“O Schwarzenegger tá botando as manguinhas de fora”: Caso Clínico

Meu maior objetivo, nesta coluna, será discutir recursos terapêuticos, com ênfase na análise de filmes ou outras obras artísticas de um ponto de vista comportamental e com uma linguagem simples. Em 2007, com esse mesmo intuito – e por nos preocuparmos bastante com a utilização dessas análises para fins didáticos – organizamos o livro “Skinner vai ao cinema”[1].

Com a ampliação de minha prática clínica, pude perceber o quanto o uso de metáforas ou o relato de eventos privados (sonhos e fantasias, por exemplo) tornam, muitas vezes, as sessões terapêuticas mais interessantes – para o cliente e para a terapeuta. Esse uso envolve “jogo de cintura” por parte do terapeuta. A fim de entender alguns relatos (de eventos privados ou públicos), fui levada, por exemplo, a assistir a filmes e a ler livros muito comentados pelos clientes. Além disso, tomei a iniciativa de enviar músicas ou poesias por e-mail, para que o cliente refletisse sobre elas entre as sessões.

Neste primeiro artigo, optei por apresentar brevemente como o comportamento de uma figura do cinema, e não propriamente um filme, me ajudou a realizar análises clínicas importantes com um cliente de 38 anos.
Ricardo[2] procurou terapia com a queixa de problemas no casamento. Foi criado no interior da Região Norte, em uma cultura machista, sendo o mais velho dos três filhos homens de um “casal tradicional”[3]: pai “livre, autoritário e agressivo”, mãe educada e submissa. Serviu, desde a infância, como exemplo para irmãos e primos, por ser estudioso, comprometido e batalhador. Saiu de casa aos 21 anos para estudar e trabalhar, tendo se responsabilizado por arcar com parte dos custos da formação dos dois irmãos e de uma prima, que havia morado com eles. Foi o primeiro da família a terminar uma graduação e, ainda hoje, é o único a ter Mestrado. Casou-se aos 32 anos, pois “era a época de casar e eu já namorava há quase 1 ano”. Já no primeiro ano de casados, tiveram o primeiro filho, que recebeu o nome do avô paterno, “como manda o figurino”. O sexo se tornou esporádico e “sem paixão”, apesar de todas as suas tentativas para melhorar a relação de forma geral. Após um aborto espontâneo, a esposa afirmou que estavam sendo punidos por sexo protegido, ou seja, sem intuito de engravidar. Parou de tomar pílula e disse que não usaria camisinha. Mostrou-se “bastante mal humorada e arredia” todo o tempo, principalmente após o nascimento do segundo filho (aos 3 anos de casados).

Ricardo acreditava que, nessas condições, poderia pagar por sexo sem ser criticado pelos familiares (a quem tudo contava). No entanto, com “peso na consciência”, evitou contato sexual com outras mulheres e começou a pagar por todos os desejos da esposa (roupas, viagens, ajuda financeira ao irmão dela, deixar a sogra morar em casa por 6 meses), e, na única relação sexual que tiveram em 3 meses, ela engravidou. O terceiro filho já estava com 2 anos quando Ricardo me procurou. Desde que descobriu a gestação, a esposa recusava contato físico com ele, dormia no quarto dos filhos, exigia trocas constantes de moradia (cada vez, para uma casa maior, com mais empregados e mobília), tratava mal o primeiro filho (que tinha o nome do pai de Ricardo e era o que mais parecia fisicamente com ele), reclamava constantemente da vida, não permitia que ele ajudasse a família no Norte, gastava muito sem consultá-lo, dentre outros comportamentos tidos como abusivos pelo cliente.

Pela sua área de formação, seu repertório verbal sofisticado e o gosto que demonstrava por informações em Psicologia, era de se supor que Ricardo tivesse boa auto-observação. Entretanto, tinha muitas dificuldades em relatar até mesmo eventos corriqueiros. Na grande maioria das vezes em que eu tentava coletar dados acerca de eventos privados, a resposta era “complicado!”. “Ricardo, o que você sente pela sua esposa?”, “Ah, doutora, é complicado!”. “Ricardo, você ainda ama sua esposa?”, “Ah, isso é complicado!”. “Ricardo, o que você sentia pela sua esposa ao se casar com ela?”, “Ah, complicado, né?”.

