Trad, como a maioria de nós, trata o conceito de livre-arbítrio como o poder do indivíduo de escolher suas próprias ações. Nesse sentido, toda ação do indivíduo seria explicada por sua vontade, a qual não seria completamente determinada por eventos antecedentes. A vontade, tal como alguns dizem do espírito, não partilharia das relações de causa e efeito do mundo físico, material.
Vejamos a seguinte e cômica ilustração do que seria uma explicação determinística de natureza histórica. Em uma charge publicada na revista New Yorker, uma mulher no banco de testemunhas declara: “É verdade, meu marido me espancava por causa de sua infância… Mas eu o matei por causa da minha” (adaptado de Pinker, 2004). Essa trama retrata a tentativa da mulher de tirar sua responsabilidade pelo assassinato do marido. A culpa, na verdade, não seria dela, mas de tudo o que lhe ocorreu enquanto ainda era criança.
Estão confundindo explicação com absolvição. Ao contrário do que insinuam os críticos das teorias das causas biológicas e ambientais, explicar um comportamento não é desculpar quem o executou (p. 250, destaque meu).
Diante disso, eis que temos uma resposta àquela pergunta do deputado Trad, a saber: “De que forma se poderia alcançar a legitimação do direito de punir com o impacto da Neurociência no conceito de livre-arbítrio?”. A resposta seria a seguinte: Independentemente do determinismo, punir é correto e aconselhável na medida em que não fazê-lo equivale a permitir que o infrator prossiga agindo de forma socialmente indesejável. Em termos técnicos, a punição (ou a responsabilização) tem o efeito de alterar as relações de causa e efeito nas quais está inserido o comportamento criminoso.(2)
A Neurociência explica as nossas escolhas?
Venho estudando a influência da velocidade de processamento de informação (VP) de idosos saudáveis. Em termos cognitivistas, VP refere-se à velocidade com que a cognição recebe, organiza e interpreta informações. Em termos do senso comum, VP denota a velocidade com que pensamos. Pelo nível neurofisiológico, VP diz respeito à velocidade com que os potenciais de ação são conduzidos ao longo das vias neurais. Minha pergunta é a seguinte: A descrição neurofisiológica da VP explica as descrições do senso comum e da Psicologia Cognitiva? A resposta, “não”, possibilita falarmos do que alguns filósofos denominam pluralismo descritivo: a possibilidade de descrevermos um mesmo fenômeno sob diferentes níveis de análise (Pinto, 2007).
A experiência de escolher não é uma ficção, independentemente de como o cérebro funciona. É um processo neural, com a óbvia função de selecionar o comportamento segundo suas consequências previsíveis. […] Você não pode sair dele [do funcionamento do cérebro] nem deixar que ele prossiga sem você, pois ele é você (Pinker, 2004, p. 243, destaque meu).
Esse é um ponto crítico e sobre o qual eu tenho debatido em outros espaços (aqui, p. ex.). Diferentemente do que às vezes ouvimos por aí, o cérebro não toma as decisões pelas pessoas. Se concebermos uma pessoa como um tipo de organismo vivo, logo o cérebro é parte dessa pessoa (ou “ele é você”, de acordo com Pinker). Dizer do funcionamento do cérebro é dizer do — ou descrever o — nível neurobiológico de comportamentos privados, entre eles o planejar e o escolher. Se fôssemos escravos do nosso cérebro, seríamos escravos de nós mesmos.
Os eventos neurobiológicos, uma vez sendo identificados aos eventos psicológicos (ou caso sejam vistos como eventos que co-variam com o que chamamos subjetividade), não podem ser tomados como a causa destes últimos. Exemplo disso é o caso dos potenciais de ação, cuja velocidade não causa/determina a velocidade do pensamento — ambas as descrições são, em vez disso, recortes diferentes de um mesmo fenômeno. O que, afinal, determina se o cérebro “escolhe“ (não negligencie o destaque nas aspas) um comportamento ou outro? A propósito, uma escolha específica determina um comportamento público específico?
