Não é raro observar profissionais de outras abordagens dizendo que a Análise do Comportamento é uma abordagem tecnicista, cujas práticas são exclusivamente voltadas à aplicação de técnicas padronizadas descritas em manuais como o livro Terapia Comportamental e Cognitiva Comportamental: Práticas Clínicas, de Abreu e Guilhardi (2004) ou o Manual de Técnicas de Terapia e Modificação do Comportamento, de Vicente Caballo (2002). Será que faz algum sentido a afirmação?
Se olharmos para a Análise do Comportamento como a conhecemos hoje, não faz o menor sentido dizer que ela é tecnicista. Ela possui um corpo teórico sólido e um sistema de análise que orienta a coleta, organização dos dados e planejamento das intervenções de forma individualizada e cuidadosa: a análise funcional (Skinner, 1953). A análise funcional consiste na identificação e descrição das relações de dependência entre as respostas (ações) de um organismo, as condições em que elas ocorrem (antecedentes) e seus efeitos sobre o mundo (consequentes) (Leonardi, Borges e Cassas, 2012). É ela que norteia toda e qualquer atitude clínica, desde a formulação do diagnóstico comportamental até a avaliação da efetividade de uma intervenção realizada. Conforme descrevem Leonardi, Borges e Cassas (2012), a Análise Funcional possibilita:
1) Identificar os comportamentos-alvo e as condições ambientais que os mantém;
2) Orientar a escolha da intervenção mais adequada ao caso;
3) Monitorar o progresso da intervenção ao longo do tempo;
4) Auxiliar a avaliação do grau de eficácia e efetividade da intervenção.
Além disso, é ela que orienta a resposta do terapeuta às demandas ligadas à relação terapêutica, como convites para sair, oferta de presentes, expressões de raiva e afeto, entre outras. Sua importância é consensual na área, embora existam divergências quanto à sua definição (Martin e Pear, 2009; Matos, 1999) ou a ordenação dos passos para que seja realizada (Matos, 1999).
Se os Analistas do Comportamento tem toda a sua conduta orientada por um sistema chamado Análise Funcional, que permite uma ampla compreensão do cliente e de como agir frente às diversas situações que se apresentam no contexto aplicado, de onde vem a idéia de que eles são tecnicistas?
Para responder a pergunta, é necessário olhar para a história da abordagem. Até por volta da década de 1980, as duas principais vertentes da Análise do Comportamento eram a Modificação do Comportamento e a Terapia Comportamental Clássica de Eysenck (Alves e Isidro Marinho, 2010). Ao contrário do que se observa hoje em dia, naquele tempo a Análise Funcional não era prática comum. Conforme assinala Banaco (1999), os modificadores do comportamento preocupavam-se apenas em aplicar técnicas capazes de suprimir algumas respostas operantes e fortalecer outras, sendo incapazes de realiza-la.
A Terapia Comportamental Clássica de Eysenck não era muito diferente neste aspecto. De acordo com Braga e Vandenberghe (2006), os profissionais desta tradição precisavam apenas ser habilidosos em planejar e executar um programa comportamental. Em geral suas intervenções eram baseadas no paradigma respondente, posto que consideravam superficiais os procedimentos operantes da Modificação do Comportamento (Vandenberghe, 2007).
Tanto os Modificadores do Comportamento quanto os Terapeutas Comportamentais clássicos escolhiam que técnicas usar em cada caso à partir de dados de pesquisas empíricas que demonstrassem sua efetividade para aquele tipo de problema em específico (Vandenberghe, 2005; Garcia, 2007), ignorando quase completamente a proposta skinneriana de análise das contingências (Garcia,2007). Se a técnica da Economia de Fichas fosse apontada como efetiva na resolução de problemas conjugais, ela passaria a ser empregada pelos Analistas do Comportamento em casos semelhantes sem que fosse feita qualquer tipo de análise das variáveis mantenedoras dos comportamentos-alvo. É algo bem próximo ao que a Super Nanny faz ao empregar técnicas de reforço e extinção em crianças sem analisar as variáveis que controlam seus comportamentos.
