Câmera digital, a fotografia do nosso exercício diário de lidar com frustrações
Qualquer um, hoje em dia, ficaria feliz em adquirir uma nova câmera digital. Daquelas que tiram milhões de fotos, uma atrás da outra e que nos permitem deletar todas aquelas indesejáveis.
Um avanço!
Se voltarmos um pouco no tempo, alguns anos pelo menos, vamos nos lembrar de como eram as fotos antigas e, com mais cuidado, vamos reconhecer os pequenos exercícios de frustração a que éramos submetidos desde o tirar as fotos até vê-las estampadas no papel.
A começar pelos filmes. Os de 12 poses eram proporcionalmente mais caros que os de 24, por sua vez mais caros que os de 36. Aqui começava o processo. Quanto maior o número de poses, maior seria o tempo necessário para que o filme pudesse ser revelado. Assim, vários eventos deveriam ocorrer até que pudéssemos apreciar nossas obras fotográficas. Este era o primeiro exercício. Porém, até vermos as fotos tínhamos que colocar novamente à prova nossa resistência à frustração, pois tínhamos que encontrar tempo para levar o filme a uma loja, que levava no mínimo uma semana para completar o trabalho. Com o tempo, isto foi se atenuando até as conhecidas revelações em UMA – infindável – HORA tornarem-se realidade.
Uma vez reveladas, novas surpresas. Olhos fechados, bocas cheias, caras tortas, cabelos desarrumados, frustrações estas com as quais tínhamos que nos conformar. Não havia como deletar. Não tínhamos este controle, nem este poder. Restava-nos ficar com as lembranças dos momentos ali registrados e não mais sujeitos a mudanças, mas não por isso sem um valor especial.
Surgem, então, algumas perguntas.
Como lidamos ou nos relacionamos com as fotos que tiramos hoje com nossas câmeras digitais?
Como “escolhemos” as que devem ser guardadas?
Que critérios usamos para fazer estas escolhas?
Para começar, o limite do número de fotos cresceu tremendamente se comparado aos “velhos” filmes. Cartões de memória nos permitem o outrora inimaginável: armazenar em espaços minúsculos, memórias quase infinitas. Pelo menos, aquelas que “escolhemos” guardar.
Porém, se avaliarmos o número de fotos que deletamos, talvez precisássemos de um reservatório bem maior.
Mas porque deletamos tanto?
Certamente porque a rigidez dos nossos critérios seja inversamente proporcional a nossa resistência à frustração. Somos infinitamente menos tolerantes com qualquer pequeno motivo que possa tornar nossas fotos “inadequadas”. Qualquer uma das surpresas mencionadas acima seria suficiente para que as mandássemos para o lixo.
O que perdemos com isso?
MUITO!
Perdemos a chance que rir de poses engraçadas, de situações inesperadas, de momentos únicos que uma vez deletados serão quase certamente esquecidos.
Aliás, assim como fazemos com as fotos, fazemos com as pessoas.
E porque tornou-se tão fácil deletar pessoas nos nossos relacionamentos?
Talvez porque saibamos que poderemos encontrar uma outra, no mundo dos deletados, onde os deletados por uns, encontram-se com os deletados por outros. Aqui vale ressaltar novamente o exercício de nos frustrarmos, que estamos cada vez menos dispostos a fazer.
Ou não seria porque sabemos que, para sermos capazes de revelar o que somos e deixar que as pessoas revelem o que são, precisamos de um repertório variado, que seguramente passa por afrouxar regras muito rígidas e experimentar frustrações naturais que os relacionamentos nos apresentam? Ao nos esquivarmos dessas experiências, estaríamos, sim, negando um déficit que é nosso, atribuindo ao outro a “culpa” de não preencher precisamente todos os requisitos por nós impostos.
Sendo assim é mais fácil deletar do que fazer com que as pessoas sejam reveladas ou revelem-se a si mesmas.
Nada contra a tecnologia porém, desde que ela seja usada para o nosso bem e não nos torne pessoas mais ansiosas e com baixíssima resistência à frustração.
César Augusto Curvello de Mendonça
CRP:06/78608
Especialista em Terapia por Contingências de Reforçamento – ITCR – Campinas