[Entrevista Exclusiva: José Antônio Damásio Abib] – A Filosofia e o Pensamento Skinneriano
Entrevista concedida ao Comporte-se: Psicologia Científica pelo Prof. José Antônio Damásio Abib, durante o V Encontro Maringaense de Análise do Comportamento (V EMAC). O evento foi promovido pela UEM – Universidade Estadual de Maringá, entre os dias 04 e 05 de maio de 2012.
Graduação em Psicologia pela Universidade de Brasília. Mestrado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado em Epistemologia da Psicologia pela Universidade de Aarhus, Dinamarca. Tese de doutorado premiada em primeiro lugar na Área de Filosofia pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos, SP. Professor orientador do Programa de Mestrado e Doutorado em Filosofia na Área de Concentração em Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise da Universidade Federal de São Carlos, SP. Pesquisador visitante do CNPq junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, PR (2006-2007). Pesquisador Visitante da Fundação Araucária junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia de Universidade Estadual de Maringá, PR (30/06/2008-30/06/2010). Diversas publicações na área de psicologia em Revistas especializadas, livros e capítulos de livros. Livros publicados recentemente: O sujeito no labirinto: um ensaio psicológico (2007); Comportamento e sensibilidade: vida, prazer e ética (2007). Linhas de Pesquisa: (1) Epistemologia e História da Psicologia. (2) Pós-modernismo e Psicologia. (3) Ética e Psicologia.
Neto – Gostaria de começar pedindo que falasse um pouco sobre como surgiu seu interesse pelo estudo da Filosofia e Epistemologia.
Abib – Meu interesse pela filosofia brotou de um encontro feliz com uma cidade e com uma escola. A cidade: Salvador. A escola: Os Seminários de Música da Universidade da Bahia. Salvador e os Seminários de Música foram meu ambiente cultural por vários anos. Aos 16 anos de idade comecei a estudar música nos Seminários onde tive oportunidade de fazer os cursos de Estética Musical com Yulo Brandão, História da Música com Hans-Joachim Koellreutter e Teoria Musical com Ernst Widmer. Esses saudosos mestres despertaram meu interesse pela Estética, pela História e pela Teoria. Além disso, na época, Salvador era uma cidade fervilhante de atividades culturais, muito teatro, muita dança clássica, muitos concertos com a orquestra sinfônica da Bahia, cinemas com filmes de boa qualidade, música sacra executada em órgãos das igrejas barrocas da cidade. E a maioria dessas atividades era gratuita. O ambiente dos Seminários de Música, a vida cultural da cidade, o desprendimento e a generosidade dos professores, o convívio com colegas estudiosos e entusiasmados com a arte, a história, a teoria e a cultura, criavam uma atmosfera poética e filosófica absolutamente irresistível. Já o meu interesse pela epistemologia aflorou bem mais tarde. Em um belo dia me vi diante de uma tese contra-intuitiva de Skinner. Eu estudava a sua teoria dos eventos privados e não compreendia como ele podia dizer que os sentimentos não são causas do comportamento. Isso me levou a indagar o conceito de causalidade e a procurar em textos de filosofia da ciência respostas que pudessem ajudar-me a esclarecer essa tese que, por muito tempo, pareceu-me enigmática. Li, então, o primeiro capítulo do livro de Ernest Nagel, The Structure of Science, no qual ele discute quatro modelos de explicação científica. Aprendi com Nagel que há uma pluralidade de modelos de explicação na ciência e que a causalidade é apenas um desses modelos. A leitura completa do livro de Nagel foi decisiva para confirmar o que ele dizia no primeiro capítulo. Até hoje, considero que foi com esse livro que comecei a estudar epistemologia. Meus interesses epistemológicos encontraram solo fértil nos Seminários Epistemológicos da Psicologia na Universidade Federal de São Carlos que reunia filósofos e psicólogos interessados em compreender as questões epistemológicas que atravessam as tradições de pensamento psicológico. Naturalmente, meu foco foi o comportamentalismo radical. Depois disso surgiram alguns resultados. Primeiro, o texto: Skinner, Materialista Metafísico? “Never mind, no matter”, que foi publicado no livro Filosofia e Comportamento, organizado por Bento Prado Júnior e editado pela Brasiliense em 1982. Em 1985 defendi minha tese de doutorado intitulada Skinner, Materialismo e Positivismo, premiada em primeiro lugar na área de filosofia pela Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. Fiz, enfim, um pós-doutorado em Epistemologia da Psicologia na Universidade de Aarhus – Dinamarca, no período de 1989 a 1991. Daí em diante, orientei meus interesses para a linha de pesquisa em Epistemologia e Historia da Psicologia.
N – Qual a relevância da epistemologia ou produção epistemológica para a formação Analista do Comportamento e para sua prática profissional?
