo para que possam ter um melhor prognóstico no futuro. Será que não é o momento de repensarmos como a Análise do Comportamento é vista, tratada e aplicada?

Aristotle, Jowett, B., & Davis, H. W. C. (1920). Aristotle’s Politics. Oxford: At the Clarendon Press.

Cooper, J.O., Heron, T.E., & Heward, W.L. (2007). Applied Behavior Analysis (2nd ed.). Upper Saddle River: NJ.

Skinner, B. F. (1971). Beyond freedom and dignity. Indianapolis: Hackett Publishing.
Tradução: Maurício Sauerbronn de Moura.

 

 

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Escrito por Renata Michel

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