Uma reflexão sobre o uso do conceito de personalidade na Análise do Comportamento

O conceito de personalidade talvez seja um dos mais antigos e fundamentais da Psicologia enquanto ciência. Ele parece abranger uma gama de ideias que marcam o estudo do indivíduo enquanto ser único, com características idiossincráticas e que definem a sua forma de ser no mundo. Alchieri, Cervo & Núñez (2005) afirmam que “a personalidade permite entender aquilo que distingue as pessoas entre si nas suas diversas preferências e ações e o que lhes é singular” (p. 175).

 A origem da palavra vem do termo “persona”, que se refere a máscara utilizada no teatro grego e representava a aparência externa do indivíduo e não o seu verdadeiro “eu”. Nesse sentido, haveria algo de essencial e oculto no ser humano que não é expresso pela sua personalidade. O estudo deste conceito apareceu de forma mais sistemática a partir do século XIX, através de observações clínicas de médicos que buscavam tratar “desvios” de personalidade por meio da psicoterapia (Lundin, 1977). De lá para cá, diversos modelos teóricos se desenvolveram buscando explicar o comportamento humano singular por meio do termo “personalidade”. Consequentemente, inúmeras sistematizações e categorizações foram propostas e as definições são vastas.

Desde o senso comum, onde o termo é frequentemente associado a ideia de “atração social”, no sentido de descrever um indivíduo que tem personalidade como um indivíduo forte, com facilidade de se expressar, atraente fisicamente, etc., até modelos psicológicos clássicos que sistematizaram teorias da personalidade, como a psicanálise de Sigmund Freud, a psicologia da consciência de William James e a psicologia individual de Alfred Adler (Fadiman & Frager, 2002), busca-se compreender mais precisamente o que, de fato, significa tal conceito. Com efeito, pode-se citar, ainda, um grupo de teorias estruturais da personalidade, teorias que utilizam a noção de traços, temperamento e caráter e teorias integrativas, como a dos estilos de personalidade de Theodore Millon (Caballo, 2008; Lundin, 1977; Alchieri, Cervo & Núñez, 2005).

E onde se encontra a Análise do Comportamento neste contexto? A resposta que surge mais imediatamente é que ela se encontra, de certa forma, à margem dos estudos sobre a personalidade. As razões que levam a isso são diversas, mas, essencialmente, o fato do conceito de personalidade ter raízes em formulações teóricas bastante divergentes da Análise do Comportamento, parece ser um determinante significativo da pouca aproximação da área com o conceito (Banaco, Vermes, Zamignani, Martone & Kovac, 2012). Em função do termo estar bastante associado a noções estruturalistas e internalistas do comportamento, os analistas do comportamento, em geral, pouco utilizam-no em seu vocabulário formal.

O que se encontra mais frequentemente na literatura analítico-comportamental são conceitos relacionados a personalidade que, em tese, explicá-lo-iam utilizando outros termos. Por exemplo, o termo self é encontrado com certa frequência para designar um repertório individual de comportamentos que é produto de contingências filogenéticas, ontogenéticas e culturais (Rubio, 2004). Embora seja produto dos três níveis de seleção, o self constitui um repertório que é formado predominantemente pelo nível cultural. Nesse sentido, para que alguém adquira a noção de self, é necessário o desenvolvimento de um repertório verbal que se dá no contato com uma comunidade verbal particular. Baldwin e Baldwin (1986/1998) explicam que “o bebê não possui a noção de self, mas seus pais, irmãos, irmã e outros começam a ensiná-lo cedo a descrever o seu próprio corpo e comportamento como a criança descreveria o corpo e o comportamento de outra pessoa” (p. 268).

Kohlenberg e Tsai (1991/2006) enfatizam que o self é um comportamento verbal relacionado ao controle de estímulos que evoca a resposta verbal “eu”. Assim, o indivíduo, no curso do seu desenvolvimento, aprende a relatar a palavra “eu” diante de certos contextos e é reforçado por isso, sendo este repertório ampliado e refinado gradativamente com o tempo. Por exemplo, uma criança que, diante de um sorvete diz “eu quero sorvete” e é reforçada em seguida pela mãe dando o sorvete e elogiando a criança, está aprendendo o complexo repertório denominado personalidade.

Skinner (1953/2003), por sua vez, menciona que o “eu” parece ser “simplesmente um artifício para representar um sistema de respostas funcionalmente unificado”. (p. 312). Ou seja, determinados padrões de respostas podem se organizar em torno de um dado estímulo discriminativo para obter o mesmo reforço. Skinner utiliza os termos “eu” e “personalidade” basicamente como sinônimos. Isto fica claro quando ele propõe que “um eu ou uma personalidade é, na melhor das hipóteses, um repertório de comportamento partilhado por um conjunto organizado de contingências” (Skinner, 1974/2006, p. 130). Lundin (1977, p. 8) sugere que a personalidade seria a “organização do equipamento singular de comportamento que um indivíduo adquiriu através de condições especiais de seu desenvolvimento”.

Estas proposições deixam clara a inversão na maneira de compreender o conceito como um agente originador do comportamento dentro do indivíduo para compreendê-lo como uma função de condições externas de natureza predominantemente social. Um bom parâmetro para abordar a personalidade dentro da Análise do Comportamento é verificar se os termos que se referem a ela são passíveis de definição operacional, ou seja, se podem ser submetidos a operações experimentais que não incluem entidades metafísicas (Lundin, 1977).

É fundamental mencionar que, em última análise, o termo personalidade, enquanto um comportamento verbal, está sujeito aos mesmos princípios que controlam quaisquer outros comportamentos. Nesse sentido, é imprescindível que o analista do comportamento busque explicar este conceito por meio dos processos comportamentais básicos já estabelecidos na área, desde os mais simples (como reforçamento, punição, extinção, discriminação, etc.) até os mais complexos (como equivalência de estímulos e relações derivadas).