A – Desde o advento da psicologia moderna no final do século XIX, representada emblematicamente nas obras de Wilhelm Wundt e William James, os psicólogos acreditam que psicologia é ciência. Crença razoável. Porque afinal talvez a principal promessa do projeto da psicologia moderna tenha sido a de constituí-la como ciência. Trata-se de promessa revolucionária porque, até então, a psicologia ou era um ramo da metafísica ou era ela própria entendida como psicologia metafísica. O que se pretendia era desligá-la da metafísica e vinculá-la à ciência. Na verdade, desde Kant, desde a Crítica da Razão Pura, a metafísica já vinha sofrendo severos reveses; ao passo em que a ciência florescia como um modo, talvez como o único modo, de conhecimento legítimo. Mas: e se o projeto da psicologia moderna fracassasse? Nessa hipótese ela não poderia ser irmanada à ciência. E qual seria, então, o seu destino? Estaria fadada a ser mero senso comum ou cego empirismo? Seria, talvez, alguma forma de conhecimento legítimo, embora não científico? O que está em foco nesse jogo de indagações é a questão da legitimidade do conhecimento. Desde a Revolução Científica Moderna, acreditamos que conhecimento legítimo é conhecimento científico. Se ele não for científico, não é legítimo. Não se pode nem mesmo chamá-lo de conhecimento, pois, afinal, o que significaria a expressão ‘conhecimento ilegítimo’? Ou existe conhecimento científico; ou não existe conhecimento. Durante muito tempo fiquei às voltas com esse jogo de linguagem. Hoje acredito que a questão principal consiste em sondar a legitimidade do conhecimento. Pois não podemos reduzir a legitimidade do conhecimento ao conhecimento científico. Essa guinada coloca-nos diante da responsabilidade de esclarecer em quais bases nos apoiamos para julgar se este ou aquele conhecimento psicológico é legítimo ou não. Essa investigação é de natureza epistemológica. E creio que é seminal para a formação e a prática de analistas do comportamento.
N – Em 1963, Skinner afirmou que “o behaviorismo, como nós o conhecemos, finalmente morrerá – não porque é um fracasso, mas porque é um sucesso. Como uma filosofia crítica da ciência, ele necessariamente mudará à medida que uma ciência do comportamento for mudando e as questões atuais que definem o behaviorismo forem sendo totalmente resolvidas.” (Skinner, 1963, p.267). Na opinião do senhor, dessa época até os dias de hoje, quais foram algumas das principais mudanças sofridas pela filosofia do Behaviorismo Radical?
A – Que astúcia admirável há nesse pensamento de Skinner! O quê afinal ele está dizendo com essa sentença tão paradoxal? Que, viva ou morta, a filosofia do comportamentalismo radical viverá. Na forma da ciência em processo de realização ou efetivamente realizada, o comportamentalismo radical viverá. Faz sentido. As filosofias não morrem. Mesmo quando pensamos que uma filosofia está moribunda, ela permanece à espreita. Um bom exemplo é a filosofia do positivismo. Desde ao menos o livro A Lógica da Investigação Científica de Karl Popper, publicado em 1934, pensamos que o positivismo recebeu o seu golpe de misericórdia. Entretanto, ele continua mais vivo do que nunca, como pode ser verificado na praga do produtivismo acadêmico, afeito à pesquisa ligeira, carente de Inteligência conceitual, emburrecedor e inconsequente, que assola a política de pesquisa no Brasil (e eu que pensava que não havia mais nenhuma necessidade de chutar cavalo morto!). Mesmo quando a filosofia é má filosofia, como é o caso do positivismo, ela tem fôlego de gato. Com efeito, como demonstrou convincentemente Leszek Kolakowski, em La Philosophie Positiviste, o positivismo surgiu na Idade Média e se propagou no pensamento ocidental até o positivismo lógico. Daí em diante, pensei que teria sido destinado ao arquivo morto da história depois da crítica da filosofia pós-empirista da ciência feita por Popper, Kuhn, Feyerabend, Lakatos e Morin. Doce ilusão: por mãos incautas o empirismo voltou a todo vapor. O comentário astucioso de Skinner nos leva a pensar qual seria a filosofia do comportamentalismo radical que, viva ou morta, viverá. Porque a filosofia do comportamentalismo radical pode ser lida como pensamento moderno e concepção mecanicista do mundo e epistemologia positivista. Como também pode ser lida como pensamento pós-moderno e concepção pragmatista do mundo e epistemologia pragmatista (uma leitura mais recente que se relaciona muito de perto com as últimas obras de Skinner).
N – De seu ponto de vista, o que é necessário abandonar e o que é necessário recuperar em Skinner?
A – A herança do pensamento moderno, a crença no progresso da humanidade com base na ciência e a reforma social capitaneada por tecnocratas, o silêncio quanto à ciência como agência de controle, a concepção mecanicista do mundo, a epistemologia positivista, as reticências com relação à democracia; todas essas idéias, que podem ser lidas na filosofia do comportamentalismo radical, penso que deveriam ser abandonadas. Há que se preservar a brilhante teoria do comportamento, baseada no modelo de seleção por consequências, bem como, decorrente dessa teoria, a tese de que a ciência do comportamento é uma ciência transdisciplinar, que, para se desenvolver, depende, não só da análise do comportamento, mas também da etologia, da antropologia e da fisiologia (eu acrescentaria ainda a sociologia e a história). Desse modo, o domínio da ciência do comportamento requer a instrução da epistemologia da complexidade, o que significa a aquisição de uma ampla formação acadêmica, intelectual e cultural. Na esfera do que seria necessário recuperar eu incluiria a leitura do pensamento pós-moderno, a visão pragmatista do mundo e a epistemologia do pragmatismo.