Conforme explica Malavazzi (2011), os Terapeutas Comportamentais Clássicos atuavam na clínica como autônomos, aplicando principalmente técnicas pavlovianas. Os Modificadores do Comportamento atuavam principalmente em instituições fechadas, como hospitais psiquiátricos, escolas e outras que permitissem a programação sistemática de contingências de reforço.
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Foi nesta época que a Terapia Comportamental conquistou pioneirismo no tratamento de transtornos de ansiedade e a Modificação do Comportamento na terapia de transtornos psicóticos graves, autismo e dificuldades de aprendizagem. No entanto, a primeira ainda era bastante limitada ao atendimento clínico de pacientes com comportamentos complexos e a segunda praticamente não era empregada fora de ambientes controlados (Garcia, 2007; Vandenberghe, 2011). Neste cenário, não demorou muito para que sua hegemonia fosse colocada à prova.
Ainda na década de 1970, várias pesquisas em Psicologia começaram a demonstrar que a aplicação de técnicas não era o único fator relevante para mudança clínica (Braga e Vandenberghe, 2006) e que as técnicas comportamentais não eram tão eficazes quanto se acreditava ser (Garcia, 2007). Na mesma época, vários autores da área sentiam-se insatisfeitos com o tratamento dado pela abordagem a aspectos como cognição, memória, sentimentos e consciência, dando início a um movimento que ficou conhecido como Revolução Cognitiva (Roediger, 2005), de onde nasceu a Terapia Cognitiva.
A recém-criada Terapia Cognitiva também ficou conhecida como Segunda Onda de Terapia Comportamental pelos autores da área (Malavazzi, 2011; Vandenberghe, 2011; Garcia, 2007). Os pesquisadores desta geração permaneceram críticos em relação às assunções não investigadas empiricamente, pautando seu trabalho no mesmo modelo hipotético-dedutivo que havia garantido destaque à primeira onda da Terapia Comportamental ao demonstrar objetivamente a eficácia de suas técnicas (Vandenberghe, 2007).
No final da década de 1980 e início da década de 1990 os analistas do comportamento americanos e europeus iniciaram um movimento que ficou conhecido como Terceira Onda de Terapia Comportamental, de onde nasceram abordagens como a Terapia Analítico-Funcional (FAP) e Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) nos Estados Unidos (Garcia, 2007). A Terceira Onda da Terapia Comportamental é caracterizada por uma releitura dos pressupostos skinnerianos, dando à abordagem comportamental o caráter contextualista que conhecemos hoje (Vandenberghe, 2011). No mesmo período e de forma totalmente independente, analistas do comportamento brasileiros iniciaram um movimento semelhante no país, propondo uma leitura mais ampla dos conceitos Skinnerianos e discutindo sua aplicação na clínica de psicologia tradicional. Conforme explica Vandenberghe (2011), este movimento deu origem à Terapia por Contingências de Reforçamento (TCR) e à Terapia Analítico-Comportamental (TAC).
A Terceira Onda da Terapia Comportamental é caracterizada também por um retorno ao processo psicoterápico vivencial, superando as limitações impostas pelo modelo tecnicista e internalista das duas primeiras ondas (Vandenberghe, 2007). Conforme aponta Garcia (2007), foram os autores da terceira onda, juntamente com os brasileiros responsáveis pela criação da TAC e da TCR, os responsáveis por reintroduzir na Terapia Comportamental o caráter funcionalista e monista da proposta Skinneriana. Apenas a partir daí a Análise Funcional passou a ocupar papel central no trabalho do Analista do Comportamento (Vandenberghe, 2007), dando início às práticas analítico-comportamentais como as conhecemos hoje.
Se alguém disser que a Terapia Comportamental é tecnicista, então, uma postura interessante a se adotar é perguntar de qual Terapia Comportamental, especificamente, a pessoa está falando. Se ela se refere às abordagens da primeira e segunda onda da Terapia Comportamental, sua crítica pode estar correta. Se ela se refere à terceira onda ou as terapias comportamentais brasileiras (TAC e TCR), é quase certo que não sabe do que está falando.
