Entrevista com Carmem Beatriz Neufeld
Entrevista concedida pela Prof. Dra. Carmem Beatriz Neufeld, presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas, durante o I Workshop de Terapia Cognitivo-Comportamental do Triângulo Mineiro. O evento foi promovido pela Clínica Integrare de Psicologia Cognitivo-Comportamental, na cidade de Uberlândia – MG, em 19 de novembro de 2011.
Carmem Beatriz Neufeld possui Bacharelado e Licenciatura em Psicologia pela Universidade da Região da Campanha, Mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é Professor Doutor do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – FFCLRP da Universidade de São Paulo – USP, onde atua na área da Terapia Cognitivo-Comportamental e na área de Psicopatologia da infância e da adolescência. Integra o Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da mesma Universidade e Coordena o Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental – LaPICC. Participa do Banco de Avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (BASis / SINAES) como Avaliadora Institucional e de Curso de Graduação. É presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC) – Gestão 2011/2013. Integrou o Comitê Gestor do Núcleo Regional da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) Paraná (2007/2008). Atuou como Docente e Supervisora Clínica em Cursos de Especialização e Aperfeiçoamento na área de Terapia Cognitiva. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Formação Profissional em Psicologia e em Prevenção e Tratamento Psicológico, atuando principalmente nos seguintes temas: Terapia Cognitiva, Psicologia Cognitiva, Psicologia Experimental, Processos Cognitivos, Memória e Emoção e Psicopatologia.
Boa tarde Dr. Carmem
Boa tarde!
Gostaria de começar pedindo que nos contasse um pouco de sua história. Como entrou para a Psicologia e o que te atraiu na Terapia Cognitiva?
Eu não consigo me imaginar em algum momento em que não quisesse fazer Psicologia. Sempre me atraiu muito a possibilidade de entender porque as pessoas fazem as coisas que fazem, porque se comportam de uma determinada forma. Foi isso que me atraiu para a Psicologia.
Durante minha graduação não tive contato com a Terapia Cognitivo-Comportamental ou Terapia Cognitiva. Pelo contrário, eu só tive contato com a Psicanálise e o Psicodrama. Fiz estágio em Psicanálise Kleiniana, e uma das coisas que deixavam minha supervisora ressentida comigo, era que eu era excessivamente diretiva. Ela não me criticava. Não brigava comigo por isso. Ela dizia assim: “Tu és boa, tu estudas, mas isso de dar tarefa para os pacientes não está com nada. Como assim tu mandas ele ir para casa pensar sobre isso ou sobre aquilo? Ele tem que saber sobre o que vai pensar”. Nesse ponto eu já destoava de minhas colegas.
Quando cheguei ao mestrado da PUC – RS fui direcionada para o grupo de pesquisa sobre falsas memórias da Dra. Lilian Stein, devido ao viés da Psicologia Jurídica que eu já trazia desde a graduação. Foi a partir desse momento que comecei a ter contato com textos que falavam da Terapia Cognitiva, e ai comecei a estuda-la.
No início estudei sozinha! Logo no primeiro livro de Beck que li – era um livro sobre Depressão –, eu fiquei impressionada. Fiquei muito empolgada porque fez muito sentido para mim. Eu pensei: “Nossa, isso faz muito sentido! Eu preciso estudar mais isso para trabalhar nessa abordagem”.
Foi assim que conheci a TCC, quase que por acaso. Claro que depois disso eu fui fazer muitos cursos, participar de grupos de estudo fazer supervisão e, posteriormente, terapia em TCC.
Que características deve possuir a prática de um terapeuta para que ele possa se denominar Cognitivo-Comportamental?
Pensando em um ponto de vista da Terapia Cognitivo-Comportamental Beckeniana eu diria que é a conceitualização cognitiva. Ele deve fazer a conceitualização e ter clara a ideia de crenças centrais, crenças intermediárias, pensamentos automáticos, estratégias compensatórias, como tudo isso se retroalimenta e como isso pode estar ativado ou desativado. São diferenciais que não são difíceis de se identificar, dentro do enfoque.
