Preconceito linguístico e comportamento humano

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Retirado de http://blogs.swa-jkt.com/swa/11221/files/2013/08/words-are-weapons.jpg

Não é muito comum em nosso sistema de ensino e em nossa vida cotidiana a ideia de língua como viva. A despeito de décadas de pesquisa em linguística e suas sub disciplinas, como a sociolinguística, política de línguas, entre outras, nada mais sintomático da dominância da visão de língua como coisa fixa e estável do que o destaque que figuras como Pasquale Cipro Neto possuem na grande mídia, na forma de coluna de jornais e comentários em redes abertas de televisão. O que interessa é a norma, que é imutável e rígida, na medida em que é representativa da língua correta.
Não são raras, no entanto, tentativas de mudança dessa perspectiva no cenário nacional, com propostas didáticas como a que gerou polêmica em 2011, o livro “Por Uma Vida Melhor ”, produzido pela ONG Ação Educativa. Destinado ao Ensino de Jovens e Adultos, o livro propõe discussões raras em sala de aula tradicional, como a importância das variações linguísticas no português falado, a despeito da existência e da importância de uma gramática tida como culta. A reação foi virulenta na grande mídia, como ilustram os comentários de Alexandre Garcia, neste vídeo (https://www.youtube.com/watch?v=kRdrDLrr_fM), e como problematiza esta coluna (http://www.cartacapital.com.br/educacao/falsa-questao) da Carta Capital.

As críticas giram em torno de uma concepção estanque de língua, ou seja, língua é assim, e aquilo que não é assim não é a língua, ou não é correto, ou não deve acontecer dessa forma. Quem oferece alternativas interacionistas para essa questão é acusado de relativista, de dizer que “vale tudo então”, de defender que “falar errado é bonito”, e o purismo dos defensores da “língua de Camões” fala mais alto. O paulistano diz que é bolacha, o carioca diz que é biscoito; o paulista usa a expressão “baiano” para designar tudo que considera feio, maltrapilho, espalhafatoso, e o carioca usa a expressão “paraíba”; a periferia não tem voz, e as gírias e expressões musicais e artísticas que produz são rechaçadas em nome de um padrão estilístico higienizado e próprio do mainstream; sotaques talvez sejam um dos exemplos mais tradicionais: ninguém acha que tem sotaque, especialmente o paulistano. Quem fala engraçado (quando não errado) são os outros.

Duas grandes questões chamam a atenção nesse debate. A primeira é a concepção estanque de um fenômeno que é, essencialmente, comportamento. A segunda é a valoração social diferente dada a formas específicas desse fazer, ou seja, de comportamentos linguísticos específicos. Sobre a primeira, vou discutir os problemas de uma concepção estanque de comportamento – no caso, o linguístico, ou os problemas decorrentes de toma-lo como uma “coisa”. Sobre a segunda, vou discutir possíveis motivos e prováveis consequências sociais da valoração específica de formas particulares de se comportar, o suposto jeito “certo”, e o suposto jeito “errado”. Em essência, o preconceito linguístico. Espero, ao final, ter demonstrado as relações entre essa visão conservadora do fenômeno e como aliada a privilégios econômicos e políticos produz preconceito linguístico.

O que diabos é língua?
A verdade é que não há consenso entre os linguistas sobre o que é língua. Uma série de linguistas proeminentes, perguntados sobre o que é língua, apresentaram respostas muito distintas. Para ficar em alguns exemplos: “a língua é, de certa forma, a condensação de um homem historicamente situado”; “um sistema de comunicação intra/interpessoal e intra/intercultural, compartilhado e usado por membros de uma ou mais comunidades, através de variedades individuais, geográficas, e sociais”; “o produto de um trabalho social e histórico de uma comunidade (…). É instrumento e produto do trabalho ao mesmo tempo”; são duas, “(língua-I) o conhecimento que o indivíduo tem da língua e à qual subjaz também o conceito de gramática universal (…), e língua externalizada (língua –E), que você vê no corpus da fala, a língua que você vê nos jornais” (Xavier & Cortez, 2003).
Com exceção da perspectiva gerativista, que embora também toque no ponto da atividade do organismo apela para explicações dualistas e mentalistas como o aparato interno da linguagem e a língua internalizada, parece razoável supor que a maior parte dessas respostas faz certa referência àquilo que alguém faz, ou seja, a comportamentos. Se ela é condensação e um homem historicamente situado, ela tem a ver com aquilo que os homens produziram durante a história. Se ela é um sistema de comunicação usado por comunidades, ela tem relação direta com o que fazem as pessoas dessas comunidades. Se ela é o produto de um trabalho social e histórico, ela é resultado da atividade humana.
Em termos analítico comportamentais, a questão língua/linguagem esbarra em problemas de tradução para o português da palavra language, mas é entendendo a definição de Skinner de linguagem (que pontuarei mais adiante) que compreendemos o que veio a chamar de língua. Logo, língua é

