O ser humano não é exatamente coerente. Na verdade, a evolução, no que se refere ao comportamento verbal, não selecionou coerência entre o que dizemos e o que fazemos. Ela selecionou organismos e comportamentos mais adaptados aos contextos físicos e sociais; coerência é apenas um acidente neste cenário. O propósito deste texto é de apresentar ao leitor que existem no senso comum e nas ciências pelos menos duas posturas explicativas para o comportamento (as mais mentalistas e as mais contextualistas) e que seres humanos tendem a utilizar o mentalismo ou o contextualismo a depender das condições presentes, mesmo que de maneira filosoficamente incoerente. Argumenta-se que parte do que favorece o mentalismo são situações de competição ou cooperação. O mais curioso é que mesmo nós, analistas do comportamento, que rejeitamos veementemente o mentalismo em favor do contextualismo, namoramos posturas mais mentalistas quando nessas condições.
O termo mentalismo se refere a uma falsa explicação do comportamento, tremendamente utilizada pelo senso comum. Skinner (1974) chamou de mentalistas ou internalistas aquelas explicações que colocam a causa do comportamento dentro do indivíduo que se comporta, via de regra utilizando termos metafísicos e eventos não observáveis (mente, psiquê, vontade, agressividade, timidez, ignorância, personalidade, inteligência, caráter, burrice etc.). Por exemplo, se observamos que Fábio bate um papo com seus amigos em praticamente todas as aulas da faculdade, a depender da nossa relação com ele, pode ser sedutor explicar este fenômeno da seguinte forma: “Fábio fala muito porque é tagarela” ou “Fábio deve conversar nas aulas porque é um desocupado”. Estas explicações são falsas por pelo menos dois problemas:
1) São circulares. Na ciência, explicações circulares são realmente pouco ou nada úteis. Veja:
– Por que Fábio fala muito nas aulas?
– Porque é tagarela (desocupado).
– Por que você diz que ele é tagarela (desocupado)?
– Porque ele fala muito nas aulas. (explicação circular, que retoma o conteúdo da primeira pergunta).
2) São maneiras alternativas de descrever o próprio comportamento que deveria ser explicado. Perceba que ser tagarela não explica o falar muito; na verdade, ser tagarela é falar muito. Ser tagarela é exatamente o comportamento a ser explicado, e não o que explica.
Já o termo contextualismo, segundo uma parte da Filosofia (e.g. Pepper, 1942), refere-se a uma maneira válida de explicar um fenômeno qualquer, tomando-o como um evento compreensível somente a partir do contexto no qual ele ocorre (Carrara, 2001). Na Psicologia, uma postura contextualista-funcional prescreve que o comportamento só pode ser entendido a partir do contexto atual (contingências em vigor, no aqui e agora) e dos contextos históricos (filogenia, ontogenia e história da cultura) em que ocorre (Hayes, Strosahl, Bunting, Twohig e Wilson, 2004). Nesta perspectiva, se retirarmos o comportamento de seu contexto, ele perde completamente seu sentido. Do mesmo modo, se não tivermos informações sobre os contextos em que um organismo se comporta, não é possível dar sentido (uma explicação válida) a este comportamento.
Certo. Então, se adotarmos uma postura mentalista, a “culpa” (e.g. as causas) pelo comportamento está no indivíduo. No contextualismo, a culpa está no contexto. E não é verdade que o senso comum é sempre mentalista. Repare que sob muitas circunstâncias, ao elogiar ou criticar alguém, “relativizamos” (lê-se “contextualizamos”) os comportamentos deste alguém.
Logo, por que propor que o uso de uma ou de outra está relacionado às condições do ambiente social?
Uma maneira de começar esta discussão é considerando que toda explicação é um comportamento verbal e, portanto, exige que haja ouvintes para que ele seja instalado e mantido (Skinner, 1957). Ou seja, nesta perspectiva, somos mentalistas ou contextualistas, pelo menos parcialmente, por causa dos outros. Por “outros”, entende-se a relação de cada um com as comunidades verbais com as quais interagiu (contexto histórico) ou interage (contexto atual). Ser sensível a diferentes ouvintes e comunidades verbais é uma das nossas principais vantagens sobre outras espécies (Glenn, 1989) – e pode ser, também, sobre outros seres humanos (Rosenberg & Tunney, 2008).
