A aventura (comportamental) de um míope

italo-calvinoEm uma leitura recente de um livro do italiano Italo Calvino – um gigante da literatura fantástica – chamado “Amores Difíceis” (1970/2013), me foi possível perceber no texto do autor astúcia e precisão de dar inveja a muitas descrições metodológicas de pesquisas científicas. Os enredos giram em torno de uma personagem específica a cada conto, o que nos leva a conhecer de forma íntima cada uma delas e a prestar muita atenção nas condições de suas vidas que possam vir a explicar seu comportamento. É justamente esse o tema deste texto. Calvino de certo poderia ser um analista do comportamento, pois é um especialista em nos dizer e descrever como suas personagens se comportam e, mais frequentemente, com se sentem em relação ao mundo que os cerca.

Uma leitura do primeiro conto, cuja descrição beira ao rigor científico, é capaz de levar de volta qualquer um às mais desconcertantes lembranças como o conflito à flor da pele para resolver o que fazer diante de uma situação de flerte; avançar ou não a estímulos, pequenos sinais, em que qualquer reação do outro pode ser um sinal de aceitação ou recusa: “será que ela ainda não tinha se dado conta? ou preparava uma fuga? uma rebelião?” (p. 13). Calvino leva a situação ao limite e é capaz de adentrar o mundo sob a pele do jovem soldado, extasiado pelo contato de sua perna com o da instigante viúva ao seu lado no trem, inebriado “na aura do perfume dela, um perfume conhecido e talvez vagabundo, mas, pelo longo tempo de uso, já amalgamado aos odores humanos naturais” (p. 10).

Outro exemplo muito vívido é a sensação, na manhã seguinte, de “uma noite com uma bela senhora” (p. 88), descrita de modo tão cativante pelo autor ao ponto em que somos capazes de sentir junto da personagem “o ar e as cores da manhã primaveril” (p. 88) se abrirem diante dele, “frescos, tonificantes e novos” (p. 88), ou sua impressão de “estar caminhando ao som de música” (p. 88). Mas não é sem motivos que o italiano gasta munição pesada logo no primeiro contato com o leitor, tinha mais cartas na manga para o decorrer da obra, o que nos traz diretamente à história que nos empresta seu título. A uma determinada altura, Calvino nos apresenta a história de Amilcare Carruga, que “ainda era jovem, não desprovido de recursos, sem ambições materiais ou espirituais exageradas: nada o impedia, portanto, de gozar a vida. E, no entanto reparou que de uns tempos para cá essa vida para ele andava, imperceptivelmente, perdendo o gosto” (p. 88).

Meu objetivo aqui é demonstrar, através do talento ímpar de Calvino, processos comportamentais básicos em situações cotidianas, em uma tentativa de divulgação científica por meio da literatura, gênero esse com um alcance social muito maior do que periódicos científicos ou livros acadêmicos. O autor italiano nos presenteia com descrições precisas de contingências de reforçamento através de prosa reforçadora e elegante, com requintes que dificilmente um relatório científico poderia contar. Resgatando passagens do conto, caminharemos por alguns processos básicos e passaremos por alguns mais complexos, e é pela história de Amilcare que encontramos o analista do comportamento que provavelmente Calvino nem imaginava que fosse.

Extinção. Como vimos em passagem supracitada, parecia que a vida de Amilcare perdia “o gosto”, as coisas já não tinham a mesma graça de antes. “Antigamente, as cidades novas o exaltavam – viajava com frequência, pois trabalhava no comércio –, agora, só percebia nelas o aborrecimento, a confusão, a desorientação” (p. 88). É possível distinguir alguns processos comportamentais, mas no momento é conveniente falar de extinção. O que vemos é que os antigos reforçadores não fazem mais efeito para Amilcare, ele não tende a fazer novamente as coisas que fazia antes e nem se sente bem as fazendo. Mais um exemplo: “De toda a paisagem a noite só deixava de pé grandes faixas de sombra. Os óculos, pô-los ou tirá-los ali dava exatamente no mesmo. Amilcare Carruga compreendia que talvez aquela exaltação dos óculos novos tivesse sido a última de sua vida, e agora havia acabado” (p. 96). A extinção pode ser entendida como algum tipo de quebra na contingência reforçadora. Eventos que eram contingentes à apresentação de uma ou mais respostas específicas não ocorrem mais, as consequências desaparecem, ou mudam completamente, ao passo que a antiga relação fortalecida deixa de existir e o organismo cessa de se comportar daquela forma, a médio e longo prazos principalmente. Outros efeitos presentes na interação são possíveis reações fisiológicas características, que costumamos nomear de tristeza, apatia, desânimo, etc. Algumas respostas de ansiedade também podem aparecer, uma vez que alguma coisa precisa acontecer no lugar daquela interação anterior e nem sempre o organismo dispõe de repertório para fazer algo diferente naquele contexto.

