Autismo: a visão da Análise do Comportamento

Começo aqui uma série de publicações sobre os Transtornos do Espectro do Autismo e como a Análise do Comportamento tem atuado nesta área. A cada mês pretendo abordar um tema relevante na intervenção comportamental com esta população, de forma a abranger conceitos teóricos e práticos. Assim, acredito que estas publicações se destinam tanto aos profissionais da área da saúde (médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, etc.), quanto a pais, familiares e cuidadores de crianças que foram diagnosticadas dentro do espectro do autismo ou que possuem algum tipo de atraso no desenvolvimento. Gostaria de discutir com meus leitores acerca dos temas publicados e, inclusive, receber pedidos e sugestões de temas para as próximas publicações. 
Este artigo inicial tem como objetivo apresentar alguns conceitos básicos da Análise do Comportamento que são fundamentais para a compreensão dos transtornos do desenvolvimento sob a luz desta abordagem, bem como para a prática do analista do comportamento com esta população.
O DSM IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 4ª Ed.) apresenta os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID) como um grupo de transtornos que inclui o Autismo, a Síndrome de Asperger, a Síndrome Semântico-Pragmática, o Transtorno Desintegrativo da Infância, o Transtorno do Aprendizado Não Verbal (TANV) e os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento sem Outra Especificação (TID-SOE). A figura abaixo, retirada de Mercadante, Van der Gaag e Schwartzman (2006), apresenta as diversas categorias do transtorno invasivo do desenvolvimento e como elas se entrelaçam. 
Segundo Gillberg (2005) estas variantes podem ser descritas a partir da tríade de deficiências, ou seja: prejuízo grave do desenvolvimento de interações sociais; prejuízo grave do desenvolvimento da comunicação; e limitação da variabilidade de comportamentos. 
O autor descreve como características do prejuízo no desenvolvimento de interações sociais a ausência de contato visual com o outro durante as interações sociais; a dificuldade de interação com crianças da mesma idade, sendo a interação com crianças mais velhas e com adultos mais fácil; a falta de reciprocidade sócio-emocional, ou seja, a dificuldade em expressar suas emoções para o outro e em ser afetado pelas emoções do outro; e a ausência de procura espontânea de compartilhamento do prazer, isto é, as crianças autistas, inicialmente, não buscam mostrar ao outro algo que lhes causa prazer, não procuram dividir com o outro suas emoções. 
A busca de compartilhamento do prazer é um evento corriqueiro e banal para a maioria das pessoas. É comum não conseguirmos desfrutar de um prazer sozinhos, mas sim termos a necessidade de mostrar ao outro nossa conquista, nosso objeto de felicidade. Qualquer um concordaria que conquista alguma está completa se não for vista pelos outros, se não for de conhecimento público. Esta é uma característica social básica e fundamental, mas difícil de ser observada em crianças e adolescentes autistas antes de qualquer intervenção. 
Na categoria de deficiências da comunicação Gillberg (2005) aponta o atraso ou não desenvolvimento da linguagem falada e, também, dos demais comportamentos que compõem a comunicação, como as expressões faciais, os gestos, a postura corporal, etc. O autor também descreve a presença de um discurso repetitivo, incluindo a ecolalia (repetir falas ou partes das falas de outras pessoas ou de filmes). Também está nesta categoria a ausência de brincadeiras sociais, que são totalmente fundamentadas na comunicação. Enfim, são crianças que não adquirem a comunicação funcional e todos os seus componentes apenas com as contingências de ensino naturais presentes na comunidade verbal. 
Finalmente, em relação às limitações na variabilidade comportamental, Gillberg (2005), relata que as crianças autistas apresentam preocupação circunscrita a um interesse especial, demonstrado por meio da busca freqüente por imagens, textos, vídeos e objetos sempre do mesmo tema, além de verbalizações repetitivas sobre este tema. Muitos autistas que desenvolveram bem a linguagem falada ainda têm problemas na aquisição da comunicação funcional, afinal falam bem e com boa dicção, mas só falam sobre seus temas de interesse e não ficam sob controle do ouvinte, ou seja, não percebem quando o assunto não interessa ou não está sendo compreendido pelo outro. 
Também faz parte desta terceira categoria de deficiências a dependência compulsiva de rotinas. É comum observarmos crianças autistas que se angustiam exageradamente com qualquer pequena mudança na rotina, seja a ausência de uma das atividades que ela teria naquele dia; ou uma simples mudança de caminho para ir de casa para a escola; ou ainda o fato de alguém ter se sentado em seu lugar à mesa. Estes eventos que parecem comuns em nosso cotidiano são enfrentados com muita angústia, irritação e agitação por grande parte dos autistas. 
