Sociedades Científicas Brasileiras contra as Resoluções do Conselho Federal de Psicologia
A Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e a Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) se posicionam contra resoluções do Conselho Federal de Psicologia
Circula pelas listas de discussão via e-mail da internet a resposta da Sociedade Brasileira de Psicologia e da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental com relação a três resoluções do CFP. Segue abaixo o texto completo.
A Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP) e a Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental (ABPMC) vêm à publico colocar a opinião de pesquisadores, professores, alunos e profissionais de Psicologia que não foram ouvidos pelo Conselho Federal de Psicologia quando baixou três resoluções, no mês de Julho de 2010, que tratam de atividades desenvolvidas pelos psicólogos jurídicos – as resoluções CPP 008/2010 (dispõe sobre a atuação do psicólogo como perito e assistente técnico no Poder Judiciário), CFP 009/2010 (regulamenta a atuação do psicólogo no sistema prisional) e CFP 010/2010 (institui a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na rede de proteção).
Estranha-se esta ação do CFP. Até então, o CFP tem legislado sobre a atuação dos psicólogos por meio do Código de Ética e das resoluções que estabelecem as funções dos especialistas em Psicologia. No entanto, as três resoluções acima referidas ferem legislações anteriores e interferem na prática do psicólogo jurídico brasileiro.
A Psicologia Jurídica ou Forense tem cerca de 30 anos e no Brasil, a área foi reconhecida em 2001, por meio da Resolução CFP 02/2001, que regulamenta a Especialização em Psicologia Jurídica. Mesmo recente, as pesquisas e atuação apóiam-se nos fundamentos psicológicos desenvolvidos pelas demais áreas de conhecimento em psicologia, entre elas a psicologia clínica, psicologia do desenvolvimento, de avaliação, da família, do comportamento antissocial, da violência contra crianças, adolescente e mulher, etc. Enfim, conhecimentos científicos que estão largamente publicados em periódicos internacionais sobre os vários temas.
No entanto, ignorando o conhecimento acumulado nesta área o CFP resolve interferir na atuação do psicólogo jurídico impedindo-o de trabalhar com técnicas reconhecidas internacionalmente e fazendo um viés político na atuação deste profissional.
Convidamos todos os profissionais da Psicologia a lerem as resoluções. Facilmente poderão observar uma única base teórica fundamentando as três resoluções. O Brasil é um país eclético em formação teórico metodológica (ver Bastos e Gondin, O Trabalho do Psicólogo Brasileiro, Artmed, 2010). Convivemos com, no mínimo, cerca de seis abordagens teórico-metodológicas (psicanalítica/analítica (29,4%), cognitivo-comportamental (26,4%), Existencial-humanística (25,2%), sócio-histórica (12,8%) e Psicodramática (6,4%)). Mesmo fundamentando a atuação deste profissional em uma única abordagem o CFP determina que deva haver liberdade de escolha teórico-metodológica na atuação do psicólogo jurídico.
No nosso entender, tanto o Código de Ética do Psicólogo, como a Resolução que cria a Especialização em Psicologia Jurídica já regulamentam, a atuação do profissional.
Vejamos, como o CFP se posicionou por meio das Resoluções acima citadas:
RESOLUÇÃO 008/2010 – DISPÕE SOBRE A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO COMO PERITO E ASSISTENTE TÉCNICO NO PODER JUDUCIÁRIO
No que se refere aos considerandos estabelecidos nesta Resolução, o CFP tão somente repete artigos já estabelecidos pelo Código de Ética do Psicólogo e no Manual de Elaboração de Documentos (CFP 07/2003) de maneira que é uma introdução totalmente redundante e desnecessária. Ao detalhar a Realização da Perícia (art de 1 a 5) discorre sobre modus operandus que muitas vezes precisa ser adaptado à realidade da situação sob perícia. Por exemplo, no art 4º diz que a perícia exige espaço físico apropriado que zele pela privacidade do atendido, bem como pela qualidade dos recursos técnicos utilizados. Em várias situações o perito precisa ir á casa da família e lá não tem privacidade para entrevistar as pessoas envolvidas e esta, é a única forma de obter informações, muitas vezes as entrevistas são feitas na rua, na casa do vizinho, enfim onde for necessário coletar dados relevantes para a avaliação. Evidentemente que o profissional fará seu trabalho dentro dos princípios éticos e técnicos, fundamentando cientificamente seu trabalho. Mas não cabe ao CFP definir cada passo da atuação do profissional. Existem princípios norteadores da conduta de todos os profissionais em psicologia e não é necessário que o CFP detalhe os procedimentos de cada um. Neste caso deveria detalhar em que sala ou circunstâncias deveria o psicólogo escolar atuar e assim por diante.