“um tipo de comportamento (Inglês, Árabe, e assim por diante). Ela existe ainda que ninguém a esteja falando. (Ninguém precisará falar de qualquer forma, em se tratando de uma língua morta). Suas práticas são registradas em dicionários (que dão os significados através de outras palavras que possuam os mesmos significados) e em regras gramaticais (regras que descrevem arranjos convencionais de palavras)” (1989, p. 37).

Nesse sentido, se língua é um tipo de comportamento, ou manifestações comportamentais modeladas e mantidas por ambientes linguísticos (comunidades verbais), aquilo que é fundamental para compreender comportamento também o é para compreender a língua.
Diz Skinner (1953/2003) que o comportamento é uma matéria difícil porque é evanescente e imobilizável. Não é uma coisa que seguramos, não tem um caráter imutável, já que é fluido. Carrara e Zílio (2013) afirmam que compreender comportamento é compreender um amplo conjunto de relações entre aquilo que faz um organismo em ambientes distintos. Nesse sentido, olhar para o comportamento não é apenas olhar para a atividade do organismo, mas para todo o conjunto de relações que mantém com contextos antecedentes e eventos consequentes. Não fazemos uma ciência das coisas quando fazemos análise do comportamento, fazemos uma ciência de processos, de investigação de relações entre fenômenos.
A esse respeito, talvez uma das afirmações mais precisas sobre o que constitui material de investigação dessa ciência de relações venha com Keller e Schoenfeld, em 1950:

Poder-se-ia definir a Psicologia como a ciência do comportamento dos organismos. Entretanto, esta definição simples é ao mesmo tempo incompleta e equívoca. (…) os psicólogos estudam o comportamento em suas relações com o ambiente. O comportamento isolado do meio em que ocorre dificilmente poderia ser objeto de uma ciência. Imagine-se, por um momento, o absurdo que seria uma fita que registrasse todo comportamento de um organismo, do nascimento até a morte e em que todas as indicações do mundo em que vive fossem cuidadosamente apagadas! Só quando se começa a relacionar aspectos do comportamento com os do meio é que há possibilidade de uma psicologia científica. (pp. 16-17, ênfase adicionada).

O estudo de fenômenos linguísticos, tomados em suas dimensões comportamentais, não pode ser o estudo de coisas estanques, de coisas rígidas ou fechadas. Na verdade, não pode ser tomado como o estudo de coisa alguma, mas de relações entre fenômenos, constituindo processos de marcada natureza histórica e social. O próximo passo é compreender o caldo em que esses comportamentos são nutridos, ou seja, os ambientes que modelam e mantém práticas linguísticas.

Linguagem é cultura, e cultura é linguagem
Cultura, em sentido amplo, é ambiente social, constituído das contingências sociais de reforçamento e punição em vigor. No entanto, para que seja possível a constituição de uma cultura, nos moldes dessa definição, foi preciso que processos evolutivos tornassem o Homo sapiens capaz de vocalizar e produzir diferentes formas de símbolos, escritos, imagéticos, entre outras formas de manifestação linguística. Somente com a possibilidade de desenhar, escrever, falar e, em última instância, se questionar e questionar os outros sobre as razões pelas quais fazem o que fazem, ou seja, descrevendo e registrando as contingências e produzindo comportamento sobre comportamento, foi possível o surgimento de um ambiente social, no sentido antropológico do termo.
Paralelamente à definição de cultura, uma linguagem é entendida por Skinner (1969, 1987) como “um ambiente verbal que modela e mantém comportamento verbal” (Skinner, 1987). As contingências verbais de reforçamento e punição são providas por ouvintes, no sentido de que falantes possuem seu comportamento verbal modelado e mantido pelos seus efeitos no comportamento dos ouvintes. Mas esses papéis não são separados, e se encontram debaixo da mesma pele, o que é responsabilidade do ambiente verbal: ensinar o repertório de falante e de ouvinte para uma mesma pessoa, de modo que falar com os outros e falar consigo mesmo seja uma prática estabelecida e importante para a cultura como um todo.
A Antropologia, a Arqueologia, a Sociologia e a Linguística são bons exemplos de disciplinas científicas que se voltam ao estudo da evolução dessas práticas verbais ao longo do tempo, como no caso do etnógrafo que descreve práticas típicas de algumas culturas; o arqueólogo que investiga os produtos do comportamento das pessoas em determinado tempo, como os artefatos históricos; o sociólogo que descreve o funcionamento de instituições e papéis sociais de um grupo específico; o filólogo que investiga origens e registros de comportamento verbal, ou uma determinada prática linguística, e assim por diante.
O papel do sociolinguista nessa brincadeira é especialmente importante, na medida em que se assemelha muito com o papel do analista do comportamento. Interessado em questões de mudança e variação linguística, ou seja, em diferentes manifestações de comportamento verbal, seja escrito ou falado, esse profissional desempenha tarefa tão difícil quanto o analista do comportamento que se debruça sobre esse processo fluido e evanescente que é o comportamento. Voltando a Keller & Schoenfeld (1950),