As estereotipias motoras e a preocupação com partes de objetos completam as limitações na variabilidade comportamental. Os comportamentos repetitivos são as características mais conhecidas desta população. São comportamentos com função auto-estimulatória, ou seja, que visam apenas o prazer físico, o que atrapalha muito as interações sociais e o aprendizado. Os brinquedos são normalmente manipulados de forma estereotipada, repetitiva e apenas sensorial. Estas crianças tendem a não considerar o objeto como um todo, mas lidar com uma parte específica do objeto que, geralmente, causa alguma estimulação sensorial (visual, tátil, olfativa, auditiva ou gustativa). Por exemplo, é comum observar crianças autistas que se deitam no chão e movimentam um carrinho de brinquedo olhando fixamente para as rodas girando, algumas chegam a virar o carrinho de cabeça para baixo para rodarem suas rodinhas e assistirem a este movimento. 
O objetivo destes comportamentos é apenas sensorial e não social, não existe um faz de conta ou o uso do carrinho como sendo um carro, mas sim o uso de um objeto que tem um movimento giratório que causa uma sensação visual prazerosa. São comportamentos reforçados automaticamente (por sensações prazerosas) e, com isso, tornam-se muito de frequêntes, ocupando grande parte do tempo em que a criança poderia estar interagindo com familiares e amigos, aprendendo novos comportamentos e se divertindo de formas mais adequadas socialmente. 
Tal como descrito até aqui, o diagnóstico médico visa identificar estas topografias comportamentais agrupadas em categorias. Estas categorias são definidas com base nos desenvolvimentos esperados para cada idade tendo como ponto de partida o desenvolvimento típico ou o que comumente se chama de “normal”. Mas qual seria visão da Análise do Comportamento? Analistas do Comportamento nem falariam em diagnóstico, mas sim em Avaliação Comportamental. Esta, por sua vez, busca identificar respostas do indivíduo considerando o contexto (ambiente ou situação) onde ocorrem e, ainda, considerando as consequências que estas respostas produzem. Assim, a análise do comportamento visa uma explicação individualizada, a partir da análise da relação entre eventos ambientais e eventos orgânicos. 
Nosso objeto de estudo é o comportamento, mas comportamento enquanto relação entre ambiente e organismo, e não apenas resposta ou ação. Consideramos ambiente tudo aquilo que afeta as ações do indivíduo, sejam estímulos da natureza, estímulos sociais (de outro ser humano) ou estímulos do próprio organismo (sensações, sentimentos, eventos internos). O organismo, por sua vez, abrange as características biofisiológicas que são afetadas pelo ambiente e também o afetam. Segundo Skinner (1974), “uma pessoa não é um agente que origine, é um lugar, um ponto em que múltiplas condições genéticas e ambientais se reúnem num efeito conjunto.” (p.145). 
Todos os comportamentos são determinados pela ação conjunta de três fatores: 1) Filogênese: a herança genética transmitida de pais para filhos, as características físicas selecionadas na evolução das espécies; 2) Ontogênese: a história adquirida nas vivências pessoais do organismo, a chamada aprendizagem, que consiste na seleção de comportamentos por suas conseqüências; 3) Cultura: a sobrevivência de padrões de comportamento passados de um indivíduo para outros de seu grupo. 
Os comportamentos reflexos (respostas involuntárias) são comuns a todos os indivíduos da mesma espécie e determinados apenas pela filogênese. Estas respostas não são passíveis de mudança, são respostas certas e inevitáveis a estímulos ambientais, como a contração da pupila em contato com a luz; o piscar dos olhos frente a uma ameaça de atrito; os movimentos peristálticos; etc. Nossa intervenção neste campo se limita apenas a tornarmos estímulos neutros capazes de eliciarem tais respostas reflexas, através do pareamento destes estímulos com os estímulos que inicialmente eliciam estas respostas. Mas não somos capazes, ainda, de modificarmos a intensidade e a freqüência das respostas reflexas. Esta é a área de atuação da medicina e, mais especificamente, da genética. 