Com 2 meses de terapia, o cliente chegou ao consultório dizendo que estava muito angustiado, com medo de estar enlouquecendo. E, então, relatou-me:

– “Doutora, eu sonhei que era o Schwarzenegger” (tive que me esforçar muito para manter a “cara de paisagem” típica de psicólogos em algumas situações, tendo em vista que o cliente nem de longe apresentava características físicas deste ator. Consegui não rir muito e o estimulei a continuar a falar). – “Eu acordava todo machucado, ensanguentado, com dores pelo corpo. Quando recobrava minha consciência, conseguia me lembrar que uma mulher, logo uma mulher, tinha feito isso comigo” (nesse momento, tive que me segurar ainda mais, para não soltar um grito: “yeeesss!!! Ele vai estabelecer relações entre os fatores ambientais e esse sonho”). – “Eu me levantava e andava até um lugar escuro, para salvar um cara que essa mulher tinha aprisionado. Aí é que entra o problema… Você não vai acreditar! O cara era eu!” (aí minha cara de paisagem já não existia mais, e eu só pensava: “acho que vai dar pra entrar em contato com eventos privados. Viva!”).

Fiquei esperando e nada. Ricardo não tinha mais o que dizer. Não conseguia relacionar o sonho às contingências ambientais às quais estava exposto. Apenas acreditava que estava enlouquecendo, porque não poderia ser duas pessoas ao mesmo tempo.

Discutimos esse sonho por duas ou três sessões. Por meio de perguntas (abertas tanto quanto possível), analisamos questões como: (i) o que Schwarzenegger representava em nossa cultura (tipo de homem guerreiro e vitorioso, coragem, força, honestidade, perseverança e responsabilidade, dentre outros); (ii) o que Ricardo tinha em comum com isso, no presente e no passado; (iii) em que contextos, atualmente, ele exercia cada um dos papéis representados no sonho – forte ou fraco – e que consequências produzia no ambiente[4], em cada situação (que variáveis controlavam esses padrões comportamentais); (iv) tendo em vista as contingências atuais, que classe de respostas ele gostaria de emitir na presença da esposa, da chefe, dos pais, dos filhos; (v) quanto esforço (custo da resposta) ele poderia dispensar a essa mudança comportamental; qual era a probabilidade de a esposa e os filhos, por exemplo, passarem a respeitá-lo mais (probabilidade do reforço); quão importante era permanecer com aquela família, casado versus ter “liberdade”, ter acesso a sexo sem cobranças (magnitude e/ou valor subjetivo do reforço); quanto tempo demoraria para atingir seus objetivos (atraso do reforço); e, por fim, (vi) que contingências alternativas estavam disponíveis e que comportamentos ele precisaria emitir nessas alternativas.

O cliente apontou que sempre foi forte, mas que, na presença da esposa, foi gradativamente perdendo essa força. Havia se cansado de “dar murro em ponta de faca” e, então, resignava-se para evitar brigas (padrão de fuga-esquiva bem estabelecido desde a infância). Segundo ele, precisava desenvolver assertividade (dizer não aos caprichos da esposa, fazer escolhas em relação à educação dos filhos, voltar a poupar dinheiro, exigir “ter paz em casa”) e ampliar sua autoconfiança (“tenho que acreditar que posso voltar a ser aquele cara que saiu de casa aos 21 anos, ainda menino, e venceu na vida”).

Ricardo ainda está em tratamento, mas saiu de casa, passou a emitir comportamentos de maior autocuidado e assertividade (com a terapeuta e com a chefe, por exemplo). Agora, vários meses após a sessão mencionada, ainda é possível observar quão reforçadoras foram, para o cliente, a atenção e audiência não punitiva da terapeuta, e as análises realizadas a partir de seu sonho. Por vezes, ele diz: “O Schwarzenegger tá botando as manguinhas de fora”, quando emite algum comportamento mais ousado – quando varia seu repertório.