O art 7 da resolução demonstra o total desconhecimento do CFP quanto aos procedimentos do psicólogo jurídico. O psicólogo jurídico faz a avaliação solicitada pelo juiz ou outros operadores da lei, devendo dar um parecer. Sempre quem decide é o juiz, que acata ou não o parecer do psicólogo. Dar um parecer ao final da avaliação informa a qualidade do trabalho realizado, da mesma forma que um médico faz uma série de exames para ao final informar o diagnóstico do paciente. Seria incompleto o trabalho do psicólogo que após longo estudo desse um parecer inconclusivo, como quer o CFP.
Faz também o CFP, no art 9, alusão a que o psicólogo assistente técnico faça um termo de Compromisso do Assistente Técnico em cartório. Perguntamos – para que fim?
RESOLUÇÃO CFP 009/2010 – REGULAMENTA A ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NO SISTEMA PRISIONAL.
No art 1º a resolução aponta princípios de atuação, letra b ‘Processos de construção da cidadania, em contraposição à cultura de primazia da segurança, de vingança social e de disciplinarização do indivíduo’, letra c ‘ Desconstrução do conceito de que o crime está relacionado unicamente à patologia ou à história individual, enfatizando os dispositivos sociais que promovem o processo de criminalização’ e letra d ‘A construção de estratégias que visem ao fortalecimento dos laços sociais e uma participação maior dos sujeitos por meio de projetos interdisciplinares que tenham por objetivo o resgate da cidadania e a inserção na sociedade extramuros’.
Vários itens do art 1º impõem ao profissional uma única abordagem teórica como forma de atuar na área. Muitas publicações científicas enfatizam a análise do processo individual de aquisição dos comportamentos infratores e antissociais e a necessidade de desenvolvimento de programas de atendimento do interno intramuros para que seja exitosa a reinserção do preso ao meio social.
No Art 3º, letra b, a resolução determina ‘Contribuir na elaboração e proposição de modelos de atuação que combatam a culpabilização do indivíduo, a exclusão social e mecanismos coercitivos e punitivos’. Esta determinação demonstra que os conselheiros desconhecem totalmente as teorias psicológicas que tratam do estudo da culpa e da reparação do dano com instrumentos eficientes na recuperação do infrator (ver Rocha, 2008)
Também no Art. 4º. Em relação à elaboração de documentos escritos, determina o CFP a) que é vedado ao psicólogo que atua nos estabelecimentos prisionais realizar exame criminológico e participar de ações e/ou decisões que envolvam práticas de caráter punitivo e disciplinar, bem como documento escrito oriundo da avaliação psicológica com fins de subsidiar decisão judicial durante a execução da pena do sentenciado.
Interessante é que neste artigo o CFP contradiz a Resolução 02/01, que cria a Especialização do Psicólogo Jurídico.
Resolução do CFP no. 02/01 que trata da criação da Especialização em Psicologia Jurídica diz que o psicólogo deve avaliar as condições intelectuais e emocionais de crianças, adolescentes e adultos em conexão com processos jurídicos, seja por deficiência mental e insanidade, testamentos contestados, aceitação em lares adotivos, posse e guarda de crianças, aplicando métodos e técnicas psicológicas e/ou de psicometria, para determinar a responsabilidade legal por atos criminosos; atua como perito judicial nas varas cíveis, criminais, Justiça do Trabalho, da família, da criança e do adolescente, elaborando laudos, pareceres e perícias, para serem anexados aos processos … deve elaborar petições sempre que solicitar alguma providência ou haja necessidade de comunicar se com o juiz durante a execução de perícias, para serem juntadas aos processos; realiza avaliação das características das personalidade, através de triagem psicológica, avaliação de periculosidade e outros exames psicológicos no sistema penitenciário, para os casos de pedidos de benefícios, tais como transferência para estabelecimento semi aberto, livramento condicional e/ou outros semelhantes…
A avaliação e tratamento de trangressores pode ser conhecida por meio de publicações científicas tais como: International Journal Of Offender Therapy and Comparative Criminology; Journal of Offender Counseling, Services and Rehabilitation; Criminal Justice and Behavior; Sexual Abuse: a journal of research and treatment; Psychology, Crime and Law; Journal of Family Violence; Canadian Counsellor; Journal of Interpersonal Violence; Criminal Justice and Behavior; Journal of Laaw and Psychiatry; Agression and Violent Behavior; Criminal Behaviour and Mental Health; Journal of Research in Crime and Delinquency; Youth Violence and Juvenile Justice; Violence Against Women; Child Maltreatment; Homicide Studies, e tantos outros.