Há uma extensa literatura na etologia humana que descreve tendências de seres humanos se dividirem em grupos quando há situações de disputa por recursos, que podem ser materiais, sexuais, econômicos, relativos a território ou mesmo a status. Situações desta natureza tendem a gerar rivalidade, empatia diminuída e agressão entre indivíduos dos diferentes agrupamentos (Björkqvist, Österman e Kaukiainen, 2000). Naturalmente, parte destas agressões são físicas, enquanto outras são essencialmente verbais. As últimas são, via de regra, qualificadores de pessoas, ordinariamente aquelas que competem com o indivíduo ou grupo agressor (Hamilton, 2011). Inversamente, qualificadores positivos (elogios) tendem a ser dirigidos a indivíduos que mantém relações de cooperação ou identidade com o grupo qualificador (Hamilton, 2011). Uma característica essencial é que estas duas condições sociais (de competição ou cooperação) tendem a selecionar maneiras de descrever e explicar comportamentos mais próximas ao mentalismo, atribuindo características negativas ou positivas ao indivíduo ou ao grupo qualificado. Hipotetiza-se que situações contrárias a estas dão um lugar a posturas mais contextualistas, conforme disposto na Figura 1.
A Figura 1 descreve hipóteses de como tendemos a emitir explicações comportamentais sob controle de contingências sociais. Se Fulano for um competidor e gerar malefícios ao grupo, a tendência será explicarmos seu comportamento de forma mentalista (baseada em qualificadores negativos). Se este mesmo Fulano competidor gerar benefícios, a tendência será uma explicação contextualista, na qual as causas são atribuídas às condições do ambiente. No entanto, se outro indivíduo, Ciclano, for um cooperador e produzir benefícios ao grupo, a tendência será novamente uma explicação mentalista (neste caso, baseada em qualificadores positivos); enquanto que se o Ciclano cooperador produzir malefícios, a tendência é oferecer uma explicação contextualista.
Na prática, se Fábio compete com você e está conversando muito na sala de aula, há uma tendência em utilizar uma explicação mentalista para seu comportamento (e.g. ele ser tagarela). Por outro lado, se Fábio for seu amigo e sinalizar que coopera com você, a tendência será uma explicação que leva em consideração o contexto (e.g. o assunto interessante que lhe chamou atenção, a aula que está chata etc.).
Se em uma perspectiva analítico-comportamental, agressões verbais forem tomadas como comportamentos verbais, a explicação destas agressões não residirá somente no falante, mas também nos ouvintes – os quais reforçam o responder do falante. Neste sentido, para que sejam reforçadas, é necessário que ouvintes façam “valer a pena” agredir de forma mentalista.
Todavia, é correto afirmar que agredir outras pessoas costuma gerar consequências sociais punidoras para o agressor, certo?
Hum… há controvérsias. Na verdade, há fortes controvérsias.
Você provavelmente conhece pessoas que são um tanto agressivas, e que mesmo assim parecem ser socialmente adaptadas. Vanbrabant, Kuppens, Braeken, Demaerschalk, Boeren e Tuerlinckx (2012), utilizando diferentes escalas e formas de mensuração, observaram algo pouco usual de se pensar: certas atitudes agressivas, ao contrário do que se imagina, estão correlacionadas a um tamanho maior da rede de relações interpessoais!
Aparentemente, tanto o número de pessoas com as quais se mantém contato, quanto a qualidade das relações, são maiores quando as pessoas desempenham agressões a certas pessoas ou grupos. É como se agredir classes específicas de indivíduos melhorasse nossa vida social. Essa ideia é parte dos estudos que, de forma contra-intuitiva, sugerem que a agressão pode ser um mecanismo social adaptativo, mesmo em nossa cultura atual (Smith, 2007). O mentalismo agradece.
Com algum esforço analítico, mesmo que consideremos (de forma relativamente tácita ou clara) que essas classes agredidas possam ser baseadas na preferência política, hábitos, cor da pele, gêneros, orientação sexual, local de nascimento, laços familiares, filiações a comunidades científicas etc., é necessário orientar a análise de modo a verificar como mecanismos de competição regulam as agressões. Onde houver motivos para disputas intergrupos, provavelmente lá haverá explicações mentalistas criando laços entre alguns – e polarizando o embate com outros.