Ter observado Ricardo entrar em contato com seus sentimentos pela primeira vez em nossos encontros, ver seus olhos cheios de lágrimas quando começamos a estabelecer relações entre sua “vida real” e o sonho, reforçaria meu comportamento de assistir a vários filmes de Schwarzenegger. Mas isso não foi necessário. Ali, eu precisei apenas saber o tipo de comportamentos emitidos pelas suas personagens, o que costumamos ouvir da comunidade verbal acerca desses comportamentos, o que costumamos ouvir da comunidade verbal (machista) acerca de comportamentos de submissão de um homem – ou seja, o que significaria, para Ricardo e sua família de origem, submeter-se aos “desejos” ou “devaneios de uma maníaco-depressiva”.

Certamente, com maior exposição de informações, ficaria mais fácil para o leitor realizar algumas análises funcionais moleculares e molares. Pela breve descrição apresentada nesse artigo, o leitor pode supor um forte controle por regras, baixo repertório de habilidades sociais, autoconhecimento insuficiente. O objetivo desse texto, no entanto, foi demonstrar brevemente o uso da arte na clínica. Além disso, vale acrescentar que esse sonho foi relatado em muitas de minhas aulas para ilustrar temas como:

– eventos privados;

– uso de metáforas na clínica;

– multideterminação do comportamento: diversas variáveis influenciaram o sonho. Dentre elas, uma propaganda na TV sobre um filme de Schwarzenegger; o que ele já conhecia sobre o ator; diferenças entre seu passado e seu presente (que não haviam sido anteriormente discriminadas por ele); o momento que estava vivendo de conflito com uma mulher, etc.; e

– habilidades terapêuticas tais como empatia, “jogo de cintura”, utilização de recursos que “alcancem” o cliente e ajudem-no a desenvolver o repertório de analisar funcionalmente seu comportamento.

É claro que nem todos os sonhos “representam” algo relevante, mas vários outros podem trazer informações sobre as contingências ambientais. Como analistas do comportamento, precisaremos sempre identificar os determinantes ambientais dos relatos de nossos clientes (e.g., estados de privação e estimulação aversiva), sejam eles referentes a acontecimentos, sonhos, fantasias, sentimentos na presença de uma música ou filme, etc. Recomendo a leitura de Delitti e Meyer (1995) e Delitti (2000), para maior discussão acerca da utilização de eventos privados na clínica comportamental. Espero voltar a abordar o tema em outros artigos.

Referências Bibliográficas:

Delitti, M., & Meyer, S. B. (1995). O uso de encobertos na prática da terapia comportamental. Em B. Rangé (Org.), Psicoterapia comportamental e cognitiva de transtornos psiquiátricos (pp. 269-274). Campinas: Editorial Psy.

Delitti, M. (2000). Relato de sonhos: Como utilizá-los na prática da terapia comportamental. Em R. C. Wielenska (Org.), Sobre comportamento e cognição: Vol. 6. Questionando e ampliando a teoria e as intervenções clínicas em outros contextos (pp. 204-210). Santo André: ESETec.

[1] O livro, organizado em conjunto com Michela R. Ribeiro, e lançado pela ESETec, contou com a participação de vários professores da área.

[2] Nome fictício. Vale ressaltar que, sempre que um caso clínico é citado, trocamos e/ou omitimos dados que possam identificar o cliente. Ricardo autorizou a apresentação de seu sonho em artigos e demais produções.

[3] Expressões entre aspas referem-se a falas do cliente.

[4] Um exemplo do padrão “ser fraco”: na presença da esposa reclamando sobre ele (antecedentes), balançar positivamente a cabeça e manter-se calado (respostas operantes) são negativamente reforçadas (ou seja, têm como consequência a eliminação/fuga dos estímulos aversivos: “os gritos da minha mulher vão ficando mais baixos, até que ela para de falar e entra no quarto”). Ao presenciar a situação, “meu irmão do meio ri e diz que sou um frouxo”, caracterizando um processo de punição positiva para esses mesmos operantes.

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Escrito por Portal Comporte-se

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