A área de atuação do psicólogo situa-se na ontogênese, isto é, na história de vida que faz cada um ser um indivíduo único. Quem já conheceu gêmeos monozigóticos sabe que o fato de terem a mesma genética não faz com que sejam pessoas idênticas, pelo contrário, é comum vermos casos de gêmeos monozigóticos com características comportamentais completamente opostas. É aí que enxergamos claramente a ação da ontogênese, afinal, mesmo sendo geneticamente idênticos e tendo crescido juntos, estes gêmeos não terão histórias de vida e aprendizados idênticos. Quando os pais forem lhes ensinar a andar de bicicleta, por exemplo, eventualmente haverá uma pedra ou um buraco no caminho de um dos gêmeos, que cairá e terá este comportamento frustrado e naturalmente punido. Provavelmente, este gêmeo não vai se tornar um grande ciclista. Enquanto isso, o outro gêmeo que ocasionalmente foi por um caminho sem pedras e buracos, pôde pedalar com perfeição e teve seu comportamento instantaneamente reforçado. Este segundo irmão terá mais chances de voltar a pedalar no dia seguinte e nos próximos. 
Esta seleção de comportamentos por suas conseqüências gera os comportamentos operantes, ou seja, ações que produzem alterações no ambiente. Estas alterações ou conseqüências, por sua vez, retroagem sobre as ações do organismo modificando-as, aumentando ou diminuindo sua probabilidade de ocorrência. A queda do primeiro gêmeo reduz a probabilidade de ocorrência do pedalar, enquanto que o sucesso do segundo aumenta a probabilidade desta resposta. 
Assim, para a análise do comportamento cada indivíduo é único e, por isso, não faz sentido a noção de diagnóstico, que é baseada na comparação entre indivíduos e grupos. Sem deixarmos de utilizar o diagnóstico médico como nomenclatura oficial e documento fundamental, fazemos a nossa avaliação focada na história de aprendizagem da criança. Olhamos para seus comportamentos como respostas que foram selecionadas no decorrer de sua história de vida e que só continuam ocorrendo porque continuam produzindo conseqüências reforçadoras. Seja esta uma resposta adequada socialmente ou não, seja um brincar funcional ou um comportamento auto-lesivo (machucar a si mesmo). Todos os comportamentos têm uma função e não são considerados estranhos e nem inesperados se considerarmos a história de vida na qual estes comportamentos produziram conseqüências que os selecionaram e os mantêm até hoje. 
O analista do comportamento vê os transtornos invasivos do desenvolvimento como o quadro genético e neurológico que são, porém analisa os comportamentos de cada criança que recebeu este diagnóstico como faria com os comportamentos de qualquer pessoa, ou seja, buscando variáveis ambientais presentes no momento em que cada resposta aconteceu no passado e as consequências que esta resposta vem produzindo no ambiente. Chamamos isto de função dos comportamentos e podemos afirmar que até comportamentos “estranhos” observados em crianças autistas têm uma função, ocorrem porque são adaptativos e úteis na vida desta criança. Os autistas não aprenderam outros comportamentos mais adequados que produziriam as mesmas conseqüências. Na ausência de uma fala funcional e inteligível, os comportamentos auto-lesivos e as birras são extremamente úteis na comunicação e, por isso, se mantêm. 
Esta série de artigos continua em 24 de abril, com a apresentação detalhada desta avaliação comportamental que é feita na clínica e no ambiente natural da criança antes do início da intervenção. 
Referências Bibliográficas: 
ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA, APA. (2002). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. (DSM – IV – TR). Porto Alegre: ARTMED. 
GILLBERG, C. (2005). Transtornos do espectro do autismo. Palestra feita no Auditório do InCor, em São Paulo. 
MERCADANTE, M. T., VAN DER GAAG, R. J. & SCHWARTZMAN, J. S. (2006). Transtornos invasivos do desenvolvimento não-autísticos: síndrome de rett, transtorno desintegrativo da infância e transtornos invasivos do desenvolvimento sem outra especificação. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28 (1), pg. 12-20. 
SKINNER, B. F. (1974/1982). Sobre o behaviorismo. Tradução de Maria da Penha Villalobos. São Paulo: Cultrix: Ed. Da Universidade de São Paulo.
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Escrito por Juliana Fialho

Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no ano de 2006. Mestre em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Dissertação defendida em maio de 2009). Trabalha como psicóloga na Gradual (Grupo de Intervenção Comportamental), onde lida principalmente com crianças e adolescentes com desenvolvimento atípico. Tem experiência em Análise do Comportamento Aplicada. Já desenvolveu pesquisas de Iniciação Científica, Conclusão de Curso e Mestrado nos seguintes temas: desenvolvimento atípico, avaliação de repertório inicial, intervenção comportamental, comunicação funcional e alternativa e variabilidade comportamental.

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