Compreender que a emissão da resposta verbal “personalidade” ocorre em circunstâncias específicas e com determinadas funções, auxilia a entendê-la (a personalidade) como uma unidade funcional (verbal) que tem efeitos específicos sobre o ouvinte (Baum, 2005/2006), afastando explicações estruturalistas e enfatizando explicações funcionais. Sendo assim, a pergunta básica a ser feita pelo analista do comportamento é a seguinte: sob controle de que contingências o cientista e/ou o leigo emite a resposta verbal personalidade?

De todo modo, ainda há grande resistência ao uso do termo por analistas do comportamento. Skinner não elaborou uma teoria formal da personalidade como outros teóricos mencionados neste artigo, embora tenha feito referências esporádicas ao conceito ao longo de sua obra. Curiosamente, a Análise do Comportamento desenvolveu explicações consistentes e mais sistemáticas sobre outros conceitos de natureza “mentalista”, tais como atenção, memória, consciência, propósito, autoconhecimento, percepção, motivação e, em dado momento, até se propôs como uma teoria da mente (Lopes & Abib, 2003). Todos estes conceitos estão, em maior ou menor grau, relacionados a personalidade. A área se apropriou dos estudos relativos a eles e deu-lhes uma nova “cara”, mas não fez isso com a personalidade.

Uma reflexão importante sobre isto é encontrada no filósofo Gilbert Ryle (1900-1976). Ryle, diferentemente de Skinner, não excluiu de sua análise termos mentalistas, mas sugeriu que eles poderiam ser úteis se pudessem ser utilizados de maneira lógica. Assim, o termo inteligência, por exemplo, não seria tratado como uma ficção mental inferida do comportamento de alguém que se comporta de certa forma, mas apenas como comportamento inteligente. Para Ryle, considerar a inteligência como a causa de um comportamento envolve um erro lógico ou de categoria (Baum, 1994/2006). O mesmo se daria com a personalidade.

Ryle (1953/2015) explica que falar sobre o uso de expressões ou termos – tal como o uso de pregos ou facas – evita a ideia de que estamos falando de alguma entidade estranha. Por exemplo, estudar o uso da expressão “sistema solar” não significa estudar o sistema solar. Neste sentido, ele sugere que devem-se buscar explicações sobre como as palavras funcionam e não significados em si mesmo, raciocínio bastante semelhante ao de Skinner. Por fim, como ressaltam Banaco, Vermes, Zamignani, Martone & Kovac (2012), a Análise do Comportamento não deve ignorar o termo personalidade em função das suas raízes divergentes da área, mas sim atribuir definições e explicações específicas aos fenômenos descritos por ele que sejam alinhadas com as proposições teóricas da abordagem.

Referências

Alchieri, J. C., Cervo, C. S., & Núñez, J. C. (2005). Avaliação de estilos de personalidade segundo a proposta de Theodore Millon. Em PSICO, vol. 36 (2), pp. 175-179.

Banaco, R. A., Vermes, J. S., Zamignani, D. R., Martone, R. C., & Kovac, R. (2012). Personalidade. Em M. M. C. Hubner & M. B. Moreira (Orgs.), Temas clássicos em psicologia sob a ótica da análise do comportamento. Rio de Janeiro: Koogan.

Baldwin, J. D., & Balwin, J. L. (1986/1998). Princípios do comportamento na vida diária.

Baum, W. M. (1994/2006). Compreender o Behaviorismo: Ciência, comportamento e cultura. Porto Alegre: Artmed.

Caballo, V. E. (2008). Manual de transtornos da personalidade: Descrição, avaliação e tratamento. São Paulo: Santos.

Fadiman, J., & Frager, R. (2002). Teorias da personalidade. São Paulo: HARBRA.

Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (1991/2006). Psicoterapia analítica funcional: Criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec.

Lopes, C. E., & Abib, J. A. D. (2003). O Behaviorismo Radical como Filosofia da Mente. Psicologia: Reflexão e Crítica, vol. 16 (1), pp. 85-94.

Lundin, R. W. (1977). Personalidade: Uma análise do comportamento. São Paulo: E.P.U.

Rubio, A. R. (2004). Behaviorismo radical: uma revisão do conceito de Self na obra de B. F. Skinner. Em M. Z. S. Brandão, F. C. S. Conte, F. S. Brandão, Y. K. Ingberman, V. M. da Silva & S. M. Oliani (Orgs.), Sobre comportamento e cognição, vol. 13. Contingências e Metacontingências: Contextos Socioverbais e o Comportamento do Terapeuta, pp. 13-20. Santo André: ESETec.

Ryle, G. (1953/2015). Gilbert Ryle. Retirado no dia 03/11/2016, do site http://plato.stanford.edu/entries/ryle/

Skinner, B. F. (1953/2003). Ciência e comportamento humano (J. C. Todorov, & R. Azzi, trads.). São Paulo: Martins Fontes.

Skinner, B. F. (1974/2006). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.

 

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Escrito por Pedro Gouvea

Psicólogo. Especialista em Análise Comportamental Clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento. Especialista em Docência do Ensino Superior pela AVM Educacional/UCAM. Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental pelo Centro de Psicologia Aplicada e Formação/UCAM. Atua como psicólogo clínico e em instituição de acolhimento para idosos. Tem interesse principalmente pelos seguintes temas: Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e Psicopatologias/Comportamentos que envolvem a ansiedade social, como o transtorno de ansiedade social (fobia social), timidez, introversão e personalidade evitativa. E-mail para contato: pedrow.gouvea@gmail.com

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