Os profissionais de outras vertentes teóricas cuja formação ocorreu antes da década de 1990 muito provavelmente tiveram contato apenas com as duas primeiras ondas da Terapia Comportamental. É compreensível que tenham uma visão da Análise do Comportamento como uma abordagem tecnicista, post o que não acompanharam seu desenvolvimento ao longo dos anos. São estes profissionais os professores de graduação e os autores dos principais livros de Psicologia Geral e Teorias da Personalidade de hoje em dia, o que possivelmente explica o fato de muitos estudantes de psicologia e psicólogos recém formados também pensarem na Análise do Comportamento como uma abordagem tecnicista.
Seria presunção, no entanto, supor que todo aquele que considera a abordagem tecnicista não conhece seu estado atual e sua evolução. Conforme explica Rodrigues (2011), alguns podem criticar a Análise do Comportamento simplesmente por não concordarem com ela. A autora explica que podem existir discordâncias em relação a seus aspectos filosófico-epistemológicos e metodológicos. Nestes casos, pode não valer muito a pena discutir se os críticos estão ou não corretos, a não ser que você possua um conhecimento satisfatório de epistemologia e história da Análise do Comportamento para que possa esclarecer a questão. Caso contrário, poderá adentrar a uma discussão infrutífera, cujos únicos resultados serão ânimos exaltados.
Referências:
Abreu, C. N. de; Guilhardi, H. J. (2004). Terapia Comportamental e Cognitivo Comportamental: Práticas Clínicas. São Paulo: Rocca.
Alves, N.N.F.; Isidro-Marinho, G. (2010).Relação Terapêutica sob a perspectiva Analitico-Comportamental . In de-Farias, A.K.C.R. (org).Análise Comportamental Clínica: aspectos teóricos e práticos. Porto Alegre: Ed. Artmed.
Banaco, R. A. (1999). Técnicas cognitivo-comportamentais e análise funcional. Em R. R. Kerbauy e R. C. Wielenska, (Orgs.), Sobre comportamento e cognição. Psicologia comportamental e cognitiva – da reflexão teórica à diversidade na aplicação (pp.75-82). Santo André: ARBytes.
Braga, G. L. B. & Vandenberghe, L. (2006) Abrangência e Função da Relação Terapêutica na Terapia Comportamental. Estudos em Psicologia (Campinas). Vol23. N 6.
Caballo, V. E. (2002). Manual de técnicas de terapia e modificação do comportamento (pp. 361-398). Tradução organizada por M. D. Claudino. 1ª Edição. São Paulo: Santos. (Trabalho original publicado em 1996).
Garcia, M. R. (2007). O Percurso da Terapia Comportamental. Terra e Cultura. N. 44.
Leonardi, J.L.; Borges, N. B. & Cassas, F. A. Avaliação Funcional como ferramenta norteadora da prática clínica. Em Borges, N. B. e Cassas, F. A. (Orgs). Clínica Analítico Comportamental: aspectos teóricos e práticos. (pp. 105-109). Porto Alegre: Artmed.
Malavazzi, D. M. (2011) Breve Panorama sobre as três gerações da terapia comportamental. Boletim Contexto – ABPMC. 34.
Martin, G.; Pear, J. (2009). Modificação do Comportamento: o que é e como fazer. São Paulo: Rocca.
Matos, M. A. (1999). Análise Funcional do Comportamento. Estudos em Psicologia (Campinas). 16(3):8-18
Rodrigues, M. E. (2011). Mitos e Discordâncias: Análise de relatos de ex-analistas do comportamento. São Paulo: Esetec Editora.
Roediger, H.L. (2004). What happened to behaviorism. American Psychological Society Observer (APS Observer), 17 (3)
Skinner, B.F.(1989). Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins. Fontes. Publicação original de 1953.
Vandenberghe, L. (2005) Abordagens Comportamentais para a dor crônica. Psicologia: Reflexão e Crítica. (18)1. 47-54.
Vandenberghe, L.(2011). Terceira Onda e terapia analítico-comportamental: um casamento acertado ou companheiros de cama estranhos?. Boletim Contexto – ABPMC. 34.
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