Estas publicações ocupam-se de vários dos tratamentos que têm por base a psicoterapia com indivíduos em privação de liberdade. Estes tiveram seus métodos e eficácia comprovados por meio de pesquisas científicas e são amplamente utilizados em países como o Canadá, Estados Unidos, Inglaterra dentre outros. Estudiosos do tema (ver Hollin, 2004 e Wormith e cols., 2008), por meio de extensas meta-análises concluem que não se discute mais no meio científico, SE os tratamentos para transgressores funcionam, mas sim DE QUE FORMA funcionam, para que possam ser utilizados em um número cada vez maior de instituições. Mais uma vez o CFP demonstra desconhecer dados científicos e ainda mais, mostra que caminha na contra-mão dos avanços científicos que estão ao nosso alcance.
RESOLUÇÃO 010/2010 – INSTITUI A REGULAMENTAÇÃO DA ESCUTA PSICOLÓGICA DE CRIANÇAS E ASOLESCENTES ENVOLVIDOS EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA, NA REDE DE PROTEÇÃO.
Observando-se o conjunto de ações que compõem a mobilização contra o abuso sexual (mídia, pesquisadores, professores, conselhos tutelares, etc), causa estranheza que um segmento que pretenda ser reconhecido como atuante na defesa dos Direitos Humanos surpreenda a sociedade com a imposição de ações contrárias ao movimento do todo. É o caso da resolução acima do CFP, de junho deste ano, que regulamenta a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência na rede de proteção. Surgem algumas objeções sobre a Resolução com base em pontos controversos do documento:
1) A primeira objeção surge com o Art. 3º. afirmando que ‘Toda e qualquer atividade profissional decorrente de Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes deverá seguir os itens determinados na Resolução’. Cabe perguntar, como pode o CFP acreditar que uma resolução com 5 breves artigos dar conta da complexidade da atuação do Psicólogo no Judiciário no que diz respeito à Escuta de Crianças?
2) Anexo do artigo 2, item II. 2: O CFP recomenda que: ‘O psicólogo, ao realizar o estudo psicológico decorrente da Escuta de Crianças e Adolescentes, deverá necessariamente incluir todas as pessoas envolvidas na situação de violência, identificando as condições psicológicas, suas conseqüências, possíveis intervenções e encaminhamentos’. Ainda que haja a preocupação correta de inclusão sistêmica de todos os envolvidos, tal aspecto não dever ser prática nas avaliações de abuso sexual (tal como na decisão de guarda ou poder familiar) e reflete um desconhecimento das especificidades da área. O profissional que avalia a criança vítima de abuso sexual pode abrir mão de avaliar o suposto abusador pelo menos por duas razões: 1) tal prática coloca em risco a segurança do próprio profissional que poderá sofrer ameaças do agressor se o relatório da criança vir a apoiar uma suspeita de abuso. 2) A postura do agressor sexual via de regra consiste em negar o fato, não acrescentando informações novas ao relatório. Isso não significa dizer que o mesmo não deva ser avaliado, entretanto a prática de especialistas sugere que não seja necessariamente feito pelo mesmo profissional.
3) A questão do rompimento do sigilo em casos de violação de direitos de criança é um assunto complexo, delicado e de suma importância. Entretanto, a única menção a tal tema é feita no Anexo da Resolução (Item III, 1), de modo apressado e vago, não deixando claro como o profissional deve proceder: ‘O sigilo deverá estar a serviço da garantia dos direitos humanos e da proteção, a partir da problematização da demanda endereçada ao psicólogo’.
4) O mesmo Anexo (item III, 8) afirma que: ‘O psicólogo, na Escuta de Crianças e Adolescentes, atuará em equipe multiprofissional preservando sua especificidade e limite de intervenção, sem subordinação técnica a profissionais de outras áreas’. Ainda que seja louvável a defesa da independência do psicólogo, a Resolução parece desconhecer a hierarquia do Sistema Judicial, sendo que tal hierarquia não precisa ser sinônimo de submissão ou de desrespeito de especificidades e princípios éticos de cada profissão.