A verdade é que o mentalismo, ainda que se constitua a partir de pilares filosóficos nada científicos, tem uma função social. Por mais logicamente incoerente que seja, ser mentalista vale a pena. A depender das condições sociais, pode fazer todo o sentido. Em ambientes mais propícios à competição, talvez seja uma das habilidades sociais que aprendemos para viver socialmente melhor – ainda que não gostemos ou saibamos disso.
O título deste artigo envolve a palavra “seletivo”. Temos usado bastante este termo ultimamente. “Revolta seletiva”, “reconhecimento seletivo” etc., funcionalmente falando, são apenas maneiras de descrever um operante discriminado. Se para antecedentes diferentes, os reforços (sociais, neste caso) não são os mesmos, a tendência é sempre o desenvolvimento de um responder discriminado. Feliz ou infelizmente, isto não tem nada a ver com caráter. Tem a ver com o conceito de comportamento operante. É também ampla a literatura sobre o quanto reforços sociais produzem vieses na nossa percepção do mundo (e.g. Guerin, 1992; Hubner, 2013). Provavelmente, somos seletivamente mentalistas por conta dos reforços sociais disponíveis por sê-lo.
Por fim, já que somos também analistas do comportamento, se quisermos ser menos mentalistas, qual o antídoto? No mundo de agora, talvez o melhor seja o autoconhecimento. (a) Fazer auto-observações sobre as condições sociais nas quais tendemos a ser mentalistas ou contextualistas e (b) reconhecer tais contingências de modo que as mesmas evoquem respostas de autocontrole em favor de valores científicos (reforçadores) de médio-longo prazo.
Se tiver quem reforce. Se valer a pena.
Referências:
Björkqvist, G.V., Österman, K., & Kaukiainen, A. (2005). Social intelligence-empathy: Agression? Agression and Violent Behavior, 5(2), 191-200.
Carrara, K. (2001). Implicações do Contextualismo pepperiano no Behaviorismo Radical: Alcance e limitações. Em H. J. Guilhardi, M. B. B. P. Madi, P. P. Queiroz, M. C. Scoz & C. Amorim (Orgs.), Sobre Comportamento e Cognição: Vol. 8. Expondo a variabilidade (pp. 205-212). Santo André: ESETec.
Glenn, S. S. (1989). Verbal behavior and cultural practices. Behavior Analysis and Social Action, 7, 10-15.
Guerin, B. (1992). Behavior analysis and the social construction of knowledge. American Psychologist, 47, 1423-1432.
Hayes, S. C., Strosahl, K. D., Bunting, K., Twohig, M. P. & Wilson, K. G. (2004). What is Acceptance and Commitment Therapy? In S. C. Hayes & K. D. Strosahl (Eds.), A practical guide to Acceptance and Commitment Therapy (pp. 1-30). New York: Guilford Press.
Hamilton, M. A. (2011). Verbal Aggression: Understanding the Psychological Antecedents and Social Consequences. Journal of Language and Social Psychology 31(1). 5-12.
Hübner, M. M. C. (2013) Comportamento verbal de ordem superior: análise teórico-empírica de possíveis efeitos de autoclíticos sobre o comportamento não verbal. Tese de Livre Docência apresentada ao Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP.
Pepper, S. C. (1942). World hypotheses: A study in evidence. Berkeley, CA: University of California Press.
Skinner, B. F. (1957). Verbal behavior. New York: Appleton-Century-Crofts.
Skinner, B. F. (1974). About behaviorism. New York: Alfred A. Knopf.
Smith, P. K. (2007). Why has aggression been thought of as maladaptive? In: Hawley, P.H., Little, T.D., Rodkin, P.C. (Eds.), Aggression and Adaptation: The Bright Side to Bad Behavior. New Jersey, Lawrence Erlbaum Associates, pp. 65–83.
Rosenberg, J., & Tunney, R. J. (2008). Human vocabulary use as display. Evolutionary Psychology, 6, 538-549.
Vanbrabant, K.; Kuppens, P.; Braeken, J.; Demaerschalk, E.; Boeren, A.; Tuerlinckx, F. (2012). A relationship between verbal aggression and personal network size. Social Networks, vol. 34, pp. 164-170.