Algumas inferências: o comportamento do ouvinte pode ser considerado verbal?


No livro Verbal Behavior, de 1957, Skinner define o comportamento verbal como um comportamento operante como qualquer outro, mas com a característica singular da necessidade de ser mediado por um indivíduo, o qual chamamos de ouvinte (Catania, 1999; Barros, 2003; Borloti, 2004; Fonai & Sério, 2007; Hübner & Moreira, 2012; Hübner, 2013). Para Skinner (1957) o comportamento do ouvinte não é verbal em nenhum aspecto especial. Entretanto, Skinner aperfeiçoa sua definição de comportamento verbal quando diz que esse ouvinte precisa ter sido treinado pela comunidade verbal que o cerca a fim de consequenciar o comportamento do falante.
Esse aperfeiçoamento da definição skinneriana de comportamento verbal pode justificar a concepção que os analistas do comportamento têm de episódio verbal total. O ouvinte é um estímulo discriminativo que servirá de ocasião para que o falante faça uma verbalização; o ouvinte por sua vez, terá de compreender qual a verbalização previamente emitida pelo falante para que, finalmente, consequencie o comportamento verbal do falante (Vargas, 2007). Mais do que um episódio verbal em si, tal explanação conceitua uma contingência verbal.
A compreensão necessária que o ouvinte tem que ter para que possa, de alguma forma, consequenciar o comportamento do falante, evidencia o papel crucial da comunidade verbal que o cerca e, também, pode dar indicativos de que o seu comportamento, ao contrário do que foi firmado por Skinner, pode ser verbal em algum sentido especial.
Mesmo que o ouvinte esteja reagindo a um estímulo antecedente e também seja, ele próprio, um estímulo discriminativo, na contingência verbal, é um indivíduo que teve a aquisição dos mesmos operantes verbais que o falante, pela simples possibilidade de que a mesma comunidade verbal os contemple, embora Skinner (1957) aponte que o repertório comportamental de cada um possa ser adquirido de maneira independente.
Dahás, Goulart e Souza (2008), no entanto, apontam que, se durante a aquisição do comportamento do ouvinte, ele for
reforçado por meio de consequências mediadas por outros, (…) então o comportamento do ouvinte (…) se assemelharia ao comportamento do falante, em suas propriedades definidoras (pp. 285-286).
 Abreu e Hübner (2012) apontaram a relação do operante intraverbal nos fenômenos mnemônicos e outros autores como Parrott (1984, como citado por Dahás et al, 2008) se preocuparam com o comportamento de compreensão do ouvinte para com o que o falante verbaliza.
A compreensão também pode ter algum tipo de relação com o comportamento intraverbal. A definição desse comportamento contempla que ele é um operante que tem como resposta verbal a dimensão tanto escrita (motora) como vocal, dependendo do controle antecedente exercido sobre tal resposta. Tal controle de estímulo se dá por um estímulo verbal que pode ser tanto vocal como escrito (impresso).
A comunidade verbal considera que alguém compreendeu alguma coisa quando ele lê algo e explica a outrem o que estava escrito. Isso é por definição, uma “intraverbalização”. Um jovem duvida que outro tenha lido um determinado livro, por exemplo, o último da série do bruxo Harry Potter e o desafiado lhe explica o desfecho da história, provando que realmente leu o livro em questão.
E, embora Skinner (1957) defenda que os comportamentos de ouvinte e falante não têm relação dependente de condicionamento, o comportamento de ouvinte surge antes do comportamento de falante. Isso pode ser evidenciado com o fato de que uma criança responda de maneira adequada a um “não!” ou “vamos ‘papar’?” de seus familiares sem nem mesmo ter aprendido a falar.
O fato de que falante e ouvinte podem estar inseridos na mesma comunidade verbal de condicionamento e de que o ouvinte funciona como uma audiência positiva ou negativamente reforçadora (Skinner, 1957) para o falante nos dá, pelo menos, bases para dizer que o comportamento do ouvinte pode ser efetivamente verbal.
Além disso, o próprio histórico de condicionamento de um indivíduo para reagir como ouvinte numa determinada sociedade nos mostra a importância de seu comportamento como verbal. Para que um ouvinte responda apropriadamente à comunidade verbal, aos falantes, ele precisa ter adquirido repertórios verbais precedentes ao seu próprio repertório verbal de falante e que, por conseguinte, são os mesmos repertórios verbais que ele precisará ter para se comportar como tal.
Por exemplo, se um ouvinte é condicionado numa comunidade verbal em que a prática é a língua portuguesa, ele pode não responder apropriadamente a um falante americano, consequenciando-o contingentemente, visto que não tem o repertório prévio necessário para tal feito. Mesmo entre países com as “mesmas” práticas verbais, esse fenômeno pode ser visto: em Portugal e outros países (como alguns da África, Moçambique, por exemplo), o tato “bicha” refere-se ao que chamamos aqui no Brasil de fila, como aquela que pegamos em bancos. E em nosso país, tal termo é considerado politicamente incorreto por ser um tato metafórico de tratamento inadequado aos homossexuais.
Skinner não estava errado quando disse que o comportamento do ouvinte não é verbal em nenhum aspecto especial, isso só pode ser fruto de pesquisas empíricas não realizadas até a época em que o Verbal Behaviorfoi publicado. As pesquisas de Abreu e Hübner (2012) e Dahás et al (2008) são exemplos de materiais que embasam a defesa de que Skinner não negligenciou o comportamento do ouvinte como sendo efetivamente verbal. Além disso, no último livro de sua carreira, Skinner (1990)¹parece ter dado uma atenção especial ao comportamento do ouvinte não dada no livro de 1957.
Talvez tal texto incite mais perguntas do que ofereça respostas. No entanto, temos bons exemplos de que o Verbal Behavior é um livro aberto a pesquisas empíricas no estudo de muitos âmbitos do comportamento verbal. Foi dito que a aquisição de operantes verbais não são dependentes entre si (Skinner, 1957), entretanto, uma pesquisa feita por Finn, Miguel e Ahearn (2012), com crianças autistas, aponta que a aquisição de um tipo de operante verbal pode desembocar na aquisição de outro tipo de operante verbal. De modo que, analogamente, o comportamento de ouvinte e falante podem não ser adquiridos com independência um do outro.
Precisamos de mais pesquisas, mas só pelos argumentos apresentados e as pesquisas mostradas em tal texto pode nos fazer pensar se o comportamento do ouvinte não é verbal em um sentido especial, talvez não visto por Skinner na época da publicação do Verbal Behavior e sendo mostrado agora por outros analistas do comportamento pós-skinnerianos. Este é um tema delicado que requer muito estudo para ser respondido de modo experimental e fidedigno, entretanto, inferências de que o comportamento do ouvinte necessita ser verbal para que ele se torne falante e para que ele consiga exercer seu papel de ouvinte na comunidade verbal são, ao menos, válidas.


