Segue abaixo mais uma entrevista que fiz para o Comporte-se na XII Jornada Mineira de Ciência do Comportamento (XII JMCC). O entrevistado, Pedro Henrique Sampaio, graduou-se em Psicologia pela PUC-Minas, atua como psicoterapeuta na Unimed e está se especializando em Análise do Comportamento Aplicada pelo Centro Universitário Newton Paiva. Pedro, na ocasião da XII JMCC, proferiu uma provocante palestra sobre alguns problemas do relativismo epistemológico.
1) Inicialmente, Pedro, conte-nos um pouco sobre sua trajetória acadêmica e profissional, bem como sobre quando e como seu interesse pela Filosofia aflorou.
Meu interesse pela Filosofia vem desde muito cedo; já tem cerca de 15 anos que estudo bastante Filosofia. Eu me questionava muito sobre o mundo à minha volta… procurava entender por que as pessoas agem como elas agem, por que pensam no que pensam, se existia Deus, por que eu deveria ou não confiar em meu médico. Então um dia minha mãe me disse que aquilo era Filosofia e me deu o livro “O Mundo de Sofia”, do Jostein Gaarder, para ler. Fiquei encantado com o livro e lá tomei conhecimento de alguns filósofos que pareciam ter se indagado sobre coisas similares às que eu vinha me indagando e fui buscar livros deles para ler. Daí não parei mais.
Meu interesse pela Psicologia, inclusive, veio através da Filosofia. Através de filósofos tomei conhecimento de Freud e fiquei imediatamente fascinado. Depois, Lacan. Assim, já entrei no curso de Psicologia tendo alguma leitura de Psicanálise e orientei quase toda minha formação neste sentido: continuei estudando bastante Psicanálise, escolhi estágios de orientação psicanalítica, dei monitoria em Psicanálise, fiz pesquisa, grupos de estudo, tudo em Psicanálise. Mas então comecei a frequentar um grupo de estudo em Análise do Comportamento coordenado pelo Marcus Guadalupe. Confesso que fui a princípio apenas para criticar a Análise do Comportamento, mostrar como aquilo estava ultrapassado, como eram filosoficamente ingênuos e que o modelo de ciência que adotavam era antigo e ignorava uma série de coisas importantes. Eu não tinha ideia do quanto estava enganado.
Quanto mais eu lia Skinner e outros analistas do comportamento, mais via que tudo aquilo que falam do behaviorismo radical — e que uma leitura superficial de Skinner dá a entender — era completamente equivocado. Em determinado momento tive que admitir que a Análise do Comportamento era realmente a melhor proposta de estudo, e a teoria mais bem fundamentada, sobre os fenômenos ditos “psicológicos”.
Desde então tenho orientado minha prática profissional pela Análise do Comportamento. Atuo em consultório particular e também sou psicólogo clínico da Unimed. Fora isso, continuo devorando e tentando produzir algo a respeito de temas acadêmicos que me interessam, a maioria deles relacionados à Filosofia, mas agora norteados pelo behaviorismo radical.
2) Você abordou um problema epistêmico (posso chamá-lo assim?) muito intrigante na XII JMCC, qual seja, o de se explicações diferentes sobre um fenômeno podem ser igualmente boas. Em linhas gerais, em que consiste esse problema e quais critérios podemos adotar para solucioná-lo?
É que existe um debate bem quente atualmente sobre se explicações diferentes são todas igualmente boas, igualmente válidas, igualmente “verdadeiras”. Isso na verdade é antigo, vem desde os pré-socráticos, mas teve uma retomada principalmente a partir do século passado, com pensadores que são chamados, por vezes, de “pós-modernos”. Protágoras já dizia que “o homem é a medida de todas as coisas” e Pirro de Élis levou isso a extremos do ceticismo… mas foram os filósofos ditos “pós-modernos” que deram a roupagem atual a esse argumento. É muito difícil falar desse assunto sem ser simplista, mas o cerne do argumento é: “qualquer teoria/ explicação/ descrição é igualmente boa porque todas elas são apenas fruto do meio onde surgiram e/ou partem de um viés epistemológico que é, no fundo, necessariamente arbitrário. Assim, só podemos dizer que uma é melhor do que a outra partindo de um ponto de vista específico, de critérios arbitrários que favorecem uma explicação em vez de uma outra”.
Na apresentação que fiz, que é também um resumo até imprudente de minhas ideias, procuro apontar alguns problemas dessa ideia, chamada de “relativismo epistemológico”, e apontar soluções.
Tenho observado que uma solução eficaz para essa questão e para todos os problemas que envolvem a escolha de uma explicação em detrimento de outra é a adoção de três etapas:
1. Tradução dos termos problemáticos para termos comuns entre ambas as teorias;
2. Caso a tradução não se mostre possível ou eficaz, chegar ao MMC de toda explicação, que é a razão.
Este (razão) é um termo com muitas definições diferentes e esta palavra já foi dissecada até o osso por alguns filósofos, mas entenda por “razão” simplesmente coisas como fazer sentido, lógica, ter coerência, haver motivos para acreditar naquilo. Ou seja, pode utilizá-lo da forma mais ampla possível.