Permitam-me ser breve (já abordei questões parecidas em outro lugar). Mesmo que eventos neurais precedam comportamentos motores (como quando um assassino planeja uma execução e, depois disso, a concretiza), a relação entre esses dois eventos só pode ser apropriadamente entendida à medida que trazemos ao palco a história de relações de uma pessoa (que possui genes específicos) com o seu ambiente. Em outros termos, devemos recorrer à filogênese e à ontogênese (história de vida) se quisermos explicar por que uma pessoa faz umas ou outras escolhas e se comporta publicamente de formas específicas. Essas parecem ser as fontes, as origens legítimas de quaisquer comportamentos. Se o deputado Trad tiver que se preocupar com alguma coisa, esta coisa não é o sistema nervoso central — tanto menos um homúnculo imaterial. Colocar a culpa no cérebro não é muito diferente de colocar a culpa na pessoa.
E a liberdade, como é que fica?
Para se dimensionar o tamanho do estrago, basta entender que toda a justificação da imposição de uma pena criminal está fundamentada no livre-arbítrio, elemento central da culpabilidade. Se o que está se insinuando com a tecnologia da Neurociência, de fato, se confirmar, todo o edifício teórico das ciências penais estará sustentada em areia movediça (Trad, 2011).
É verdade: não faz sentido falarmos de escolhas indeterminadas diante da afirmação do determinismo. Por outro lado, não vejo razão para muito desespero. Admitir o determinismo não implica em desconstruir todo um sistema penal. O que talvez possa ser feito é reformular certos conceitos e premissas básicos, podendo contudo, e se convier, manter boa parte daquilo que já é posto em prática. Como não queremos descartar toda a moralidade como sendo uma superstição não científica, podemos tentar “descobrir um jeito de conciliar causação (genética ou não) com responsabilidade e liberdade” (Pinker, 1998, p. 66).
Deve ser o seguinte: somos livres e responsáveis na medida em que, na ausência de coerção, podemos fazer escolhas e agir — o que costuma ser acompanhado por sensações deveras aprazíveis. Mesmo que essas escolhas e ações sejam — conforme o nível descritivo fisicalista — efeitos de um conjunto de causas, a responsabilização é legítima por se tratar de um recurso capaz de alterar o comportamento do indivíduo. Daí que indivíduos total ou parcialmente insensíveis ao efeito da punição não são formalmente responsabilizados por aquilo que fazem. Esse é o caso dos loucos, das crianças, dos animais e dos objetos inanimados (Pinker, 2004).
Um ser humano é simultaneamente uma máquina e um agente livre senciente, dependendo do objetivo da discussão, assim como ele também é um contribuinte do fisco, um corretor de seguros, um paciente do dentista e noventa quilos de lastro num avião da ponte aérea […]. A postura mecanicista [que é determinista] permite-nos entender o que nos faz funcionar e como nos encaixamos no universo físico. Quando essas discussões se esgotam no fim do dia, voltamos a falar uns dos outros como seres livres e dignos (Pinker, 1998, p. 68).
Notas e referências bibliográficas:
(1) Boa parte das conclusões que expus ao longo deste texto foi fruto de excitantes discussões com meus colegas analistas do comportamento belorizontinos, a quem devo consideração e gratidão por todo o ensinamento e carinho. Gostaria também de agradecer ao Cláudio Drews, por quem tive acesso ao artigo, e, em termos de revisão, aos meus amigos Ramon Cardinali e Júnio Rezende.
(2) Provavelmente a punição não é a medida mais efetiva em termos de modelar o comportamento moral. Valorizar/recompensar comportamentos socialmente desejáveis deve ser uma estratégia muito mais efetiva. Falei um pouco a respeito disso por aqui, ainda no ano passado.
Pinker, S. (2004). Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das letras.
Pinto, P. R. M. (2007). O reducionismo impiedoso de John Bickle e seus problemas. In: Broens, M. C., Coelho, J. G., & Gonzales, M. E. Q. Encontro com as Ciências Cognitivas. São Paulo: Cultura Acadêmica.
Revista Veja, no. 316, 25/09/74, pp. 3-6.
Trad, F. (2011). Direito Penal em apuros — a Neurociência bate em sua porta! Em: http://www.msnoticias.com.br/?p=ler&id=62919