Acho que a conceitualização é o grande diferencial. Inclusive acho que esse é o diferencial pra você, por exemplo, identificar se alguém é um Analista do Comportamento. Ele faz a Análise Funcional? Se não faz Análise Funcional, muito provavelmente não é Analista do Comportamento. E assim é também com a conceitualização de Young, por exemplo. Você precisa fazer a leitura dos esquemas, conceitualizando-os e investigando como eles se instalaram na vida do paciente e, a partir disso, você fará intervenções nestes esquemas com base nesta conceitualização e pode se denominar um Terapeuta do Esquema.
Então acho que o grande diferencial é a conceitualização que esse terapeuta faz, além das técnicas, porque na verdade é a conceitualização que vai te dizer que técnica está sendo usada e qual a finalidade de usá-la, dentro da realidade psicoterápica.
E qual é a diferença entre a Terapia Cognitivo-Comportamental, a Terapia Comportamental e a Terapia Cognitiva?
Vou começar falando da Terapia Cognitiva. Terapia Cognitiva foi o nome que Beck deu à sua abordagem teórica lá nos livros de 1960, e que durante muito tempo, foi mantido. Com a chegada das idéias de Beck na Europa e nos países de língua latina, essa teoria recebeu solo fértil para germinar junto aos comportamentalistas de lá – da Espanha e de Portugal. Eles se sentiam comportamentalistas antes de cognitivistas, então não quiseram abandonar, em um primeiro momento, essa palavra “Comportamental”, em função de sua própria identidade. Foi a partir daí que o nome Terapia Cognitivo-Comportamental começou a ser usado.
Se nós olharmos hoje, em termos de realidade do Brasil, a maior parte das pessoas que se denominam Terapeutas Cognitivo-Comportamental são beckenianos. Alguns deles são também da Terapia Racional Emotiva Comportamental de Ellis. Mas normalmente estas pessoas se denominam “Terapeutas Racionais Emotivos Comportamentais – TREC”. Então, geralmente, as pessoas que tem se identificado com as idéias da TCC são Beckenianas.
Se formos pensar em termos de Análise Experimental do Comportamento estaremos falando da ciência de base da Terapia Comportamental, que atualmente, tem se denominado Terapia Analítico-Comportamental. Nesse caso teremos uma vertente que em geral vem de Skinner. Por mais que existam novas abordagens, como a do Guilhardi, a grande maioria dos Terapeutas Comportamentais são Skinnerianos.
Temos diversas distinções dessas posições. Por exemplo, a ideia da TCC de que existem fenômenos que são de natureza mental e outros que são de natureza física, os Terapeutas Comportamentais não irão concordar. Eles irão dizer que todas as manifestações são comportamentos e são de natureza física. Já dentro de uma visão Beckeniana da TCC, nós dizemos que existem leis diferentes para o comportamento e para o pensamento. Beck citou isso. Ele disse que concorda que as leis que regem o comportamento são aquelas propostas por Skinner, mas que a cognição funciona por outras leis, que são aquelas que ele propôs. Essa é a principal distinção entre um Terapeuta Comportamental e um Terapeuta Cognitivo-Comportamental.
Na prática, entre a Terapia Cognitivo-Comportamental e a Terapia Cognitiva pura existe alguma diferença marcante em relação à conceitualização ou tipo de estratégia utilizada?
Na forma como eu percebo na verdade, não. A diferença que pode existir é você sofrer uma influência maior de Ellis ou de Young, por exemplo, ou teres sido um Analista do Comportamento antes de te debruçares sobre os estudos das teorias cognitivas. Mas o que vemos na prática é que a maioria dos Terapeutas Cognitivo-Comportamentais são Beckenianos. E por mais que sejam menos radicais em alguns aspectos, como a estrutura da sessão, em termos de conceitualização não deveria existir diferença. Podem ocorrer pequenas variações, mas são bastante idênticas.
Claro que existem aqueles Terapeutas que não aceitarão ser chamados de Cognitivo-Comportamentais, defendendo uma postura purista. No entanto, minha posição de que não é o nome que os diferencia, mas o tipo de conceitualização do caso, repousa sobre o fato de que o próprio Beck vem publicando seus livros com o título de “Terapia Cognitivo-Comportamental”.
