Um dos meus amigos de graduação costumava dizer “eu sou uma pessoa ruim, mas sou um bom profissional”. Apesar de meu amigo, ele realmente não era uma boa pessoa. Mas isso não o impediu de ser um bom profissional. Depois de se formar ele foi trabalhar no Amapá e virou professor. Atualmente ele tenta desenvolver o cenário da Abordagem Centrada na Pessoa por lá, e seus alunos o adoram. Acho que a moral da história é: ser um bom profissional tem mais a ver com o quanto você estudou e se dedica seriamente para a sua prática, do que com o seu estilo de vida.
O velho Ruy Barata já dizia: “a poesia não se faz com ideias e sim com palavras”. Acredito que isso cabe para a psicoterapia, ela é feita com base em técnicas e conhecimento advindo de estudos científicos. Temos que separar a nossa prática profissional da ideia paternal de que psicoterapia se faz com boa vontade e apenas dependendo da relação terapêutica.
Este texto não é para defender que a relação entre terapeuta e cliente não é importante. A relação é o ponto primordial de qualquer processo psicoterapêutico, é de longe a melhor ferramenta de intervenção. O problema surge quando se sacraliza a relação terapêutica. Ela deixa de ser algo planejado e se transforma em uma quimera. É comum vermos a psicoterapia ser tratada como um estilo de vida, e não como uma profissão. Acredito que isto se deva, em parte, por essa ideia de que o psicoterapeuta é um ser calmo, paciente, etc.
Wolpe (1973/1978) ressalta que a relação terapêutica tem um efeito importante e claro no processo psicoterápico, porém “os procedimentos da terapia comportamental tem efeitos adicionais àqueles efeitos relacionais que são comuns a todas as formas de terapia” (p.24). Os procedimentos dos quais o autor fala são: os métodos de condicionamento operante; a dessensibilização sistemática; as terapias aversivas (Wolpe era um sujeito preso ao seu tempo, e infelizmente aquele não era o melhor tempo para a terapia), entre outros. Ele mostra que a terapia comportamental vai muito além do simples uso da relação terapêutica (vale ressaltar que o autor deixa claro que a terapia comportamental não é a única a dar esse passo).
O comentário de Wolpe tentava diferenciar a terapia comportamental de outras terapias humanistas da época (e.g., formas anteriores da moderna Gestalt-terapia). Estas terapias se utilizavam em grande parte apenas da relação terapêutica. Baseavam-se em postulados obtidos a partir de um viés hipotético-dedutivo, com algumas poucas pesquisas que baseavam mais em dados qualitativos do que quantitativos. Isso fez com que a os dados das suas pesquisas fossem de difícil generalização, o resultado satisfatório do processo terapêutico ficava confinado àquela relação, pois suas partes não podiam ser destrinchadas e acessadas (Não custa nada reforçar que esta é uma crítica dos anos 70, existe muita pesquisa boa sendo feita ultimamente por abordagens humanistas, principalmente sobre terapia de grupo e economia solidária). Entretanto, mesmo com estas dificuldades a ideia de que a relação terapêutica é um encontro único entre duas pessoas vem se mantendo latente dentro do imenso pacote de estereótipos que a nossa profissão tem diante do senso comum.
Mesmo a FAP, um estilo de intervenção que se baseia no manejo da relação terapêutica, não trata esta de uma maneira descuidada. Kohlenberg e Tsai (1991/2001) tratam detalhadamente da maneira como o terapeuta pode se utilizar dos comportamentos que ocorrem dentro da sessão e do impacto que a relação terapeuta-cliente tem no andamento do caso. Apesar dos autores utilizarem palavras como “amor”, “aceitação” – além de outras que podem fazer as pessoas mais acostumadas com textos mais experimentais revirarem os olhos – a sistematização dos estudiosos da FAP é rica nos detalhes. Ainda neste primeiro manual o leitor tem acesso a que tipo de eventos dentro da sessão podem evocar comportamentos clinicamente relevantes; o papel do comportamento verbal; como utilizar a relação à favor do processo psicoterapêutico; e até advertências sobre possíveis situações de conflito ético que devem ser evitadas. Ao fazer isso, a FAP, deixa claro que a relação terapêutica é fundamental, porém acaba com a ideia de que ela é um constructo metafisico.
Quando se esclarece as variáveis que manipulamos quando estamos trabalhando com a relação terapêutica, este conceito deixa de ser uma qualidade pessoal de alguns escolhidos que nasceram com um dom, e passa a ser um elemento inerente a qualquer processo psicoterapêutico, que pode ser ensinado e aperfeiçoado.
Esta desmistificação aumenta a responsabilidade do terapeuta. Ele tem que planejar como irá utilizar a relação em cada caso. Empatizar com o seu cliente é fundamental, mas nem sempre isso é algo fácil. Em alguns casos um paciente mais confrontador ou um manipulador pode dificultar a criação deste vínculo, ou ainda há a possibilidade deste paciente ter uma história de vida tão diferente da do terapeuta, que a diferenças de valores é um obstáculo colossal. O segundo manual da FAP (Kanter et al, 2010) discute extensivamente sobre como trabalhar com estas variáveis que dificultam o estabelecimento de uma boa relação terapêutica.
Como disse no início, a relação terapêutica não é a única ferramenta que temos. Hoje em dia temos fácil acesso não só às técnicas desenvolvidas, como a estilos de intervenção diferentes, falei da FAP, mas ainda pode-se citar como exemplo: a ACT; o behaviorismo psicológico; a terapia comportamental-dialética (DBT). Todas essas informações devem ser levadas em consideração ao se planejar uma intervenção (uma boa fonte de consulta para quem quiser se aprofundar no tema é o site da Divisão 12 da APA, http://www.psychologicaltreatments.org/).
Em alguns casos, questionários e inventários psicológicos podem lhe dar acesso a certas informações de maneira mais direta e rápida. Conhecer os processos respondentes irá lhe ajudar a implementar uma técnica de dessensibilização sistemática com muito mais eficácia e evitando riscos desnecessários aos seus clientes. Entender que protocolos de intervenção não são necessariamente coisas fechadas e que não respeitam a individualidade do cliente, e sim, fruto de anos de pesquisa. Conhecer os estilos de intervenção e saber qual se adequa melhor com cada tipo de caso (e.g., a indicação de DBT para transtorno de personalidade Boderline).
Por fim, o terapeuta ainda terá que ter muito jogo de cintura dentro do gabinete, em alguns momentos ele vai ter que improvisar, a terapia não costuma ser um processo retilíneo. Acredito que o maior papel da relação terapêutica é justamente dar o apoio ao cliente durante todo esse difícil processo. O terapeuta tem que escutar e entender aquela pessoa que está se abrindo na sua frente. Entretanto o terapeuta não pode ser apenas uma audiência não punitiva, ele tem que ser um profissional apto a identificar as variáveis nas quais ele pode intervir e a forma adequada de como fazer isso. Ao retirar a relação terapêutica do seu altar e colocá-la junto das outras variáveis importantes para o andamento do processo psicoterapêutico, passamos a nos preocupar menos com a índole do psicoterapeuta e mais com o quanto ele estudou para sentar naquela poltrona.
Referências
Kanter, J. W. et al (2010). The practice of functional analytic psychotherapy. (pp. 97-122). Seatle: Springer.
Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (2001). Psicoterapia Analítica Funcional. Santo André, SP: ESETEc (Obra publicada originalmente em 1991).
Wolpe, J. (1978). Prática da terapia comportamental. Editora brasiliense (Obra publicada originalmente em 1973).