Resposta do Prof. Dr. Celso Goyos aos equívocos sobre a Análise do Comportamento veiculados em matéria da BBC Brasil

Recentemente o Portal BBC Brasil publicou uma matéria com título “Quatro Mitos Sobre o Autismo” de autoria do famoso jornalista de  ciência Steve Silberman, na qual são reproduzidos diversos equívocos sobre a Análise do Comportamento, em especial, a respeito do trabalho de Ole Ivar Lovaas e da ABA (Análise do Comportamento Aplicada) no tratamento de crianças autistas.

Steve Silberman
Steve Silberman

Silberman é, na atualidade, um dos mais respeitados e premiados jornalistas de ciência do planeta. Seus trabalhos geralmente são publicados em veículos como a Wired, the New Yorker, the MIT Technology Review, Nature, Salon, Shambhala Sun, entre outros de grande circulação. É autor de obras mundialmente conhecidas, como “NeuroTribes: The Legacy of Autism” e “Future of Neurodiversity“, além de uma palestra no TED Taks chamada “The Forgotten History of Autism” vista mais 800.000  vezes e traduzida para mais de 13 idiomas. Ainda assim, os equívocos cometidos em seu artigo demonstram amplo desconhecimento sobre a abordagem comportamental e sua história.

O jornalista afirmou, dentre outras coisas, que a terapia ABA exigia a participação de todas as pessoas importantes para a criança a todo momento, algo que como o próprio texto diz, é “impossível para muitas famílias, do ponto de vista financeiro e logístico”. Silberman também acusou Lovaas de exagerar seus resultados e esconder que aqueles submetidos ao tratamento relatavam mais sofrimento do que melhoras, além de apresentar o testemunho de outro desconhecedor da Análise do Comportamento, o qual afirma que, pelos princípios da abordagem, as crianças são tratadas mais como um problema a ser resolvido do que como uma pessoa que precisa ser compreendida.

Para comentar os erros veiculados no texto convidamos Celso Goyos, Professor Associado da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos),  Doutor em Psicologia (Psicologia Experimental) pela Universidade de São Paulo, com estágios de pós-doutorado na Universidade do País de Gales – Reino Unido, na Universidade de Kansas e na Universidade da Califórnia – San Diego. Celso é Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu: Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo: Avanços no Tratamento da Universidade Federal de São Carlos, atua como orientador nos cursos de Mestrado e Doutorado da Instituição e é Editor chefe da International Journal of Behavior Analysis Applied to Autism Syndrome Disorders (IJOBAS), membro do corpo editorial do European Journal of Behavior Analysis e do The Analysis of Verbal Behavior.

Celso Goyos
Prof. Dr. Celso Goyos

Goyos explicou que, ao contrário do que Silberman afirma,  a participação das pessoas importantes na vida da criança é facultativa e que o sucesso do tratamento, que realmente foi capaz de proporcionar ganhos incomparáveis à muitas crianças, dependia de três condições – dentre as quais esta não estava inclusa:

  • Início precoce do tratamento;
  • Tratamento intensivo, com duração de 20 a 40 horas semanais;
  • Fundamentação nos princípios da Análise do Comportamento.

Goyos contra-argumentou também sobre a afirmação do jornalista de que Lovaas exagerou seus resultados, explicando que os dados apresentados pelo pesquisador são baseados em evidências experimentais sólidas produzidas através de estudos nos quais a ABA foi comparada a outras modalidades de tratamento e foi significativamente superior a elas. O Psicólogo afirmou ainda que mesmo que alguns indivíduos tenham de fato relatado sofrimento após o tratamento – o que não foi comprovado -, sua crescente aceitação, a nível internacional, atesta sua efetividade e a baixa probabilidade de danos aqueles submetidos á ABA, desde que a aplicação seja feita por profissionais devidamente treinados para isso. Por fim, Celso criticou a referência do jornalista ao criador de um método alternativo de tratamento apontando um possível conflito de interesses, corrigindo também a afirmação de que os analistas do comportamento tratam o indivíduo mais como um problema a ser resolvido do que como uma pessoa a ser compreendida.

Leia, na íntegra, os comentários do jornalista e logo abaixo a resposta de Celso Goyos.

DA BBC BRASIL – 23/OUTUBRO/2015: Nos anos 1980, o psicólogo Ole Ivar Lovaas, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, eletrificou a comunidade de pais de autistas ao dizer que as crianças poderiam ser tornadas “indistinguíveis” ao serem submetidas a anos de intensa modificação comportamental.

O método que ele desenvolveu, conhecido como Análise de Comportamento Aplicada, ainda é a intervenção mais usada logo após o diagnóstico do autismo.

Mas há vários problemas com essa abordagem, principalmente o fato de ela requisitar a participação de todas as pessoas importantes para o paciente a todo momento, algo impossível para muitas famílias, do ponto de vista financeiro e logístico.