¹Leia, particularmente, o capítulo 4 do livro, intitulado “O Ouvinte”.

Referências
Abreu, P. R.; Hübner, M. M. C. (2012) O comportamento verbal para B. F. Skinner e para S. C. Hayes: uma síntese com base na mediação social arbitrária do reforçamento. Acta Comportamentalia, Guadalajara, v. 20, n. 3, pp. 367-381.
Barros, R. S. (2003) Uma introdução ao Comportamento Verbal. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Belo Horizonte, v. 1, pp. 73-82.
Borloti, E. (2004) As Relações Verbais Elementares e o Processo Autoclítico. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Belo Horizonte, v. XI, n. 2, pp. 221-236.
Catania, A. C. (1999) Aprendizagem: Comportamento, Linguagem e Cognição. 4 ed. Porto Alegre: Artmed.
Dahás, L. J. S.; Goulart, P. R. K.; Souza, C. B. A. (2008) Pode o Comportamento do Ouvinte ser considerado Verbal? Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Belo Horizonte, v. X, n. 2, pp. 281-291.
Finn, H. E.; Miguel, C. F.; Ahearn, W. H. (2012) The Emergence of Untrained Mands and Tacts in Children with Autism. Journal of Applied Behavior Analysis. v. 45, n. 2, pp. 265-280.
Fonai, A. C. V.; Sério, T. M. A. P. (2007) O Conceito de Audiência e os Múltiplos Controles do Comportamento Verbal. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva. Belo Horizonte, v. IX, n. 2, pp. 349-360.
Hübner, M. M. C.; Moreira, M. B. (2012) Temas Clássicos da Psicologia sob a ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Hübner, M. M. C. (2013) Comportamento Verbal de Ordem Superior: Análise Teórico-Empírica de Possíveis Efeitos de Autoclíticos sobre o Comportamento Não Verbal. Tese de Livre-Docência apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP.
Skinner, B. F. (1957) Verbal Behavior. Cambridge: Copley Publishing Group.
Skinner, B. F. (1990) Questões Recentes na Análise Comportamental. 5 ed. Campinas: Papirus Editora.
Vargas, E. A. (2007) O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução.Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, Belo Horizonte, v. IX, n. 2, pp. 153-174.

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Escrito por Renan Miguel Albanezi

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Cesumar (UniCesumar), especialista em Análise do Comportamento e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (NECPAR) e em Terapia Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP). Tem como principais áreas de estudo o Behaviorismo Radical e a Análise do Comportamento com interesse em comportamento verbal, agências controladoras do comportamento, psicoterapia comportamental e psicoterapia analítica funcional.

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