N – Um movimento cada vez mais forte no Brasil é a Terceira Onda de Terapia Comportamental, caracterizada principalmente pela Terapia de Aceitação e Compromisso e pela Psicoterapia Analítico-Funcional. Alguns afirmam que estas abordagens representam avanços em relação ao Behaviorismo Radical de Skinner. Outros defendem que são apenas variações da prática do Terapeuta Comportamental. Qual a sua visão a respeito?
N – Deliberações dessa natureza dependem do estudo das epistemologias que atravessam essas terapias para que possamos estabelecer analogias com as epistemologias do comportamentalismo radical, tais como, as epistemologias do positivismo, do fisicalismo, do pragmatismo, do emergencialismo, e da complexidade. Além disso, as visões de mundo e de homem também precisam ser analisadas e comparadas. E mais, é necessário verificar se essas terapias preservam a revolução encetada pelo comportamentalismo radical, a saber, a radicalização do conceito de comportamento. Se essa radicalização não for preservada, então não se trata nem de avanços nem de variações, mas, isto sim, de outro gênero de terapia. Os critérios decisivos para tomar decisões dessa ordem dependem de investigações ontológicas, antropológicas e epistemológicas.
N – O senhor poderia indicar alguma bibliografia básica para aqueles que têm interesse iniciar seus estudos sobre as bases filosóficas do Behaviorismo Radical?
A – Pois não, com prazer. Sugiro o estudo das seguintes obras.
1. Nagel, E. (1961). The structure of science. New York: Harcourt, Brace & World.
2. Kolakowski, L. (1976). La philosophie positiviste (C. Brendel, Trad.). Paris: Denoël Gonthier.
3. Ayer, A. J. (1965). El positivismo lógico (L. Aldama, U. Frisch, C. N. Molina, F. M. Torner e R. Harrel, Trads.). México: Fondo de Cultura Económica.
4. Popper, K. (1971). La lógica de la investigacion cientifica (V. S. de Zavala, Trad.). Madrid: Tecnos.
5. Kuhn, T. (1975). A estrutura das revoluções científicas (B. V. Boeira e N. Boeira, Trads.). São Paulo: Perspectiva.
6. Feyerabend, P. (2007). Contra o método (C. A. Mortari, Trad.). São Paulo: UNESP.
7. Lakatos, I. e Musgrave, A. (1975). La critica y el desarrollo del conocimiento (F. Hernán, Trad.). Barcelona: Ediciones Grijalbo.
8. Smith, L. D. (1986). Behaviorism and logical positivism: A reassessment of the alliance. Stanford: Stanford University Press.
9. Zuriff, G. E. (1985). Behaviorism: A conceptual reconstruction. New York: Columbia University Press.
10. James, W. (1988). Pragmatism. Cambridge: Hackett Publishing.
11. Dewey, J. (1981). The reflex arc concept in psychology. Em J. J. McDermott (Org.), The philosophy of John Dewey (pp. 136-148). Chicago: The University of Chicago Press.
12. Mead, G. H. (1962). Mind, self and society: From the standpoint of a social behaviorist. Chicago: The University of Chicago Press.
13. Pepper, S. (1970). World hypotheses: a study of evidence. Berkeley: University of California.
14. Lyotard, J-F. (1998). A condição pós-moderna (R. C. Barbosa, Trad.). Rio de Janeiro: José Olympio.
15. Lyotard, J-F. (1987). O pós-moderno explicado às crianças (T. Coelho, Trad.). Lisboa: Publicações Dom Quixote.
16. Santos, B. de S. (2000). Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez
17. Bauman, Z. (1998). Modernidade e holocausto (M. Penchel, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
18. Bauman, Z. (2011). Bauman sobre Bauman (C. A. Medeiros, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
19. Morin, E. (2011). Rumo ao abismo? Ensaios sobre o destino da humanidade (E. de A. Carvalho, Trad.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
20. Morin, E. (2003). Ciência com consciência (M. D. Alexandre e M. A. S. Dória, Trads.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
21. Morin, E. (2000). Sete saberes necessários à educação do futuro (C. E. F. da Silva e G. Sawaya, Trads.). São Paulo: Cortez Editora.
Sugiro acompanhar as leituras filosóficas com o apoio dos seguintes dicionários.
1. Ferrater Mora, J. (1984). Diccionario de filosofia (4 volumes). Madrid: Alianza Editorial.
2. Abbagnano, N. (2000). Dicionário de filosofia (A. Bosi & I. C. Benedetti, Trads). São Paulo: Martins Fontes.