Fiquei alguns dias pensando sobre qual ia ser minha primeira postagem. Pensei em escrever sobre comportamento de brincar, dentre outros temas que desenvolverei aqui depois. Mas, após muito pensar, resolvi escrever algo mais geral, com um caráter mais reflexivo. Sendo assim, penso em esboçar aqui algumas idéias sobre “que infância estamos falando?”.
Há uma semana, uma pessoa chegou para mim e perguntou “qual o conceito de infância para a análise do comportamento?”. Juro que fiquei na dúvida no momento e ainda estou. Será que podemos conceituar infância? Ou delimitá-la conceitualmente no tempo? Penso que quaisquer definições que tentarei fazer do termo ficarão incompletas. No entanto, trago aqui algumas influências advindas do terceiro nível de seleção do comportamento – o cultural – para ilustrar a complexidade do tema. Antes de tudo, gostaria de agradecer ao pessoal IBAC por ter criado ocasiões para meu comportamento de refletir sobre esse tema (eles me apresentaram muitos dos textos que trago aqui).
Existem muitos estudiosos da antropologia, da história, da comunicação e da educação que apontam a infância como conceito que surge e varia no decorrer da história e nas culturas. Lembro do que Ariès, em sua obra História social da infância e da família (1973) falava sobre o surgimento gradual e o desenrolar do sentimento de infância, a partir da idade média. Neil Postman (1999), no seu livro o desaparecimento da infância, primeiramente relata esse percurso histórico do aparecimento da infância como a concebemos hoje, para depois listar evidências de que hoje ela está desaparecendo. Aponta, para isso, dificuldades cada vez maiores de distinguir o mundo da criança e do adulto e aponta algumas evidências da “extinção” dessa criança.
O autor, como estudioso da comunicação, refere-se a muitas evidências contidas na mídia. Os meios de comunicação mostram cada vez mais a semelhança entre o gosto dos adultos e das crianças e representam as crianças como mini adultos. Podemos lembrar, por exemplo, dos desenhos animados, feitos hoje para adultos e crianças indistintamente. Lembro também que, quando era criança (o que não foi há muito tempo!), usava roupas diferentes das que adultos usavam. Já as vitrines de roupas infantis hoje são parecidíssimas com as de adultos.
Se não fosse por características filogenéticas, o que você apontaria como diferenças entre essas crianças e os adultos?
Banaco e Martone (2005) apontam os meios de comunicação como agência de controle do comportamento humano através, prioritariamente, do reforçador informação. (1) Para a criança, além da informação, outros reforçadores estão em jogo. Acesso a reforçadores sociais através de regras como como “tenha os gatinhos aos seus pés com a sandália X”, ou ainda acesso a reforçadores como “felicidade” colocada em equivalência com o consumo. Sobre a influência da mídia no comportamento da criança, queria indicar o post da Giovanna Del Prette, a qual comenta sobre “crianças e a indústria de felicidade”.
Tais influências culturais afetam (e muito!) a forma com a qual as crianças interagem com o mundo. Vamos pensar em como as crianças são retratadas na novela, ou como hoje elas brincam nas lojas de brinquedo, comparando com a forma como nós brincávamos quando éramos crianças. Ou seja, essas influências culturais afetam de forma significativa a concepção de infância e as relações entre comportamentos infantis e o ambiente. E que ambiente é esse? Sobre qual “mundo da criança” estamos falando?
As evidências de mudanças que observamos devem ser um ponto fundamental para refletirmos suas conseqüências éticas para as crianças e para a sociedade como um todo. No entanto, acredito que algumas características da infância nos permitem ainda distingui-las de outros períodos. Para maiores informações, consultar o post do Neto, aqui nesse blog, sobre desenvolvimento e análise do comportamento, ou ler o texto produzido por Vasconcelos, Naves e Xavier sobre a abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento (2010).
Essas características são relativas não só a especificidades orgânicas, mas à interação desses aspectos filogenéticos com os ontogenéticos. A interação da criança com seu ambiente é tão particular que, acredito que enquanto houver práticas culturais de investigação científica, dificilmente a infância deixará de ser objeto de estudo. Isso porque, devido a essa interação filo-onto, a época “infância” é ocasião privilegiada para a instalação de repertórios, como o sensório-motor, de comunicação, interação social, comportamento moral etc. Ou seja, a infância, por ser o período de acesso a essas novas contingências, permite a investigação de como repertórios simples se sofisticam.
Sendo assim, creio que podemos pensar em infância como um período de desenvolvimento no qual devemos analisar a interação dos três níveis de seleção para sua constituição. Portanto, talvez a pergunta aqui não seja “o que é infância para a análise do comportamento?”, uma vez que esse conceito é maleável, mas sim, “como as variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais se relacionam para determinar as interações criança-ambiente?” E vocês, o que acham? Devemos conceituar infância? Para maior reflexão sobre o tema, ofereço um vídeo de Toquinho, intitulado “o mundo da criança”. A letra do vídeo está transcrita abaixo
Mundo da Criança (Toquinho)
É sempre colorido, muitas vezes de papel
Com arcos, flechas, índios e soldados
Cheinho de presentes feitos por papai noel
O mundo da criança é iluminado Baleias gigantescas, violentos tubarões
Mistérios de um espaço submerso
Espaçonaves passam por dez mil constelações
O mundo da criança é um universo
O mundo da criança é um universo Pipas, peões, bolas, balões, skates e patins
Vovó, vovô, mamãe, papai, família
É fácil imaginar uma aventura
Dentro de uma selva escura
Com perigos e armadilhas
Viagens para encontrar minas de ouro
Piratas e um tesouro enterrado numa ilha Imagens, games, bate-papos no computador
O tempo é cada vez mais apressado
E mesmo com todo esse imenso interativo amor
O mundo da criança é abençoado
O mundo da criança é abençoado
Referências:
ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2.ed. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1973.
BANACO R. A.; MARTONE, R. C. Comportamento social: a imprensa como agência e ferramenta de controle social. In: TODOROV, J. C.; MARTONE, R. C.; MOREIRA, M. B. (Org.). Metacontingências: comportamento, cultura e sociedade. Santo André: ESETec, 2005. p. 61-80.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro, Graphia, 1999.Tradução: José Laurenio de Melo e Suzana Menescal.
VASCONCELOS, L. A. ; NAVES, A. R. C. X. ; ÁVILA, R. R. . Uma abordagem analítico-comportamental do desenvolvimento. In: Luna, S. V.; Tourinho, E. Z.. (Org.). Analise do comportamento. 1 ed. São Paulo: Roca, 2010, v. , p. 125-149.