Reforçamento. Diante de tudo que ocorria, Amilcare “por fim entendeu. Ele estava míope. O oculista lhe receitou um par de óculos. A partir daquele momento sua vida mudou, tornou-se cem vezes mais rica em interesse do que antes” (p. 88). Vemos aqui que Amilcare enfim conseguiu um meio de obter mais reforçadores, ou seja, entrar em contato com consequências de seu comportamento que fossem fortalecedoras e prazerosas. A possibilidade de enxergar bem novamente colocou-o em contato com novos estímulos e o tornou sensível a novas interações com seu entorno. “Olhar se tornava um divertimento, um espetáculo; não o olhar uma coisa ou outra: olhar” (p. 89). Esta passagem é um bom exemplo dos efeitos do reforço. A resposta de olhar é fortalecida e, para além disso, torna-se prazerosa, “cada vez que punha os óculos no nariz era uma emoção” (p. 89). Após contingências de extinção em que nada que se via era reforçador, a possibilidade de olhar o mundo de forma diferente e ver coisas novas parece altamente tentadora e prazerosa.

Discriminação. Grandes mudanças (mesmo que em pequenos aspectos) podem levar a aprendizagens novas e Amilcare certamente se deu conta disso, “via tal quantidade de coisas que era como se não visse mais nada. Teve que se acostumar pouco a pouco, aprender desde o começo o que era inútil olhar e o que era necessário” (p. 89). É impossível – e eventualmente, indesejável – responder a todos os estímulos do mundo ao nosso redor. Mais difícil ainda é agir efetivamente sobre o ambiente, sem aprender a discriminar em que momentos nosso comportamento provavelmente será reforçado e em quais será punido. Amilcare “punha os óculos para ler o número de um bonde que chegava, e então tudo mudava; as coisas mais corriqueiras, até um sarrafo de andaime, desenhavam-se com tantos detalhes mínimos, com linhas tão nítidas (…)” (p. 89). Nosso comportamento fica sob controle de aspectos específicos do ambiente, como quando distinguimos entre acelerar diante do sinal verde, ou frear diante do vermelho. Tais aspectos do ambiente adquirem controle sobre nosso comportamento, de modo que sinalizam a probabilidade de obtenção de reforço. Nesse exemplo, é a cor que predominantemente controla tal resposta, mas existem também outras relações de controle no contexto, como possíveis condições do organismo – fome, necessidade de ir ao banheiro – ou mesmo outros eventos como estar muito atrasado para um compromisso. A interação com o ambiente é plena de estímulos e tais exemplos são recortes analíticos convenientes. O comportamento é processo, é fluido e evanescente, e ao mesmo tempo que modifica o mundo, é modificado por suas consequências (SKINNER, 1957/1978, 1953/2003).

Generalização. “E então as mulheres com quem cruzava pela rua e que uma vez se tinham reduzido para ele a impalpáveis sombras fora de foco, agora o poder vê-las com o exato jogo de côncavos e convexos que o corpo delas faz se mexendo dentro da roupa, e avaliar o frescor da pele, e o calor contido no olhar, não mais lhe parecia apenas vê-las, mas já até possuí-las” (p. 89). Mulherengo que era, Amilcare “estava às vezes andando sem óculos (…) e pronto: mais adiante na calçada despontava uma roupa de cor viva” (p. 89). Em decorrência disso, “com um gesto já automático Amilcare imediatamente retirava os óculos da bolsa e os metia no nariz” (p. 89). Os efeitos do reforçamento enquanto processo – fortalecimento e sensação de prazer – podem se estender para outras situações semelhantes às quais o comportamento foi reforçado. Tal processo explica o por que o jovem respondia da mesma forma, colocando o óculos, a cada nova cor viva andando pela rua que se assemelhasse a uma mulher, comportamento que foi reforçado anteriormente.