Lovaas também exagerou ao relatar o sucesso de suas intervenções. Alguns adultos autistas que foram submetidos a seu método concluíram que, ao serem obrigados a agir como seus colegas, acabaram sofrendo mais traumas e ansiedades que carregaram pelo resto da vida.

Para Barry Prizant, co-criador de um novo modelo educacional para crianças com autismo, o problema com abordagens como a de Lovaas é que elas “tratam a pessoa como um problema a ser resolvido e não como um indivíduo que precisa ser compreendido”.

Ao se perguntarem por que uma criança autista está se comportando de uma certa maneira, pais e médicos aprendem a identificar a fonte dessa confusão emocional e podem melhorar o entorno. Isso resulta em uma mudança de comportamento mais duradoura, assim como um entendimento mais profundo das qualidades e desafios daquela criança.

Confira, agora, a resposta de Celso Goyos:

CELSO GOYOS PARA O COMPORTE-SE – 20/OUTUBRO/2015: Dentre os quatro mitos apresentados, iremos nos restringir ao 3, que é a respeito da Análise do Comportamento Aplicada. Vários equívocos são apresentados dentro deste mito. Todos eles, de autoria do jornalista responsável pela matéria, Steve Silberman, encontram-se publicados num importantíssimo órgão de comunicação, o sítio BBC Brasil.

A começar, a única fonte confiável citada na redação do Mito 3 é O. Ivar Lovaas. Baseado em estudos experimentais com tecnologia produzida até o início dos anos 80 pela Análise do Comportamento, Lovaas demonstrou que os resultados obtidos pelo tratamento com as técnicas e procedimentos derivados da Análise do Comportamento foram os mais eficazes, a ponto de uma parte importante dos indivíduos submetidos a ele terem conseguido acompanhar seus colegas de mesma idade nas atividades escolares. E é a isso que Ivar Lovaas se refere como “indistinguíveis de seus colegas”, nunca, como a colocação sugere, com o sentido de massificação. Foram três as características fundamentais deste tratamento:

1) Início precoce, ou seja, introdução do tratamento o mais cedo possível na vida da criança;
2) Tratamento intensivo, com duração aproximada de 20 a 40 horas semanais;
3) Ser baseado fundamentalmente em técnicas e procedimentos da Análise do Comportamento.

É importante salientar, porém, que nem todos atingiram resultados tão impactantes, embora todos tivessem exibido melhoras no quadro. Entre aqueles que foram submetidos a outras formas de tratamento, sequer houve alterações em relação às condições pré-intervenção.

O texto original apresenta algumas outras “incompreensões” com relação à Análise do Comportamento que precisam ser esclarecidas. “Nos anos 1980, o psicólogo Ole Ivar Lovaas, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, eletrificou a comunidade de pais de autistas …”.

O uso do termo “eletrificou” neste contexto não é exatamente correto porque a comunidade de pais de autistas estava aguardando uma resposta de tratamento eficaz, uma vez que todos os tratamentos anteriores se mostraram absolutamente ineficazes, ; e o uso do termo “modificação” (de comportamento), considerado desatualizado, também não é adequado por sugerir um tratamento puramente mecanicista.

Podemos entender que o método foi inicialmente desenvolvido por Lovaas, mas não se trata de um compartimento hermético da abordagem comportamental. A Análise do Comportamento, mesmo depois da década de 80, vem produzindo conhecimentos importantes em termos de procedimentos altamente eficazes, com comprovação experimental sólida, que foram, ou ainda serão incorporados ao tratamento do autismo, conferindo à modalidade de intervenção um valor exponencialmente maior, com expectativas de resultados ainda mais acentuados. Trata-se, portanto, de um tratamento que busca tornar o indivíduo funcional em tudo aquilo o que ele faz e é a principal base para uma inserção efetiva da pessoa na comunidade. Portanto, a Análise do Comportamento aplicada ao autismo não se constitui em apenas um “método”, apenas, e sim, de uma ciência, completa e em plena evolução.

Ser a Análise do Comportamento Aplicada a forma de tratamento mais utilizada em crianças com autismo não é um mito, como o artigo original afirma. Isso ocorre, de fato, porque o tratamento baseado em Análise do Comportamento é o mais eficaz e o único com a efetividade demonstrada experimentalmente.

Em seguida, o autor afirma que há vários problemas com esta abordagem e, dentre elas, encontra-se o fato de “ela requisitar a participação de todas as pessoas importantes para o paciente a todo momento, algo impossível para muitas famílias, do ponto de vista financeiro e logístico”.

A afirmação não é verídica. Trata-se de uma interpretação equivocada da Análise do Comportamento aplicada ao autismo. Os resultados de investigações científicas nos mostram que é preciso de 20 a 40 horas semanais de trabalho, ao longo de pelo menos dois anos, para obter os melhores resultados. O “método ABA”, conforme é conhecido, não exige a participação das pessoas “importantes” para o paciente, muito menos a todo momento. A participação é facultativa. O que é importante é que as três características principais do tratamento (apontadas acima) sejam atendidas. As implicações logísticas e financeiras do tempo de tratamento são importantes e devem ser atendidas por políticas públicas ou por atendimento privado. Esta questão merece um tratamento à parte.