Gostaria que falasse um pouco também sobre se existe e como é a relação entre a Federação Brasileira de Terapias Cognitivas, a Sociedade Brasileira de Psicologia e a Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental.
É muito interessante sua pergunta, porque a ABPMC e a FBTC possuem algo muito importante em comum, que é um de seus fundadores. A ABPMC foi fundada por um grupo de pessoas, dentre as quais se encontrava Bernard Rangé, que está também entre os fundadores da FBTC. Então, só por causa disso, já existe um elo, um grande elo: o Bernard Rangé e o grupo de Terapeutas Cognitivo-Comportamentais do Rio de Janeiro. No entanto, vejo que a ABPMC tem um enfoque mais voltado para a Terapia Analítico Comportamental, embora acolha os trabalhos de Terapia Cognitivo-Comportamental também. Inclusive vejo que tem aumentado o espaço dentro da ABPMC para a apresentação de trabalhos Cognitivo-Comportamentais. Em outras épocas esse espaço era muito mais restrito, o que provavelmente, motivou o grupo de Terapeutas Cognitivo-Comportamentais a fundarem sua própria associação: a FBTC. Na época, SBTC e hoje FBTC. Essa relação é tranquila. É uma relação cordial, e hoje, o que podemos perceber é que há uma ênfase da ABPMC em congregar os Terapeutas Cognitivo-Comportamentais em seus eventos.
Com a SBP nós também temos uma relação bastante cordial, mas que depende de um movimento muito mais da FBTC do que da SBP. A SBP é uma sociedade geral da Psicologia, que acolhe pessoas das mais diversas áreas. É possível perceber muito respaldo dentro da Associação para a apresentação de nossos trabalhos, nossos cursos, então também há uma parceria em certa medida – mas, cada uma, com seus objetivos individuais e particulares.
Em suma, a FBTC tem um foco muito voltado à divulgação de todas as Terapias Cognitivas, Comportamentais ou não. Por exemplo, a Terapia Cognitiva dos Esquemas, a Terapia Cognitiva Construtivista, a Terapia Cognitiva Narrativa, a Terapia Comportamental Dialética, a Terapia Cognitiva Processual, dentre outras. Considerando isso, a FBTC se preocupa com as Terapias Cognitivas como um todo, como expressa em seu próprio nome. A ABPMC tem um foco voltado às intervenções Comportamentais – Analítico Comportamentais inicialmente, e tem aberto espaço para as Cognitivo-Comportamentais. Enquanto a SBP tem um enfoque geral na Psicologia, contemplando a Psicologia Científica independente de que teoria seja.
Qual seria o diferencial da Terapia Cognitivo-Comportamental em relação aos demais modelos terapêuticos?
Na verdade, acho que para responder esta pergunta, nós temos que discutir: “para que?”, “para que tipo de transtorno?”. Em geral, o que tem feito a TCC se tornar tão famosa são os dados de pesquisa. Os dados contundentes e sistemáticos de pesquisa. Então eu acho que o grande diferencial é esse. É o quanto nós temos de produção científica mostrando a efetividade da TCC nos mais diversos transtornos, ou seja, o fato de estarmos entre as práticas baseadas em evidências.
No entanto, isso não significa que ela é, lá no consultório, sempre a melhor opção. Significa que ela tem dados de pesquisas e que se as pessoas seguirem aqueles protocolos, aquilo que a literatura tem apontado como eficaz, elas têm alta probabilidade de sucesso. Isso não quer dizer que as outras não tenham sucesso. Elas precisam testar as suas hipóteses e chegar as suas conclusões.
O que você recomenda para quem tem vontade de estudar e conhecer mais a Terapia Cognitiva? Por onde esta pessoa deveria começar?
Acho que uma das coisas mais importantes, independente de ser TCC ou qualquer outra linha teórica, é unir-se a outras pessoas que também estudam aquele assunto. Então participem de grupos de estudo, organizem grupos de estudo, façam cursos, se especializem, estudem, atualizem suas leituras e tenham uma supervisão especializada. Essas seriam as principais coisas que eu sugeriria para quem quiser se especializar e se tornar um Terapeuta Cognitivo-Comportamental efetivo.