5) Finalmente, o item III, 9 do Anexo veda arbitrariamente ao psicólogo ‘o papel de inquiridor no atendimento de Crianças e Adolescentes em situação de violência’ sem apresentar as razões para tal decisão que prejudica profundamente não só a profissão de psicólogo, mas á criança brasileira. Tal item parece ser o ponto mais polêmico da Resolução pelas razões abaixo relacionadas.
Tal inquirição é geralmente conhecida por Depoimento sem Dano, método segundo o qual a criança presta depoimento judicialmente em situação protegida, a fim de reduzir as possibilidades de ser revitimizada na própria situação de depoimento. Usualmente, em audiências criminais, testemunhas são ouvidas numa situação em que estão presentes o Juiz, o Promotor de Justiça, advogados do réu e da vítima, o réu e a própria vítima.
Cezar (2007) questiona a abordagem judicial que é realizada no Brasil, que expõe a criança ou adolescente ao funcionamento das salas de audiência, nas quais se encontram as diversas pessoas que devem participar do ato. Relata que não raro as crianças ficam amedrontadas nessa situação e não conseguem apresentar um relato lógico e aceitável, inviabilizando a responsabilização do abusador. Uma vez que a Constituição Federal garante os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa para o acusado, o réu tem o direito de assistir ao depoimento e seu representante de fazer as perguntas que serão colocadas para a testemunha. O abuso sexual é um crime em que vítima e testemunha são a mesma pessoa, pois o relato da criança vítima é a maior – e muitas vezes a única – evidência de que o crime ocorreu.
Uma segunda justificativa diz respeito à materialidade do crime. Em cerca de 80% dos casos, não há provas físicas de que o abuso sexual ocorreu. Igualmente, são raros os casos em que há testemunhas. Sendo um evento privado, com apenas agressor e vítima presentes, o relato da vítima é o único indicador de que o crime ocorreu, caracterizando a situação ‘palavra de um contra a palavra do outro’.
CONCLUSÃO
O CFP insiste em dizer que estas resoluções foram fruto de debates nacionais sobre os temas. Porém, desde o primeiro momento desconsiderou manifestações importantes de pesquisadores renomados no território nacional, simplesmente ignorando-as. Dra Lucia Williams, encaminhou um documento, em 2008, logo após a publicação do artigo ‘O CFP é contra o depoimento sem dano’ no Jornal do Federal, informando ao CFP a posição de pesquisadores da área. Suas considerações jamais foram ouvidas. O CFP desqualificou o esforço do judiciário, baseado em anos de experiência e constatação do sofrimento de inúmeras crianças e adolescentes, que, inovando aplica recursos do poder público para adaptar salas de fóruns com o objetivo de proteger a vitima de abuso sexual de defrontar-se com seu agressor. Os magistrados informam que uma das razões para a impunidade dos abusadores é, precisamente, o fato de nossas crianças e adolescentes não serem ouvidos em nossos tribunais. Esquece-se o CFP que o dano maior já foi causado pelo abuso sexual e que a impunidade de agressores, facilitada pela falta de provas, contribui para alimentar a impunidade.
O CFP ignorou diversas manifestações de psicólogos em encontros de classe, como o Seminário de Psicologia Jurídica ocorrido em novembro de 2008 em Curitiba, o I Simpósio Sul Brasileiro de Psicologia Jurídica em Porto Alegre em abril de 2009 e o I Simpósio Internacional Culturas e Práticas Não-Revitimizantes de Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes em Processos Judiciais, que aconteceu em Brasília em agosto de 2009. Nesse último evento, houve a presença de inúmeros profissionais da área, tanto do Brasil como de outros países, que chegaram a um consenso sobre a importância de um investimento no desenvolvimento de técnicas apropriadas à escuta de crianças. Encontravam-se presentes os representantes do CFP, que demonstraram desprezo pelos resultados e procedimentos expostos por pesquisadores estrangeiros convidados. A representante do CFP chegou a dizer que não estava ali para discutir procedimentos e sim para fazer a defesa dos direitos humanos. Frase de efeito que demonstrou seu descomprometimento com ações que protegem as vitimas de abuso sexual.
Vale ressaltar que os representantes do CFP acreditam que votar procedimentos psicológicos em assembléia de classe legitima a sua decisão. As sociedades científicas vêm a público dizer aos representantes do CFP que a legitimidade dos procedimentos psicológicos é obtida por meio das pesquisas; são os resultados científicos publicados em periódicos científicos que fornecem caminhos para a atuação dos psicólogos, seja qual for a sua área de atuação.
Sociedade Brasileira de Psicologia.
Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental.