Contribuições da terapia analítico-comportamental infantil no trabalho com crianças com lesão cerebral

Esse artigo constitui-se em um ensaio teórico, tendo por objetivo discutir possíveis contribuições da Terapia Analítico-Comportamental Infantil no trabalho com crianças com lesão cerebral. Notadamente aquelas crianças que apresentam problemas de comportamento cuja ocorrência, frequência e intensidade sofrem também interferência de uma variável orgânica, determinada pela lesão cerebral.

A Terapia Analítico-Comportamental Infantil pode ser compreendida como um campo de estudo e atuação da terapia infantil, tendo o comportamento como unidade básica, sendo a partir de então analisadas as contingências ambientais das quais ele é função. Tem como ferramenta primordial de avaliação e intervenção a análise funcional, buscando estabelecer relações funcionais entre organismo e ambiente, como determinantes para o comportamento.

Consiste na aplicação de princípios da filosofia do behaviorismo radical ao contexto de intervenção com crianças, através da proposição e aplicação de técnicas específicas. Na sua perspectiva de análise está a compreensão de que há variáveis múltiplas implicadas na compreensão e determinação do comportamento, associadas à variabilidade significativa nos níveis de determinação (filogenético, ontogenético e cultural), de modo que semelhanças na determinação do comportamento sejam pouco prováveis (CAVALCANTE, 1999).

De acordo com Del Prette (2006), há peculiaridades que distinguem a TACI tanto com relação aos procedimentos utilizados, quanto acerca das habilidades específicas a serem apresentadas pelo profissional que a desenvolve. Esta autora também aponta especificidades da TACI quanto ao processo de avaliação diagnóstica e quanto à participação de múltiplos agentes no processo terapêutico (família, escola, criança).

Para compreensão do histórico e locus atual da TACI faz-se necessário traçar um percurso da psicoterapia comportamental infantil. De acordo com Conte e Regra (2000), a psicoterapia comportamental infantil firma-se enquanto modelo psicoterápico a partir das décadas de 50 e 60, sendo que o foco inicial incidia na tentativa de alterar uma classe de respostas através de uma técnica ou procedimento. Nesse momento, entendia-se que as queixas infantis eram determinadas ambientalmente, justificando-se, portanto intervenções apenas com os pais, considerados as pessoas mais influentes no ambiente da criança.

Conte & Regra (2000), analisando o processo evolutivo da psicoterapia comportamental infantil, destacam a influência de avanços no corpo teórico, filosofia da análise do comportamento. Dessa forma, referem que os estudos de Skinner acerca dos comportamentos governados por regras e daqueles governados por contingências inauguram novos estudos e procedimentos terapêuticos que tem reverberação no âmbito da análise comportamental infantil.

De mesmo modo, importante para o crescimento da psicoterapia comportamental infantil foi a busca por parte dos terapeutas em considerar as contingências presentes durante as sessões, não estando apenas atentos ao cumprimento de rituais científico-metodológicos.  Essa análise dos fenômenos que apareciam no setting terapêutico gerou busca por outros referenciais, complementares aos princípios da aprendizagem, bem como adequação da linguagem terapêutica e busca pela análise da relação entre cliente e terapeuta como estratégia para mudança comportamental.

Insere-se, portanto, a criança no processo terapêutico, levando-se em consideração as características do seu desenvolvimento pessoal e a expectativa social quanto ao um atendimento direcionado a este público.  Do ponto de vista metodológico, incluía-se, portanto, a observação direta do comportamento infantil, bem como a análise funcional da relação cliente-terapeuta e da fala do cliente, em sessão. Nessa nova fase da psicoterapia infantil, as autoras ainda destacam a possibilidade de a psicoterapia promover autoconhecimento, tornando o cliente, a criança, mais apta a modificar seu próprio comportamento e interferir nas contingências a ele relacionadas.

É a partir desse histórico que vislumbra-se a TACI, como um campo de atuação, intervenção e pesquisa, baseado nos princípios da filosofia do behaviorismo radical, que não se restringe a aplicação de técnicas e procedimentos. Antes, busca a compreensão e intervenção sob o comportamento, a partir de uma perspectiva inclusiva dos diversos agentes relativos à criança e de saberes de outras áreas do conhecimento que com esse sujeito se relaciona.

No que se refere às técnicas e recursos que favorecem a avaliação com crianças, tem-se desde aqueles para uso junto aos pais, familiares, professores, até aos mais específicos para uso com a criança. Todo o arcabouço de recursos ou de técnicas para a Terapia Analítico-Comportamental Infantil facilitará a compreensão e análise das contingências envolvidas nos comportamentos investigados, ou seja, favorece o processo de análise funcional do comportamento.

Del Prette (2006) em sua dissertação sobre relações entre o brincar e comportamentos da terapeuta e da criança, destaca que o brincar passou a fazer parte das práticas de psicoterapia infantil dentro de diferentes abordagens da psicologia.

Para o terapeuta analítico-comportamental infantil, o brincar aparece então como uma ferramenta para avaliação e intervenção sob os comportamentos da criança. Dentro do processo avaliativo, poderia contribuir no estabelecimento de uma aliança com a criança, no engajamento dentro de um processo de avaliação e na redução das demandas verbais que lhe são impostas. Conforme Del Prette (2006), brincar favoreceria conhecermos o repertório inicial da criança, obtenção de dados importantes sobre a história de vida da criança, acesso indireto a seus pensamentos e sentimentos e acesso mais direto às suas respostas abertas, associadas às variáveis de controle ambientais.

Em um trabalho sobre recursos que favorecem a Terapia Analítico-Comportamental Infantil, Vasconcelos (2008) discute sobre a possibilidade de contribuição das histórias infantis como um recurso terapêutico no contexto da clínica infantil. Vasconcelos (2008) sinaliza comportamentos, observados em diferentes contextos culturais, passíveis de maior exploração. Entendendo que esses comportamentos são mantidos por contingências sociais na comunidade verbal, no contexto clínico, torna-se possível discriminar as contingências relativas a comportamentos observados ou pretendidos em crianças que estejam no processo terapêutico.

Os trabalhos realizados na área da Terapia Analítico-Comportamental Infantil e por pesquisadores voltados para a avaliação psicológica de crianças parecem convergir para a análise de que a busca por recursos e técnicas específicas para a criança se justifica no sentido de garantirmos uma prática mais adequada para a mesma. Não apenas no sentido de pensarmos meramente em instrumentos para esse público, o que serviria apenas a uma lógica mercadológica, mas no sentido de considerá-lo, com toda a sua história de vida, o seu contexto sócio-histórico, a sua fase de desenvolvimento, em todos os processos que envolvem a prática a ela direcionada.

No que se refere à lesão cerebral na infância tem-se que as lesões congênitas são aquelas cujos danos ocorrem no período pré-natal ou perinatal e as lesões adquiridas ocorrem em fases posteriores do desenvolvimento. Dentre os fatores potencialmente determinantes de lesão cerebral irreversível, os mais comumente observados são infecções do sistema nervoso, hipóxia (falta de oxigênio) e traumas de crânio. Na prática clínica com crianças com lesão cerebral, podem-se encontrar os diagnósticos de paralisia cerebral (PC) e traumatismo crânioencefálico (TCE).

No trabalho com crianças com lesão cerebral, algumas desordens no desenvolvimento podem ser observadas. Estas incluem alterações no desenvolvimento cognitivo e neuropsicológico, comprometimento motor, alterações visuais e auditivas, epilepsia, problemas de comportamento, dentre outras alterações. (REDE SARAH, 2013). Há, portanto, um processo de aprendizagem em eixos do desenvolvimento no qual uma variável orgânica interatua com variáveis ambientais na emissão de respostas pela criança.

De acordo com Duran & Goodman (2000), as evidências conclusivas sobre a associação entre alterações cerebrais e problemas de comportamento na infância são recentes. Os autores afirmam que crianças com alterações cerebrais têm probabilidade pelo menos duas vezes maior de desenvolverem problemas psiquiátricos, independentemente de outros fatores.

Estudos apontam ser comum a persistência de problemas de comportamento após uma lesão cerebral, havendo também dados que sugerem que a frequência de alterações comportamentais na criança, anteriores à lesão, são preditores e aumentam a frequência desse problema após o TCE (YLVISAKER & FEENEY, 2008).

Nas crianças com lesão cerebral adquirida, os problemas de comportamento tendem a ser mais comuns e mais graves na medida em que as crianças são mais novas. Relacionam-se com características do desenvolvimento cognitivo e com características da lesão cerebral (YLVISAKER & FEENEY, 2008). De acordo com Forman (2008), a lesão cerebral e suas consequências implicam em mudanças fundamentais na família, sendo justificadas as propostas terapêuticas que possam incidir na atenuação desses problemas ou no desenvolvimento de repertórios de enfrentamento a eles.

De acordo com Bolsoni-Silva & Del Prette (2003), a terminologia “problemas de comportamento” apresenta dificuldades quanto à definição na literatura, sendo identificados grupos distintos de estudiosos quanto à compreensão e emprego do termo.

Nesse trabalho, problemas de comportamento são entendidos como déficits ou excessos comportamentais que dificultariam o acesso da criança a novas contingências de reforçamento que por sua vez facilitariam a aquisição de novos repertórios relevantes para a aprendizagem (BOLSONI-SILVA & DEL PRETTE, 2003).

Problemas de comportamento comuns apresentados por crianças com lesão cerebral incluem desinibição, agressividade, respostas de imaturidade, inflexibilidade, depressão, retraimento social, hiperatividade, oposicionismo (FEENEY & YLVISAKER, 2006). Entende-se que esses comportamentos são multideterminados, havendo a interferência de variáveis orgânicas, ambientais imediatas, culturais no seu processo de determinação e manutenção. Isso implica na possibilidade de análises funcionais sobre esses comportamentos, considerando-se o maior número de variáveis independentes.

Como uma primeira possibilidade de contribuição da TACI no trabalho com crianças com lesão cerebral tem-se a identificação de comportamentos-problema e na investigação dos mesmos. A sua ferramenta primordial de trabalho, a análise funcional permitiria, portanto o estudo das relações entre possíveis determinantes do comportamento e efeitos desses comportamentos. Essa perspectiva inclui a lesão cerebral como uma variável independente para os problemas de comportamento, em sua correlação com demais variáveis ambientais da vida da criança, as práticas parentais, os arranjos ambientais dos contextos que a criança participa, os elementos culturais que interferem nos padrões de comportamento apresentados.

Ao considerar multideterminantes implicados em um problema de comportamento, a TACI reafirma as idiossincrasias de cada criança, seja em uma etapa de avaliação ou no planejamento de intervenções. No trabalho com crianças com lesão cerebral, seria equivalente a considerar que a despeito de haver uma variável orgânica comum, é necessário pensar em uma análise individualizada no planejamento da reabilitação.

Essa análise funcional, ao discriminar os eventos que antecedem e se seguem a uma classe de respostas de comportamento, permite identificar variáveis controladoras e mantenedoras do comportamento e traçar medidas de modificação nas variáveis do ambiente que estejam mantendo comportamentos pouco adequados ou dificultadores para a participação social da criança, aumentando a chance de efetividade do programa de reabilitação.

Outra possibilidade de contribuição da TACI refere-se aos objetivos de promoção de psicoeducação e autoconhecimento no processo de manejo dos problemas de comportamento. Ao considerar a criança e agentes de referência (familiares, escola, outros agentes sociais) como centrais no processo terapêutico, a Terapia Analítico-Comportamental Infantil compreende que a criança e família devam funcionar como atores ativos no processo de análise e modificação comportamental, sendo co-partícipes na análise e compreensão sobre os comportamentos, variáveis a ele associadas e possibilidades de ajustes ambientais para a terapêutica.

Ao analisar o efeito de variáveis ambientais no comportamento, a Terapia Analítico-Comportamental Infantil possibilitaria também uma análise das práticas educativas parentais e seu efeito em problemas de comportamento.

A compreensão sobre multideterminação, idiossincrasia dos fatores que compõem problemas comportamentais, a análise funcional e seus desdobramentos, a possibilidade de controle de variáveis antecedentes ou consequentes aos comportamentos, o uso de técnicas e procedimentos específicos, e a inclusão de metas de psicoeducação e promoção do autoconhecimento seriam, portanto possíveis contribuições da Terapia Analítico-Comportamental Infantil para o trabalho com crianças com lesão cerebral e problemas de comportamento. Adaptações a esses eixos poderiam ser propostas a fim de buscar maior efetividade das intervenções, considerando as características dessa população, em um diálogo da TACI com as referências de trabalho com crianças com lesão cerebral, seja nos estudos sobre problemas de comportamento ou métodos de reabilitação para o desenvolvimento global.

O trabalho não esgota as reflexões sobre essa articulação, mas possibilita novos estudos e incremento do repertório do profissional que atua na área da reabilitação de crianças com problemas de comportamento e lesão cerebral. As áreas da Terapia Analítico-Comportamental Infantil e da reabilitação de crianças com lesão cerebral e problemas de comportamento trazem à literatura importantes contribuições, isoladamente. A articulação entre esses dois campos de conhecimento pode representar uma experiência desbravadora, porém enriquecedora para repertórios profissionais, e relevante para a prática clínica.

 

 

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Escrito por Carolina Alcântara

Atualmente é Psicóloga da Rede Sarah Hospitais de Reabilitação, onde atua na Área de Reabilitação Infantil desenvolvendo atividades de reabilitação e estimulação neuropsicológica e estimulação do desenvolvimento com crianças e adolescentes com lesão cerebral. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo Conselho Federal de Psicologia. Especialização em Terapia Analítico-Comportamental Infantil. Membro da Associação Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental. Foco de atuação na área da Psicologia Hospitalar e Psicologia do Desenvolvimento.

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