Imagine-se, por um momento, o absurdo que seria uma fita que registrasse todo comportamento de um organismo, do nascimento até a morte e em que todas as indicações do mundo em que vive fossem cuidadosamente apagadas!

Ora, um método tradicional (dentre outros) de pesquisa no campo da sociolinguística é justamente o registro de grandes amostras de línguas faladas (e também escritas), permitindo a criação de grandes bancos de dados de línguas, com o objetivo de proporcionar a possibilidade de análises tanto em seus níveis mais básicos como fonética, morfologia, sintaxe e semântica, quanto em termos de seus aspectos pragmáticos e discursivos, tarefa de outras subdisciplinas da linguística. Contudo, a despeito dessas possibilidades já mencionadas, e das grandes diferenças de método e interesse ao longo da história de desenvolvimento da subdisciplina (FREITAG, MARTINS, TAVARES, 2012), o que é mais importante para a presente discussão é o interesse na busca por regularidades e sistematicidades no (de outro modo) aparente caos da comunicação cotidiana, através do cuidadoso exame de mudanças e variações no comportamento dos falantes em seus diferentes contextos, ou comunidades de fala/de prática, e assim por diante (SALOMÃO, 2011).
Coerentemente com o absurdo apontado por Keller e Schoenfeld, retirar essas amostras de comportamento de seus contextos imediatos e amplos seria também infrutífero para a análise de línguas e suas estruturas do ponto de vista do sociolinguista. Sua preocupação, em paralelo com a do analista do comportamento, é compreender os efeitos dos diferentes contextos históricos e sociais no comportamento dos organismos que falam. Esse tipo de pesquisa não se faz apenas estudando a topografia do comportamento, ou seja, é preciso compreender aquilo que acontece no mundo ao entorno do organismo que fala, mundo compreendido pela cultura, que é também linguagem.

Sobre variações e ética: o preconceito nosso de cada dia
Até agora vimos que uma língua pode ser entendida como comportamento de seus falantes, e pode ser tanto uma língua “viva”, quanto uma língua “morta”, ainda que, nesse caso, sobrem apenas registros de comportamento verbal. Vimos também que uma cultura só é possível na medida em que surge a linguagem, ou ambientes verbais que modelam e mantém comportamentos verbais específicos, característicos dessa ou daquela língua, desse ou daquele dialeto, e assim por diante.
A língua tomada como comportamento verbal de falantes carrega consigo a variação e a seleção como características centrais. Sendo o comportamento selecionado pelas consequências que produz no ambiente, e sendo o comportamento verbal apenas mais uma forma específica de se comportar, é razoável supor que a variação e mudança linguística são fenômenos típicos, até mesmo esperados, na medida em que é preciso que haja variação para que ocorra seleção (Skinner, 1981).
O comportamento verbal não é o que evolui, mas os ambientes verbais que produzem novas formas de comportamento verbal. Nesse sentido, a evolução cultural é evolução linguística, e variações e seleções são componentes essenciais dessas mudanças ao longo do tempo. Uma olhada breve numa amostra de registro antigo do português, como a Notícia de Fiadores, de (1175), demonstra diferenças enormes entre o que fazia Camões, e especialmente entre o que fazemos nós hoje, o português brasileiro.