Punição. No entanto, nem tudo são flores e Amilcare logo descobriu isso. Embora os processos comportamentais tenham fortalecido as respostas de colocar os óculos e olhar para mulheres na rua, desfrutando da vista recentemente reconquistada, o ambiente pode ser mutável e instável, e há até mesmo quem diga que pode ser cruel. Muitas vezes uma resposta reforçada em um contexto é severamente punida em outro, como experimentamos ao conversar numa mesma festa com amigos da mesma faixa etária, com parentes mais velhos tais como avós e tias, e com crianças pequenas. Provavelmente não podemos falar as mesmas coisas para todos eles, um palavrão pode ser bem recebido pelos amigos e até mesmo pelas crianças, dependendo da família, mas nem tanto pelas tias e avós, e uma piada pode ser engraçada para as crianças mas para nenhum dos outros. Sob controle do ambiente imediato e da história de reforçamento prévia, Amilcare “imediatamente retirava os óculos do bolso e os metia no nariz. Essa indiscriminada cupidez de sensações frequentemente era punida: às vezes era uma velha” (p. 89). Como efeito da punição, “Amilcare Carruga se tornou mais cauteloso” (p. 89), ou seja, reduziu a taxa de respostas de colocar os óculos a cada vez que algo lhe chamasse a atenção. O contexto que outrora reforçou as respostas de olhar as mulheres na rua com fervor, deu lugar a contingências punitivas que reduziram esse comportamento.

Identidade. Os mesmos processos já suavemente descritos por Calvino aqui apontados (entre alguns outros não abordados nesse texto) são responsáveis pela percepção de si mesmo no mundo e formação do que alguns chamam de identidade, ou self. Parece que nosso querido Amilcare, em meio a tantas mudanças, não passou isento de uma crise de identidade, por assim dizer. “Essas novas preocupações quanto à realidade do mundo externo não se separavam das preocupações quanto ao que era ele mesmo, ainda ao uso dos óculos. Amilcare Carruga não dava muita importância a si mesmo, porém, como às vezes acontece com as pessoas mais modestas, era extremamente afeiçoado à sua maneira de ser. Ora, a passagem da categoria dos homens sem óculos à dos homens de óculos pode não parecer nada, mas é um salto muito grande. Pense que, quando alguém que não o conhece tenta definir você, a primeira coisa que diz é: “um de óculos”; assim aquele acessório particular, que quinze dias atrás lhe era particularmente estranho, torna-se seu primeiro atributo, identifica-se com sua própria essência” (p. 90).

O que vemos no excerto é uma descrição muito mais divertida dos processos anteriormente citados no que diz respeito à formação da autoimagem, da afirmação da identidade pessoal. Amilcare se sentia bem (era reforçado pelo modo como interagia com o ambiente, sua imagem no espelho lhe parecia bonita, agia efetivamente sobre o mundo e possivelmente resolvia seus problemas) consigo mesmo, mas como todo ser inserido em uma comunidade verbal, em culturas, seu modo de ver o mundo tem muito a ver com sua história de interações, e tal história coloca seus comportamentos sob controle de certos aspectos do ambiente ao invés de outros. Sua imagem de si só pode ser definida em interação com a forma como os outros se comportam em relação a você, justamente pela natureza social da consciência. Quando Amilcare reclama de desconhecidos se referirem a ele como “um de óculos” (p. 90), ele está se queixando dos aspectos de sua aparência que controlam o comportamento dos outros ao identificá-lo. Parece que os óculos – através de processos de condicionamento operante e controle de estímulos – se tornam “seu primeiro atributo, identifica-se com sua própria essência” (p. 90).

Espero ter ilustrado bem com a ajuda de Calvino alguns dos mais básicos princípios comportamentais descritos pela Análise do Comportamento, bem como ter cumprido o objetivo inicial, que é essa tentativa divertida de divulgação científica por meio da literatura. Aos que estão curiosos com o final da história, no primeiro tópico trouxemos o último parágrafo do texto e a sugestão é que tomem um tempo para ler o desavisado analista do comportamento Ítalo Calvino, pois vale a pena, e descubram o que acontece com Amilcare e outras fascinantes personagens de seus contos.

Referências
CALVINO, I. Os Amores Difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Original de 1970)
SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Original de 1953)
SKINNER, B. F. O Comportamento Verbal. São Paulo: Cultrix, 1978. (Original de 1957)

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Escrito por Diego Mansano Fernandes

Diego é um um jovem analista do comportamento, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e formado no interior. Formado em Psicologia pela UNESP de Bauru, e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem também pela UNESP de Bauru, voltado para a Análise Comportamental da Cultura.

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