Com relação à afirmação de Lovaas ter exagerado ao relatar o sucesso de suas intervenções, é importante enfatizar que Lovaas não exagerou. O seu relato foi baseado em evidências experimentais a respeito da melhor eficácia do tratamento baseado em Análise Comportamental quando comparado com os tratamentos mais comuns alternativos que se encontram disponíveis, com o emprego de metodologia científica rigorosa semelhante à das ciências naturais e publicada em periódicos científicos da mais alta reputação.

Segundo o jornalista, “Alguns adultos autistas que foram submetidos a seu método (o de Lovaas) concluíram que, ao serem obrigados a agir como seus colegas, acabaram sofrendo mais traumas e ansiedades que carregaram pelo resto da vida”.

Os relatos de adultos autistas que foram submetidos ao “método ABA” são apenas impressões pessoais, sujeitas a todo tipo de viés, nada comparável a resultados experimentais. Não sabemos se são, de fato, confiáveis. Mas vamos supor que sim. A que exatamente esses adultos estariam se referindo do tratamento? A origem do sofrimento do indivíduo está nas características essenciais dos procedimentos da Análise do Comportamento, ou na maneira pela qual ele foi aplicado, ou nas pessoas que os aplicaram? O sucesso dos procedimentos requer, minimamente, que esta questão seja respondida de maneira científica, através de dados experimentais. Adicionalmente, pela aceitação internacional crescente do método, um número incomparavelmente maior de pessoas e de famílias se beneficiaram dele em comparação às que supostamente que foram prejudicadas.

Ainda temos que considerar que a aplicação do “método ABA”, pelas pessoas que o aplicam, nem sempre é confiável. Nem sempre os aplicadores são devidamente capacitados para este trabalho. Este aspecto é atualmente um dos mais importantes envolvendo analistas do comportamento na aplicação de tratamentos para indivíduos com autismo. É preciso que o analista do comportamento seja especificamente capacitado para aplicar qualquer tratamento baseado em Análise do Comportamento. O profissional deve ser um analista do comportamento habilitado. As famílias que têm interesse deveriam se certificar a respeito da habilitação e do treino de capacitação recebido pelo responsável pelo tratamento, qual é a origem de seu certificado. Os analistas de comportamento também deveriam constantemente se atualizar quanto aos conhecimentos recentes sobre tratamento de indivíduos com autismo sob a perspectiva da Análise do Comportamento. Quanto a comentários críticos apresentados por criadores de abordagens alternativas, somente uma palavra de cautela, pode haver conflito de interesses. Esta é uma questão ética à qual nem sempre atentam as pessoas que prestam serviços de educação e saúde.

Há uma outra afirmação, “(o “método ABA”) … trata a pessoa como um problema a ser resolvido e não como um indivíduo que precisa ser compreendido”, que merece comentários de esclarecimento. Também se trata de uma informação equivocada. A Análise do Comportamento, tal como o próprio nome sugere, primeiro compreende o indivíduo, tomando o comportamento e o ambiente onde ele ocorre como ponto de partida, e considera o comportamento como função do ambiente. Somente a partir da compreensão sobre a função desses comportamentos, é que o comportamento poderá ou não ser considerado alvo de intervenção e, se for o caso, tratado. Não é tão relevante para a Análise do Comportamento saber, neste contexto, se o comportamento é problema ou não, interessa muito mais saber qual função que ele tem, qual seu significado para o quem se comporta, o contexto mais amplo irá dizer se ele é ou não relevante, e isso poderá guiar o tratamento. Nunca, pelo que se sabe, a Análise do Comportamento apontou o indivíduo como problema, exatamente porque trata da função ou, dito de outra forma, do significado de seus comportamentos. O comportamento dos indivíduos que julgam, ou que tomam decisões sobre o comportamento, considerando-o problema ou não, também é alvo de interesse da Análise do Comportamento, mas essa é algo também a ser considerado separadamente .

Para finalizar, um comentário sobre a frase: “Ao se perguntarem por que uma criança autista está se comportando de uma certa maneira, pais e médicos aprendem a identificar a fonte dessa confusão emocional e podem melhorar o entorno. Isso resulta em uma mudança de comportamento mais duradoura, assim como um entendimento mais profundo das qualidades e desafios daquela criança.” Parece-me uma frase adequada, mas há de se ressaltar a importância de se responder à questão com um método científico, tal como a Análise do Comportamento preconiza e disponibiliza, e que o autismo não causa confusão mental, esta é uma interpretação equivocada que a frase apresenta. De resto, pode se dizer que a Análise do Comportamento também se dedica à compreensão mais profunda das qualidades e desafios do indivíduo.

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Escrito por Portal Comporte-se

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