Texto na grafia original:

“Notícia de Fiadores, escrita em 1175.
Noticia: fecit pelagio romeu de fiadores Stephano pelaiz .xxi. solidos lecton .xxi. soldos pelai garcia .xxi. soldos. Güdisaluo Menendice. xxi soldos /2 Egeas anriquici xxxta soldos. petro cõlaco .x. soldos. Güdisaluo anriquici .xxxxta. soldos Egeas Monííci .xxti. soldos [i l rasura] lhoane suarici .xxx.ta soldos /3 Menendo garcia .xxti. soldos. petro suarici .xxti. soldos Era Ma. CCaa xiitia Istos fiadores atan .v. annos que se partia de isto male que li avem.

Texto na grafia atual:

Pelágio Romeu fez notícia de seus fiadores: para Pedro Colaço, devo dez contos; para Estevão Pais, Leitão, Paio Garcia, Gonçalo Mendes, Egas Moniz, Mendo Garcia e Pedro Soares, deve vinte contos; para João Soares, trinta contos, e para Gonçalo Heriques, quarenta contos. Agora estamos em 1175, e só daqui a cinco anos terei que pagar esses patrícios” (MONARETTO, PIRES, 2012).

Em suma, reitero aqui dois aspectos importantes para os analistas do comportamento e para todos os interessados em linguagem. O primeiro é a necessidade inescapável de promover diálogos entre as áreas de conhecimento interessadas. Isso não significa misturar perspectivas incompatíveis e criar um frankenstein epistemológico, mas procurar dados, perguntas, hipóteses e soluções em áreas que possuam fundamentos epistemológicos e um quadro teórico não muito discrepante do Behaviorismo Radical e da Análise do Comportamento. Toda perspectiva interacionista/relacionista pode e deve ter algo a nos oferecer, e nós a eles. O segundo é o engajamento em problemas sociais que são pouco explorados dentro da área, tais como o preconceito linguístico. Uma percepção comportamentalista da língua e do comportamento é diametralmente oposta à que sustenta o criticismo apontado no começo deste texto, o purismo linguístico e o preconceito dele decorrente. A concepção de língua como algo estanque é bastante comum em nosso sistema educacional, amparada por uma ideologia conservadora sustentada por setores dominantes da sociedade, e está completamente em descompasso com basicamente tudo que foi e continua a ser produzido na Linguística e suas subdisciplinas, bem como na Análise do Comportamento (BAGNO, 2009).

Referências
BAGNO, M. Preconceito linguístico, o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2009. (Original de 1997).

CARRARA, K., ZÍLIO, D. A. O comportamento diante do paradigma behaviorista radical. Revista Brasileira de Análise do Comportamento, v. 9, n. 1., p. 1-18, 2013.

FREITAG, R. M. K., MARTINS, M. A., TAVARES, M. A. Bancos de dados linguísticos do português brasileiro e os estudos de terceira onda: potencialidades e limitações. Alpha, v. 56, n. 3, p. 917-944, 2012.

KELLER, F. S., SCHOENFELD, W. N. Príncípios de psicologia. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1974. (Original de 1950).

MONARETTO, V. N. O., PIRES, C. C. O que aconteceu com o Gênero Neutro Latino? Mudança da Estrutura Morfossintática do Sistema Flexional Nominal Durante a Dialetação do Latim ao Português Atual. Revista Mundo Antigo, v. 1, n. 2, p. 155-172, 2012.

SALOMÃO, A. C. B. Variação e mudança linguística: panorama e perspectivas da sociolinguística variacionista no Brasil. Fórum Linguístico, v. 8 n. 2, p, 187-207, 2011.

SKINNER, B. F. Contingências de reforço: uma análise teórica. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Original de 1969).

______. The evolution of verbal behavior. Journal of Experimental Analysis of Behavior, v. 45, n. 1, p. 115-122, 1986.

______. Recent issues in the analysis of behavior. Ohio: Merrill Publishing Company, 1989.

______. Ciência e comportamento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Original de 1953).

______. Controversy? Em: Em: MODGIL, S.; MODGIL C. B. F. Skinner: consensus and controversy. Taylor & Francis e-Library, 2005. (Original de 1987).

______. Seleção pelas consequências. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, v. 9, n. 1, p. 129-137, 2007. (Original de 1981).

XAVIER, A. C., CORTEZ, S. (Orgs.) Conversas com Linguistas. Virtudes e controvérsias da linguística. São Paulo: Editora Parábola, 2003.

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Escrito por Diego Mansano Fernandes

Diego é um um jovem analista do comportamento, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e formado no interior. Formado em Psicologia pela UNESP de Bauru, e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem também pela UNESP de Bauru, voltado para a Análise Comportamental da Cultura.

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