3. Persuasão. Caso alguma explicação não esteja preocupada com a razão ou não tenha como emitir juízo sob qual a mais bem justificada, você simplesmente descreve ambas, com suas justificativas e consequências. Ouso dizer que, nos embates entre explicações concorrentes que analisei até aqui, quase nenhuma chega até este terceiro ponto. O imbróglio é resolvido no item 1 ou 2. Geralmente só chegam aqui conflitos entre explicações filosóficas ou científicas com explicações religiosas, por exemplo. Ou então explicações de origem puramente conceitual, como você tentar dizer se a análise de Kant sobre o entendimento humano é melhor ou pior do que a de Hume.
Gostaria de explicar melhor tudo isso, mas ficaríamos horas por aqui. Por enquanto basta dizer que adotar este procedimento já torna improcedente essa igualação absoluta feita entre teorias, coisa tão comum na Psicologia.
3) A propósito, você tratou de algo semelhante em sua monografia da graduação, de vez que buscou traçar um paralelo epistemológico entre a Psicanálise e a Análise do Comportamento. Podemos, afinal, tomar aqueles critérios para comparar, talvez mesmo em termos de eficiência, as abordagens da Psicologia? Se sim, você acha que deveríamos lançar mão de estudos nesse sentido? Quais seriam as consequências de fazê-lo?
Sim, e não só podemos como devemos! Acredito ter explicitado em minha apresentação não apenas a tremenda falácia que é o relativismo epistemológico como também apontado as consequências desastrosas de adotá-lo, caso fosse verdade. Em minha monografia, pude observar que a maior parte dos conflitos envolvendo a Psicanálise e o Behaviorismo Radical, duas teorias aparentemente tão opostas, eram resolvidos operando simplesmente o primeiro item, a tradução. O mesmo pode — e deve — ser feito com relação às demais teorias psicológicas.
É difícil prever as consequências disso, mas certamente faríamos uma limpeza nesse samba-do-crioulo-doido chamado “Psicologia”, ou ao menos colocaríamos algumas teorias em maus-lençóis. Com isso não estou propondo uma cruzada anti-pluralidade teórica. Muitíssimo pelo contrário! É fundamental que novas explicações surjam o tempo todo e concorram para explicar o mesmo fenômeno. Mas do que adianta se cada um vier com sua teoria e ficar cada uma no seu quadrado, afirmando que é tudo igualmente bom, igualmente verdadeiro, que somos todos lindos, que as crianças crescem, que os passarinhos voam e que as flores desabrocham? Não se produz nada!
Essa proposta não vem favorecer a Análise do Comportamento, mas vem favorecer a produção de conhecimento. A Psicologia sofre de um terrível descrédito tanto entre as demais ciências quanto entre a população de um modo geral. Esse descrédito é justificado e fruto do que fazemos com ela. Passou da hora de passarmos uma navalha nesse acúmulo de especulações chamado Psicologia e começar a ver quais teorias sobrevivem a um exame crítico e comparativo, quais explicações são devidamente fundamentadas — independentemente da epistemologia que adotam, tal qual é minha proposta — e, caso algumas sejam melhores do que as outras em alguns aspectos e outras não, como uma pode contribuir para a outra.
Isso não deveria ser apenas uma questão filosófica, um comprometimento com ciência, não-ciência ou produção de conhecimento; deveria, antes, ser uma questão de ética. Deveríamos fazer isso porque nossas vaidades e crenças pessoais são menos importantes do que oferecer o melhor possível para os nossos clientes. É oferecer o melhor conhecimento possível sobre fenômenos psicológicos para o mundo e o melhor tratamento possível para as pessoas. E, por mais que o contrário seja repetido à exaustão nos cursos de Psicologia, tem como fazer isso sim.
4) Finalizaremos a entrevista pelo modo como muitas entrevistas começam. Conte-nos, Pedro, sobre o que levou você a optar pela Análise do Comportamento (AC) em detrimento das outras abordagens.
Na verdade, demorei muito para me chamar, ou aceitar que me chamem, de analista do comportamento. Porque não tenho nenhum comprometimento específico com a Análise do Comportamento. Meu comprometimento é com o conhecimento, e a Análise do Comportamento é para mim, e até onde estudei, simplesmente o melhor que temos para explicar todo o escopo de coisas que a Psicologia se ocupa. Por enquanto.
Digo isso porque, como toda teoria, vai inevitavelmente acontecer uma das duas coisas: ou o que conhecemos hoje como Análise do Comportamento vai acabar sendo bem modificado e aprimorado, assim como é bem diferente a Física do século XVIII e a Física hoje; ou então a Análise do Comportamento vai dar lugar a uma outra proposta que dá conta dos mesmos fenômenos que ela se dispõe a estudar tão bem quanto ou melhor do que ela.
Como o próprio Skinner apontou, isso não quer dizer que a Análise do Comportamento esteja errada ou que ela seja um fracasso. Ela é simplesmente o melhor que temos hoje e fazemos muito bem em adotá-la. Todo conhecimento que consideramos correto é apenas um conhecimento correto até então, e a AC não é exceção. E ela não é um fracasso, porque são todas as coisas que ela conseguiu que propiciarão que aquilo que vai aprimorá-la ou substituí-la venha a ocorrer. Ela foi, e já é, um sucesso.
O que não quer dizer, obviamente, que não tenhamos um mundo de coisas a fazer por ela ainda. Inclusive criticá-la incessantemente. Só assim se faz ciência.